*Por Keila Meireles dos Santos
Esse ensaio(1) contempla minha experiência de mulher negra na cidade, de algumas familiares e de conhecidas, cujo fim contempla a proposta dessa reflexão, que é a de mostrar a construção social da mulher incluindo-me como mais um sujeito feminino fruto dessa construção. Ressalto, desde já, que são necessárias análises de pesquisas mais aprofundadas para chegar a uma conclusão definitiva e que essa proposta está sendo trabalhada em minha pesquisa de mestrado em curso.
—–
Todos os dias ao nascer do sol eu disputava com meus tios e primos o fogão de lenha que esquentava-nos do frio da manhã. Meus tios me repreendiam diariamente com ameaças por eu ficar com as pernas abertas mostrando a calcinha. “Está relampejando”, “fecha as pernas, mala de mascate”, “vou flechar sua perereca pra você aprender”. Dentre todas as frases repressivas supracitadas, a última era enfatizada pela minha avó por meio de histórias verídicas. Ela citava os nomes das crianças que tiveram suas genitálias atingidas com flechas e queimadas com brasas pelos irmãos, porque se descuidaram e mostraram a calcinha. Muitos desses nomes eram de pessoas conhecidas. Em nenhum momento era explicado porque, nós, meninas devíamos fechar as pernas sob pena de violência física.
Recordei-me dessa história no recente Encontro da Marcha Mundial de Mulheres (MMM)(2), sediado na Cidade de São Paulo, após uma militante feminista explanar a confusão que a violência machista provoca na nossa cabeça decidindo em que faixa etária a mulher deve fechar e abrir as pernas. Esse evento reuniu cerca de 1.600 mulheres do Brasil e de mais quarenta e oito países que dividiram suas experiências, reflexões e angústias entre os dias 26 e 31 de agosto de 2013. Um dos traços em comum dentre tantas diferenças destacava a opressão machista, racista, capitalista e do patriarcado. É no calor dessas discussões que emerge a relevância desse estudo. A observação de campo é fruto das experimentações da autora no seu corpo e identidade feminina, negra e jovem; de todas as mulheres que conheço, converso, e observo transitando pelas cidades; das experiências compartilhadas nos encontros de formação feminista; e das representações sociais de mulheres nos discursos também midiáticos.
Manifestação final do 9º Encontro Internacional MMM na Avenida Paulista. Foto de Cintia Barenho
Ciente de que a mulher sofre diversas violações de direitos humanos, aponto incisivamente apenas algumas ocorrências de assédio no âmbito privado e público. Entretanto, reconheço a existência do feminicídio (homicídio de mulheres conhecidos como crime/violência passional) e dos elevados casos de estupros de mulheres sem discriminação de faixa etária em todo o território brasileiro. De acordo com o “Dossiê Mulher 2013”, publicado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, a violência que tem o maior percentual de mulheres vitimizadas é a sexual. Waiselfisz (2012, p. 8)(3) retrata que “entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década”. A maior incidência de violência ocorre na residência da vítima, 71,8%, nas faixas etárias de até 10 anos e a partir dos 30 anos da mulher. 15,6% dos incidentes violentos ocorreram em vias públicas, concentrados em mulheres jovens entre 15 e os 29 anos de idade. A escola apresenta baixa incidência numérica (966 casos), contudo, diminui a faixa etária que fica entre os 5 e os 14 anos.
A cada 15 segundos uma brasileira é impedida de sair de casa, também a cada 15 segundos outra é forçada a ter relações sexuais contra sua vontade, a cada 9 segundos outra é ofendida em sua conduta sexual ou por seu desempenho no trabalho doméstico ou remunerado. Esses dados evidenciam que a violência contra a mulher no Brasil, longe de ser um problema que deva estar restrito ao âmbito privado dos casais, constitui um fenômeno social de grande alcance, a requerer políticas públicas de ampla difusão e acesso (VENTURI, RECAMÁN, 2004, p.26).
Até os 4 anos de idade da mulher, a agressora é a mãe; o pai é a figura quase exclusiva das agressões até os 9 anos e nas faixas etárias a partir dos 10 anos são os principais agressores. Esse papel é substituído pelo namorado, marido ou ex-marido, dos 20 a 59 anos da mulher; e a partir dos 60 anos são os filhos os principais agressores (WAISELFISZ, 2012). O Brasil figura na 7ª colocação na taxa de feminicídio, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). A tolerância e naturalização da violência por meio da culpabilização das vítimas, que são taxadas de vadias que buscaram o incidente, justificam esses números. Outra razão é a não aplicação dos dispositivos legais de punição aos agressores como a Lei nº 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha.
“O corpo é meu, a cidade é nossa”
Essa é uma das músicas cantadas pelas mulheres participantes da Marcha das Vadias (SlutWalk). Esse movimento feminista eclodiu pelo mundo depois que um policial, que ministrava uma palestra na Universidade de Toronto, no Canadá, aconselhou as mulheres a evitar se vestirem como vadias para não serem estupradas. Há outras músicas cantadas por mulheres na MMM que denunciam a violência sexista: “A nossa luta é por respeito, mulher não é só bunda e peito”; “Se o corpo é da mulher, ela dá pra quem quiser”; “A nossa luta é todo dia contra o machismo, racismo, homofobia”.
