Para Bernadete, são muitos os problemas enfrentados pelas mulheres na região Norte, como falta de serviços públicos de saúde e impacto de grandes obra
Mulier – Bernadete, poderia nos falar sobre suas origens, formação e atuação no movimento social? Bernadete – Nasci em Farol, Campo Mourão, Paraná, na zona rural. Sou filha de lavradores do sul, que migraram para São Paulo, capital, onde cresci. Estudei em escola pública desde os seis anos e ingressei em movimento de igreja aos 15. Entrei para a faculdade de Psicologia em 1982 e logo me vi inquieta para atuar mais próxima ao povo da periferia. Com 16 anos comecei um trabalho em favelas, com mulheres e pessoas não alfabetizadas. Aos 21, decidi abandonar tudo e ser freira. Fui para a Bahia. Fiquei quatro anos atuando em hospitais e com pessoas com necessidades educacionais especiais, mas sempre tinha vontade de atuar dentro mesmo das favelas. Eu e uma irmã que conheci em Salvador, trabalhando no Hospital de Irmã Dulce, resolvemos fazer um trabalho na baixada santista. Assim, voltei para a favela, num mangue em Guarujá. Lá e em Vicente de Carvalho, formei grupo de mulheres, ajudei a constituir a associação Carolina de Jesus e ingressei num partido de esquerda. Assim fui me tornando cada vez mais “da luta” pé no chão e menos religiosa. Fiz votos como missionária secular, mas em 1992 deixei definitivamente o Instituto Missionário. Mulier – Quando e por que começou a se interessar pela causa das mulheres? Bernadete – Sempre fui feminista. Aprendi com minha mãe, que foi operária em São Paulo e precisou lutar por direitos com suas companheiras. Ela mesma acionou o sindicato, pois foi mandada embora grávida. No entanto, minha mãe nunca mais voltou a trabalhar fora e se tornou dona de casa, cheia de princípios de dignidade e valorização, os mesmos que queria ver nas filhas. Achei isso uma pena muito grande. Sempre senti, desde menina, que homens e mulheres são iguais, e como fui educada em um ambiente de paz e cordialidade entre mulheres, com um pai generoso, benigno e não violento, achei que reunia condições de assumir uma causa como a do feminismo, a qual no início ainda não tinha para mim um nome. Atuei em favelas, fui apoiadora e facilitadora de movimentos populares, participei do Movimento de Não Violência, fui formadora no extinto Serviço Paz e Justiça (SERPAJ – SP) e ingressei na Pastoral da Mulher Marginalizada em 1991. Comecei visitando as mulheres em situação de prostituição e o povo de rua do centro de São Paulo, com a Fraternidade AIDS na Rua. Mas decidi mesmo ser feminista participando de seminários de teologia feminista na faculdade. Aí comecei a ler Rosemary Ruether, Mary Hunt, Elisabeth Fiorenza, Ivone Gebara, Joan Scott, Elisabeth Badinter, Margareth Rago e conheci materiais das promotoras legais populares. No trabalho com as mulheres em situação de prostituição, criei vínculos. Com a Pastoral da Mulher Marginalizada aprendi organicidade, a estar sempre próxima das mulheres, preparar agendas, planos e grandes eventos. Com o Serviço Paz e Justiça e o Movimento de Não Violência aprendi estratégias, táticas, passos, firmeza permanente, articulação de lutas, mudança de correlação de forças e não me apequenar para que o coletivo cresça. Assim, quando comecei a participar do movimento feminista mesmo já pensava em atuar em uma linha mais popular, mais autônoma e que pensasse no “cotidiano” das mulheres como uma categoria muito importante para a nossa condição de sujeito e para nossa emancipação. Sempre pensei o feminismo em estreita ligação com a educação popular e com a não violência, assim como ainda o penso muito próximo da vida das mulheres pobres, cada dia menos coisa das academias e cada dia mais coisa das lutadoras populares. Com o movimento feminista tenho aprendido a olhar para as pensadoras antigas, a produzir conhecimento e ações novas permeadas pelo respeito aos princípios basilares como a solidariedade, a partilha do conhecimento, a construção prioritária do coletivo, a treinar uma dificílima horizontalidade nas realizações e nas gestões em geral. E um pouco a presumir o futuro. Mulier – Você preside a Casa Oito de Março, sediada em Palmas (TO). Há quanto tempo desenvolve esse