por Ana Cristina Duarte Pagamento por produtividade: muitos plantões médicos são remunerados por produtividade, ou seja, se nascer no plantão, a grana vai para aquele plantão. Se não nascer antes de terminar o plantão, se passar para o plantão seguinte, quem ganha o valor do parto é a equipe do plantão seguinte. O médico que passou o dia ali aguardando o parto e resolveu não operar, não ganha nada.
“Limpeza do plantão”: prática que ocorre em muitos hospitais, onde o obstetra opera todas as mulheres antes de terminar o plantão, para terminar o dia com tudo “limpo”, sem mulheres em trabalho de parto para a equipe que assume em seguida. Também acontece muitas vezes perto das 23h-0h, para que a equipe possa ir dormir sem ser incomodada durante a noite.
Falta de anestesista ou de obstetra: em muitas cidades pequenas não há equipes morando no local. Então, para que não haja risco da mulher entrar em trabalho de parto em um dia que não tem médico na cidade, agendam-se todas as cesarianas para o dia da semana em que os médicos estão de plantão.
Falta de especialistas: em hospitais em que se atendem nascimento de bebês de alto risco, como não há especialistas de plantão 24/7, os médicos preferem marcar as cesarianas para os dias e horários onde os especialistas estão presentes no hospital, assegurando assim que o recém nascido possa ser imediatamente atendido.
Pacotinho cesárea no SUS: alguns médicos ainda têm a prática (ilegal) de vender cesarianas a serem efetuadas dentro do SUS. A mulher paga direto para o médico, em dinheiro, e ele agenda a cesárea.
Ausência de analgesia de parto: apesar do direito legal à analgesia, na prática as mulheres não têm direito. E diante da ameaça de um parto torturante, com todo tipo de intervenção, e sem o direito a alívio da dor, as mulheres preferem fugir do parto normal oferecido no SUS.
Falta de experiência: muitos hospitais escolas, como o Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo, ostentam taxas de cesáreas próximas de 65%, ou até mais. Em geral isso se dá pela falta de experiência da equipe em lidar com o parto normal em situações diferenciadas como o parto de gêmeos, parto de bebês grandes, de prematuros, de mulheres com cardiopatias ou outras doenças. Sem conseguir aplicar as evidências diretamente, quer por medo, quer por falta de prática, acabam recorrendo à cesariana com muita facilidade. No final os médicos saem sabendo fazer cirurgias, mas não sabem atender um parto fisiológico, sequer conhecem os tempos de um parto natural, sem indução.
Estrutura dos hospitais privados: o que faz o lucro das maternidades privadas é o agendamento prévio das cesarianas. Os hospitais não só recebem mais dos planos de saúde por esses procedimentos como também conseguem maximizar o uso dos leitos. Convém lembrar que a UTI neonatal e o banhos de luz são igualmente muito bem remunerados pelos seguros e planos, de modo que a cesariana acaba sendo, de longe, o mais lucrativo dos procedimentos de maternidade. O parto normal ocupa salas e enfermagem por muito tempo, tem pior remuneração pelos planos de saúde e é necessário que o hospital tenha vários leitos disponíveis, sem ocupação, aguardando mulheres que podem ou não entrar em trabalho de parto.
Medo das mulheres: depois de ouvir depoimentos incontáveis de violência obstétrica sofrida por conhecidas, muitas mulheres preferem juntar um pouco de dinheiro e pagar por uma cesariana agendada. Apesar dos riscos, apesar da dor da recuperação, não ter que passar por humilhação, dor, ocitocina, exposição, vergonha, compensa qualquer sacrifício, inclusive o financeiro. Uma cesariana hoje pode ser comprada por R$ 2.000,00 em várias cidades.
Remuneração (falta de): os planos de saúde pagam por volta de R$ 300 reais por um parto. Não compensa financeiramente para o médico conveniado. A solução é marcar mais de uma cesárea num só dia, sem comprometer o consultório e a vida privada. Alguns são honestos e já falam logo de cara. Outros vão seguindo o pré natal com frases vagas sobre o parto e no ultrasom de 37 semanas acabam “descobrindo” uma boa razão para marcar a cesariana para a semana seguinte. O parto normal pode até ter uma melhor remuneração, mas não é um prêmio de R$ 100 reais que fará um médico abdicar de sua agenda, vida familiar, consultório, plantão, para trocar três cesarianas marcadas, por três fins de semana dentro de um centro obstétrico.
Medo do parto: muitos obstetras tem medo do parto normal e acham a cesariana mais “controlável”. Apesar de todas as evidências científicas, acabam sendo contaminados e às vezes congelados por experiências traumatizantes do passado. Não só não conseguem mais aguardar o parto, como recomendam a cirurgia cesariana para amigas, parentes, esposa, etc..
Litigância (medo de processo): historicamente no Brasil não se processa um médico por um mau resultado em uma cesariana, afinal ele fez todo o possível, usou a máxima tecnologia. No entanto qualquer resultado ruim de um parto normal é visto imediatamente como erro médico e os processos encaminhados ao CRM. Se um médico tira um bebê de 38 semanas e este vai para a UTI por desconforto respiratório, a sociedade em geral acha que ele salvou o bebê. Se um médico aguarda um parto normal e o bebê tem paralisia cerebral, não podendo (e não há como) provar que o evento foi anterior ao parto, a culpa certamente recairá sobre o parto.