O objetivo é chamar a atenção da sociedade para as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na cidade, pois o uso da cidade pela mulher(4) é um tema importante, tendo em vista que é crescente a discussão acerca dos papéis de gênero na sociedade. A divisão sexual do trabalho condicionou à mulher extensa jornada de laboro no âmbito da sua participação no mercado de trabalho somada com as tarefas domésticas. Nesse sentido, a relação da mulher com a cidade é intrínseca a essa ordem vigente. Esse estudo denuncia as violações de direitos sofridas pela mulher das cidades nas suas experiências de vivências nos ambientes privado e público.
A cidade transcende os conglomerados residenciais, atividades comerciais, institucionais, industriais e indivíduos dispostos numa determinada área geográfica. “A cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição” (PARK, 1948, p.26). Segundo esse autor, “a cidade não é uma unidade geográfica e ecológica; ao mesmo tempo, é uma unidade econômica” (p. 27).
Jacobs (2007) chama a atenção para os projetos urbanísticos de construção e de revitalização das cidades. Para ela, os profissionais responsáveis por essas reformas estão mais interessados na funcionalidade de uma cidade ideal do que da cidade real. Urbanistas e projetistas pensam que solucionando os problemas no trânsito a maior parte dos problemas da cidade estarão resolvidos. “As cidades apresentam preocupações econômicas e sociais muito mais complicadas do que o trânsito de automóveis” (JACOBS, 2007, p.6).
De acordo com Park (1973, p. 29) “a cidade está enraizada nos hábitos e costumes das pessoas que a habitam. A consequência é que a cidade possui uma organização moral bem como uma organização física, e estas duas interagem mutuamente de modos característicos para se moldarem e modificarem uma a outra”. Wirth (2005) escreve que a cidade não é apenas a morada e o ofício do homem [mulher] moderno, mas também um centro de iniciação e controle da vida econômica, política e cultural que tem atraído em seu interior pessoas e atividades diferentes. Para Wirth (2005, p.2), “uma definição de cidade sociologicamente significativa busca selecionar aqueles elementos do urbanismo que o caracteriza como um modo distintivo da vida humana de grupo” (tradução minha).
Foto de Thomas Seiki Ueda no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Como as cidades grandes vivem equilíbrios instáveis, a mulher é a mais prejudicada nessa crise crônica citadina porque precisa constantemente se adaptar a esses processos. A cidade é reservada ao homem. Essa afirmação explica porque a mulher não encontra seu lugar na cidade. Reflete como o machismo e o racismo são os responsáveis centrais dessa desigualdade que infringe os direitos de ir e vir, o direito à cidade e à dignidade humana da mulher.
Uma forma de inclusão da mulher na cidade são os projetos urbanísticos com creches, escolas, salão de cabeleireiro, locais para alojamento de brinquedos das crianças, regularização das ocupações, locação social, ou seja, agregação de políticas de casas acessíveis e financiamentos mais baratos para as mulheres observando que é a categoria de gênero que têm menor rendimento financeiro devido à discriminação sofrida por elas no mercado de trabalho. Observa que as bolsas aluguel distribuídas por governos nos casos de remoções são insuficientes para suas moradias, principalmente aquelas que têm filhos.
Políticas educativas de respeito à mulher são necessárias, cujo objetivo é de informar os agressores que suas atitudes são invasivas, nocivas e criminosas, afetando negativamente a mulher. O combate ao machismo inclui a conscientização dos homens quanto às suas práticas violentas. Por isso, é indispensável o envolvimento de homens nessa luta pelo compromisso ético e social de erradicação das manifestações machistas. Para tanto, o Estado precisa assumir sua parcela de responsabilidade, inclusive que é machista e racista dentro de suas esferas institucionais, o que corrobora para o insucesso das Delegacias de Atendimento às Mulheres (DEAM) e a falta de instituições de atenção à mulher em muitas cidades.
Notas
(1) Esse texto é parte de um ensaio entitulado ” A cidade para mulheres” , apresentado ao Segundo Seminário Fluminense de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF).
(2) Inspirada em uma manifestação que reuniu 850 mulheres que marcharam 200 quilômetros, pedindo, simbolicamente, “Pão e Rosas”.
(3) Julio Jacobo Waiselfisz analisou dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) e da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde referentes ao ano de 2011.
(4) Para fins de compreensão: a “mulher” nesse estudo é a categoria sexual biológica e identitária. “Gênero feminino” é uma categoria social, a qual a mulher identifica como a categoria sexual biológica conferida ao feminino. Não é minha intenção discorrer sobre os conceitos de todas as categorias tratadas aqui.
Referências
- JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
- PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1948, p. 27-67.
- VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol. As mulheres brasileiras no início do século XXI. In: RAGO, Margareth;
- VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de (Org.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
- WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012 – Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil (.pdf).
- WIRTH, Louis. El urbanismo como modo de vida (.pdf). Bifurcaciones: revista de estudios culturales urbanos, n. 2, outono, 2005.
Autora
*Keila Meireles dos Santos é mulher negra, feminista e aluna de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF).
Fonte: Blogueiras Feministas