trabalho e quais os objetivos? Bernadete – A Casa Oito de Março foi fundada em 8 de março de 1998, começamos a preparar o terreno cerca de dois anos antes com creches comunitárias. Conheci muitas mulheres sozinhas, chefes de família desempregadas. Naquele tempo ainda não existia Bolsa Família, e o Tocantins não tinha políticas para as mulheres. Não havia creches e o índice de gravidez na adolescência, com exploração sexual comercial de meninas, era e ainda é muito elevado. A organização que eu atuava era ligada à igreja, mas foi fundada por uma religiosa autônoma, sem vínculo com congregações e que tinha seu próprio dinheiro. Ela ajudou a construir as primeiras creches e ocupações nas comunidades de Palmas. Logo tiraram ela, e eu aceitei o desafio de ocupar sua função (mas, sem dinheiro). Fiz o projeto da Casa Oito de Março para ser mais um campo de ação daquela entidade. Resolvemos abandonar assistencialismos e fazer um trabalho mais planejado, organizado, de cobranças, denúncias, reivindicações e atendimentos. Conferências, seminários, manifestações, oficinas, pesquisas e as terapias de desabafo com meninas grávidas. E o trabalho de prevenção, em saúde, com as mulheres em situação de prostituição. Isso tudo incomodou alguns setores locais, inclusive do meio popular e da igreja. Em 1999, fomos “convidadas” a se retirar, para o local ser usado para outros fins. Ficamos em um puxadinho de madeirite por cerca de dois meses. Quando mudamos para a Casa atual, até hoje com estrutura precária, percebemos que deveríamos fundar algo para garantir trabalho, para não ficar à mercê das mudanças de diretoria. Assim, fundamos oficialmente, em 2000, a Entidade Casas da Mulher no Tocantins. Aprendemos um pouco a fazer gestões por ações públicas e serviços, a articular o movimento feminista e, inclusive, a expandir nossas articulações e ações com outros Estados da Amazônia. Mulier – Quais os principais trabalhos desenvolvidos pela Casa Oito de Março atualmente e como fazem para se manter? Bernadete – Militamos muito pelos conselhos de direitos da mulher, fazemos parte do Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres, e lutamos para espaços como Casa Abrigo e Centros de Referência, realizamos com o Fórum de Mulheres os monitoramentos da violência contra as mulheres e continuamos nosso trabalho cotidiano de formação, educação popular feminista com os cursos de promotoras legais populares. Levamos adiante um projeto intitulado “Em busca da noite” de atuação com as mulheres em situação de prostituição, para um trabalho de prevenção na área de saúde e de apoio à auto-organização delas. Temos o projeto “Meu Ventre, meu templo” de levantamento de dados e pesquisa sobre direitos sexuais e reprodutivos, adolescência e exploração sexual comercial, com recorte na questão do aborto, produção de cartilhas e vídeos. Mantemos cursos para mulheres em situação de vulnerabilidade, como cursos de cabeleireiras, manicures, idiomas, modista, artesanato regional, e temos uma lojinha solidária, além de um brechó permanente desde a fundação. Hoje temos o projeto “Bela Dandara” de promoção e reflexão sobre a beleza e estética negra como contingente libertador e de combate ao racismo. Ademais, atuamos em articulações no entorno de questões que tocam o feminismo: luta contra os impactos dos grandes projetos, economia solidária, segurança alimentar e a luta contra a feminização da epidemia da AIDS. Nosso cotidiano se expressa bem nas notícias veiculadas em nosso site (www.casaoitodemarco.org.br), no facebook e no twitter. Não temos funcionárias, temos voluntárias(os) fiéis. Sobrevivemos atualmente de pequenas porcentagens nos cursos organizados, das vendas em nosso brechó e de pequenos projetos enviados para organizações parceiras. Mulier – Quais os maiores problemas e desafios encontrados pela população feminina no estado do Tocantins? Bernadete – Os desafios são muitos. Desde a questão do acesso à educação, saúde e trabalho, como o combate à violência, exploração sexual comercial, tráfico, racismo e os impactos generalizados dos grandes projetos de desenvolvimento. A falta de políticas públicas estaduais e de organismos executivos de gestão e mesmo outros órgãos sensíveis