Em uma guerra que já dura dois anos e soma mais de 70 mil mortos, as mulheres sírias estão sendo usadas como um instrumento para questões de interesse militar. A constatação é de um relatório da Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH) em missão especial à Jordânia, para onde seguem as refugiadas sírias. O relatório foi lançado nesta terça-feira 9 e aponta sequestros, abusos e estupros como maneiras de obter informações estratégicas. Os abusos são praticados tanto por parte das forças do exército de Bashar al-Assad quanto pelos rebeldes, destaca o documento. O estudo foi realizado entre os dias 13 e 22 de dezembro de 2012. Uma das integrantes da missão, a jurista Jeanne Sulzer, falou a CartaCapital. Segundo ela, “as mulheres estão sendo sistematicamente estupradas e isso tem sido usado pelas forças armadas e também pelos rebeldes”. “Elas estão claramente sendo usadas como um instrumento na linha de frente dos interesses dessa guerra”, relata. A prática da violência contra mulher visando conseguir algum avanço dentro do conflito é utilizada por ambas as partes, mas o relatório destaca casos de presença das forças de segurança sírias em diversos casos de estupros públicos ou estupros forçados, onde homens são forçados a violentar membros de sua própria família. Relatos de médicos da Syria Bright Future Association, que estão trabalhando no tratamento de vítimas de estupros por familiares, apontaram a presença das Forças de Segurança da Síria nos crimes. Meninos são forçados a estuprarem suas irmãs ou obrigados a as assistirem serem estupradas por membros do exército. Quando se negam, são mortos para que sirvam de exemplo. O estupro em público ou na frente de familiares foi reportado pela FIDH como o primeiro e principal motivo para que as mulheres sírias decidam deixar o país. Para a jurista, a influência externa pode ser mais decisiva na questão. “Claramente mais pressão pode ser colocada nas autoridades sírias. Os advogados estão tentando focar nos crimes sexuais, mas o fato é que é muito difícil documentar isso”, diz ela. “A comunidade internacional não pode esquecer que estes são crimes internacionais. Uma série de civis sírias está sendo alvo de crimes.” Outro ponto em que a comunidade internacional precisa se fazer mais presente é na prestação de apoio às vítimas. “Especialmente na Jordânia as mulheres precisam de um conjunto de assistência nos campos de refugiados. Nos preocupamos com o fato de essas mulheres não terem acesso a auxílio médico, psicológico e social”. A situação daquelas que permanecem dentro da Síria é ainda pior, já que permanece obscura mesmo para as organizações e instituições de direitos humanos que trabalham na região. Nesse meandro, a importância dos BRICS é destacada pela organização, que evidencia o aumento da influência dos posicionamentos dos países emergentes no cenário mundial. “Particularmente para os BRICS, e o Brasil é parte disso, gostaríamos de afirmar que as fronteiras estão abertas para permitir o acesso a ajuda humanitária, incluindo serviços sociais que possam ajudar essas mulheres vítimas de violência sexual, tanto na Síria quanto fora da Síria nas comunidades de refugiadas. É o que mais nos preocupa e é a nossa maior necessidade agora. Claro que a prioridade maior é de que os crimes parem, mas a ajuda humanitária é necessária”, enfatiza ela. Abordagem A missão foi composta por cinco mulheres com experiência em violência de gênero e direitos humanos, duas delas com fluência em árabe e que intermediavam as conversas do grupo com as refugiadas. A delegação visitou os três campos oficiais de refugiados na Jordânia: Al Zaatari (Mafraq Governorate), King Abdullah Park and Cyber City (Irbid Governorate). Foram entrevistadas 75 refugiadas que tinham deixado a Síria entre junho e dezembro de 2012. Todos os abusos e crimes sofridos eram recentes. A abordagem teve de ser realizada de maneira extremamente cuidadosa, segundo o grupo. O extremo conservadorismo da sociedade síria foi responsável por constranger as mulheres a se abrir. O documento descreve: “As mulheres relutam em compartilhar esse tipo de sofrimento, muito por causa do estigma social e por causa do medo de exclusão que ocasionalmente afeta as vítimas.” Jeanne também fala sobre o pavor da exclusão, que começa a assombrá-las desde meninas. Por esse motivo, foi traçada uma metodologia particular para esta missão. “Nós tínhamos uma série de precauções e metodologias na abordagem. Estávamos lidando com pessoas que acabavam de chegar à Jordânia, sob as mais difíceis circunstâncias, incluindo perder membros da família em situações extremamente violentas”. A solução foi propor conversas em grupo, onde um depoimento ia puxando o outro, até que as mulheres se sentissem seguras para expor seu passado e suas memórias dolorosas. Muitas delas descreveram como “experiências terríveis” não apenas o que passaram na Síria, mas a jornada em si de sair da Síria para a Jordânia como refugiadas. “Elas pareciam muito interessadas em ouvir as histórias, percebiam que não eram as únicas e que tinham medos em comuns”, diz Jeanne. Os discursos aconteciam, na maioria das vezes, em terceira pessoa, sobre o pressuposto de que era a história de uma amiga, de uma irmã ou de uma vizinha, mas Jeanne diz que as repórteres da missão, não raro, sentiam que o relato era na verdade autobiográfico. “Algumas vezes percebíamos que elas falavam delas mesmas. A emoção em seus olhos delas deixava isso claro. Isso mostra o medo da estigmatização, de simplesmente se referir a esse tipo de violência.” O medo envolve uma série de fatores e está fortemente ficando na cultura da sociedade e nos preceitos religiosos em que eles se pautam. Entrar em uma delegacia já é considerado vergonhoso, por qualquer motivo que seja. Delatar um crime sexual, então, é algo que ultrapassa a esfera em que está circunscrito o conservadorismo sírio. O relatório aponta que a dificuldade em registrar o abuso e a violência sexual precede à ineficiência dos órgãos públicos, pois a maioria das mulheres não chega a mencionar o fato. Inclusive, menciona que homens vítimas de violência sexual denunciam seus agressores com mais frenquência. Uma prática cada vez mais usual é o rapto de mulheres para o ganho de informações. “As mulheres estão sendo sequestradas e o simples medo do sequestro, não apenas o crime em si, mas a percepção do medo pelas pessoas é um instrumento de propósitos militares. Estão colocando o medo do seqüestro nas famílias”, explica Jeanne. De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a violência tem se intensificado entre os grupos rebeldes e as forças de Bashar al-Assad, levando a agitação civil à situação de conflito armado. O último mês de março foi o mais mortífero desde o início da guerra, há dois anos, com cerca de 6 mil mortos, segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos. Por causa do conflito, em março deste ano chegou a 1 milhão o número total de sírios que já deixaram a terra natal, segundo dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). |
Fonte: Carta Capital
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