Cultura da cesariana: na sociedade em geral, mesmo entre pessoas de grau educacional elevado, a cesariana é vista como algo melhor, mais seguro, normalizado, banalizado. Nas camadas menos favorecidas, ela é vista como bem de consumo, algo que só as mulheres ricas possuem, e que portanto deve ser melhor, mais desejável. A cesariana está nas TVs, novelas, nas resistas para mães (Sem Culpa). O parto normal é retratado como a opção nobre porém sofrida. Coisa de personagem que se perde na tempestade e vai parar numa choupana. As atrizes e famosas fazem cesariana.
Desinformação gerando medo: as mulheres tem pouca informação sobre o processo de gravidez e muitas ficam imersas no medo de algo acontecer. Esse medo inominável e incomensurável também é congelante e não permite que as mulheres duvidem de seus médicos, quando esses indicam a cesariana por “cordão enrolado”, ou que enfrentem a família/marido e escolham outro obstetra no final da gestação. O medo é tão grande que basta a promessa de salvação feita por seu médico para que ela entregue seu corpo e todo o seu poder a essas mãos alheias.
Inoperância da ANS: a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que deveria regular as práticas erradas no setor privado simplesmente ignora o problema, ou promove medidas tão inefetivas, que o resultado tem sido, nos últimos anos, contrário ao desejado, ou seja, aumento das taxas de cesariana. Com programas que dão pontos positivos, mas não encontram soluções efetivas, o fato é que os planos de saúde não vêem qualquer razão para saírem da zona de conforto dos 90% de cesarianas.
Conivência do Ministério da Saúde: a força com que o M.S. lutou pela amamentação no Brasil, e que poderia ter sido utilizada também na luta pelo direito a um parto digno para todas as mulheres, simplesmente esmorece ou nem chega a ser recrutada. É como se não fosse conveniente entrar em confronto com determinados setores. Por isso as medidas são sempre amenas, de “sedução”, promessas de verba para reformas de centros obstétricos. Apesar de que essas medidas também são bem-vindas, o fato é que não haverá mudança significativa nas práticas sem medidas radicais do Ministério da Saúde.
Entre outras medidas precisamos (em ordem aleatória):
1) Segunda opinião na indicação da cesariana
2) Plantões nos hospitais privados que permitam um parto humanizado e digno a uma mulher que opte por usar o médico plantonista ao invés de seu obstetra do plano (mal remunerado)
3) Fiscalização de prontuários por comissões específicas (existem indícios de que a indicação da cesariana muitas vezes não casa com o que foi dito à gestante para justificar a cirurgia)
4) Planos de saúde começarem a glosar as cesarianas sem indicação
5) Fiscalização pelos planos de saúde das UTIs neonatais (onde parte razoável dos bebês está internada por desconforto respiratório advindos de cesarianas eletivas não necessárias)
6) Programas dos planos de saúde para partos humanizados, com direito a analgesia peridural a pedido materno.
7) Remuneração dos planos de saúde para partos normais atendidos por enfermeiras obstetras e obstetrizes
8) Direito de internação de gestante para parto com enfermeiras obstetras/obstetrizes
9) Direito à informação clara sobre as taxas de cesariana de cada hospital e cada médico credenciado dos planos de saúde
10) Humanização DE FATO dos partos no SUS, aumento dos Centros de Parto Normal geridos e atendidos por enfermeiras obstetras/obstetrizes, no paradigmas do parto humanizado, natural, com o menor número possível de intervenções, com a presença de acompanhante e doula (se desejado).
11) Direito à analgesia peridural no SUS
12) Treinamento médico adequado para o parto natural, fisiológico
13) A ANS deve estabelecer metas para redução de cesarianas, e prazos para o cumprimento das metas. Se os prazos não forem cumpridos, cabem multas aos planos de saúde. A agência pode até fornecer um estudo específico para a aplicabilidade de medidas de redução de cesariana, e propor a redução gradual: de 92% para 70% no primeiro ano, 50% no segundo, etc. EXIGÊNCIA do plantão presencial multiprofissional (obstetra, neonatologista, anestesiologista) e multidisciplinar (EOs e obstetrizes) que devem ser disponibilizados em todos os planos de saúde.
14) Ministério da Saúde precisa se posicionar claramente a respeito do serviço privado. A ANS gerencia planos, não prestadores privados. É preciso gerenciamento do setor privado, tanto quanto do público. Há que se exigir resultados.
15) A ANVISA precisa rever a RDC 36, que regulamenta funcionamento de serviços obstétricos. A imensa maioria dos hospitais brasileiros não segue as diretrizes. E a complexidade para os serviços de baixo risco acabam inviabilizando que se faça uma casa de parto privada nos moldes das européias. O custo básico inviabiliza.
Neste exato momento, sem medidas drásticas por nenhum setor, as taxas de cesariana no Brasil continuarão subindo, assegurando ao nosso país o título eterno de Campeão Mundial.
2012 – 52%
Ana Cristina Duarte
Obstetriz em São Paulo – SP
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Fonte: GNN
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