às questões de gênero e ao feminismo, a fragilidade dos movimentos de mulheres e do movimento feminista, a falta de apoio aos movimentos sociais, uma cultura política baseada ainda em assistencialismo, em nepotismo, clientelismo, enfim, isso tudo faz com que tenhamos esperança muito mais nas novas gerações, o papel da educação nisso, do que propriamente esperar grandes mudanças na cultura política, social e econômica local em curto e médio prazo. Mulier – As regiões Norte e Nordeste do país vivem um processo de crescimento econômico e de investimentos em grandes obras. Isso tem melhorado a vida das mulheres na região? Bernadete – Não é verdade que essas grandes obras melhoram a vida das mulheres. Elas geram pouquíssimos empregos e, geralmente, para os homens. Por outro lado, deixam impactos negativos que atingem muito mais as mulheres e seus filhos, como desterritorialização, indenizações injustas, perda dos referenciais de cultura e economia, exploração sexual, DSTs-AIDS, gravidez na adolescência, dependência química e alcoolismo. O modelo desenvolvimentista das grandes obras é imposto unilateramente sobre os ombros de brasileiros e brasileiras, quem mais sofre são milhões de mulheres pobres, aprofunda desigualdades, provoca violência, mazelas sociais em favor de investidores, da circulação de mercadorias e da própria exportação e propicia espaço para mercantilização do corpo das mulheres e de sua autonomia, liberdade e poder de decisão. Assim, podemos dizer que esse modelo retarda o surgimento de uma sociedade igualitária para homens e mulheres, de uma sociedade cujos direitos humanos das mulheres não somente sejam respeitados como promovidos. Há um número crescente de denúncias sobre aumento de violência contra a mulher e prostituição infantil nas regiões onde estão sendo erguidas grandes obras de infraestrutura. Também encontramos meninos e travestis em situação de exploração e de grande vulnerabilidade nessas áreas, é um campo ainda muito vasto a ser pesquisado. Mulier – Historicamente são regiões de concentração indígena. Qual a situação dessas populações, especialmente as mulheres? Bernadete – Sim, estamos em uma região onde ainda subsistem, não tantas quanto gostaríamos, várias etnias indígenas. No Tocantins são sete etnias, que tentam resistir à pressão desses grandes projetos e obras, lutam por acesso a direitos sociais mínimos, mas faltam organizações indígenas autônomas fortes, e as mulheres indígenas ainda não estão auto-organizadas. Cresce o número de estudantes indígenas nas universidades, eles se articulam. Recentemente, vimos no Brasil, e ainda estamos vendo, o grande apoio à luta do povo Guarani-Kaiowá para a demarcação e permanência em suas terras, percebemos a solidariedade dos movimentos sociais brasileiros, em especial do movimento de mulheres a essa luta. Isto tudo tem sido um incentivo e tem fortalecido a organização indígena. Mulier – Você acha que as brasileiras estão mais conscientes de seus direitos? Bernadete – Claro que sim. As brasileiras já estão nascendo com um berço mais propício à vivência e consciência de seus direitos. Um pouco mais de política social tem colaborado, mais acesso à educação, a globalização da informação, etc. Mas, ainda precisamos de mudanças drásticas no sentido a fomentar a igualdade e a derrocar de vez coisas como machismo, violência, racismo e fundamentalismos de diversas ordens. As mulheres precisam acessar mais direitos, exigir respeito ao Estado Democrático de Direito. Precisam participar da política, vivenciar a igualdade no campo da divisão sexual e social do trabalho e ainda sistematizar suas produções no campo da economia, política e em todas as áreas do conhecimento e da realidade social. Por outro lado, as instituições e estruturas amplas do Brasil precisam assumir uma visão feminista, fazer a reforma política e superar o modelo neocolonial-patriarcal-capitalista para que possamos dizer: as mulheres brasileiras não somente estão mais conscientes de seus direitos, como têm acesso a condições de vivenciá-los em sua plenitude.
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Fonte: Jornal Mulier – www.jornalmulier.com.br
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