Um ano e quatro meses após a lei que obriga unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) a atenderem vítimas de estupro ser sancionada pela presidente Dilma Rousseff, muitas unidades de saúde não realizam o procedimento conforme a legislação, afirma Ana Rita Souza Prata, defensora pública e coordenadora auxiliar do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher de São Paulo.
“O serviço não funciona. As vítimas chegam às unidades geralmente mais próximas de suas casas, não são informadas corretamente sobre os procedimentos e nem encaminhadas aos centros de referência”, explicou Ana Rita ao iG. Por causa da falta de atendimento em prontos-socorros, UPAs (Unidades de Pronto-Atendimento), UBSs (Unidades Básicas de Saúde), e CAPs (Centros de Atenção Psicossocial), os hospitais de referência – como o Pérola Byington, na região central de São Paulo – acabam tendo a demanda aumentada por conta dessas vítimas que percorrem quilômetros em busca de uma solução para o seu sofrimento. O ginecologista Jefferson Drezett, coordenador do projeto Bem Me Quer, referência no atendimento de mulheres e crianças vítimas de violência sexual do Pérola Byington, afirmou que há uma média de 14 novos casos recebidos diariamente no hospital. Metade deles de outros municípios. “Muitos serviços de saúde têm ignorado a lei e continuam se negando a atender essas mulheres. A grande demanda vinda de outras regiões do Estado é um indicativo de descumprimento dos direitos das mulheres”, avaliou. Desde que o Pérola começou a realizar esse tipo de atendimento, em 1994, mais de 34 mil vítimas já passaram pelo local. O Ministério da Saúde informou que são oferecidos atendimento às pessoas em situação de violência sexual pelo SUS. Segundo o órgão, há atualmente no País 101 serviços de referência para atenção integral às pessoas em situação de violência sexual já cadastrados. Ao chegar a esses locais, a paciente precisa ser acolhida por uma equipe multidisciplinar – médico, enfermeiro, assistente social, psicólogo, farmacêutico e técnico em enfermagem – e ter acesso a serviços como atendimento psicológico, entrega de pílula de emergência para evitar uma gravidez indesejada e um coquetel anti-HIV. Caso não consiga atendimento em uma unidade do SUS, a vítima deve prestar queixa na Delegacia da Mulher, Ministério Público ou Defensoria Pública. “É muito importante que as pessoas prestem uma queixa. Até para monitorarmos a qualidade do serviço”, explicou Ana Rita. Por meio de um comunicado, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo esclareceu que todas as unidades hospitalares ligadas à pasta estão aptas a realizarem atendimentos a pacientes vítimas de violência sexual. Os casos com necessidade de acompanhamento ambulatorial são encaminhados para unidades de referência, como o Hospital Pérola Byington. Aborto legal No caso das vítimas que engravidam após a agressão, o serviço de aborto deve ser realizado sem a exigência de um B.O. (Boletim de Ocorrência) ou de uma ação judicial. O procedimento pode ser feito até a 20ª semana da gestação, de acordo com o Ministério da Saúde. “A gente entende que a palavra da mulher vale mais do que o B.O.. É claro que a equipe de acolhimento vai conversar com essa mulher, perceber se o contexto que ela relata é verdadeiro. Mas essa conversa não pode se transformar em inquérito”, avalia a defensora pública. Mas nem sempre essa é a realidade. Silvia Dantas, mestra em serviço social e integrante do Fórum das Mulheres de Pernambuco, relatou que no Recife, por exemplo, muitas mulheres acabam voltando para casa sem uma solução por conta da abordagem feita pelos profissionais de hospitais capacitados a oferecer esse tipo de procedimento. “As mulheres reclamam da falta de humanização nos atendimentos. Elas chegam às unidades de saúde e reclamam que são mal atendidas. Existe ainda a desconfiança de que, se uma mulher entra no hospital em situação de aborto, não importa o caso, é porque ela provocou a gravidez”, explica Silvia. As vítimas que conseguem se submeter ao aborto também reclamam da falta de continuidade da consulta, inclusive depois da realização do procedimento. Muitas dizem não ter sido chamadas para voltar ao hospital e receber acompanhamento e planejamento reprodutivo, de acordo com Silvia. “Há hospitais que cumprem a lei. Mas ela não está sendo aplicada em todo o Estado, como manda a normativa”, afirmou. Sem B.O. De acordo com o Ministério da Saúde, atendimento às vítimas de violência sexual deve dispensar a apresentação do Boletim de Ocorrência, “cabendo às instituições de saúde, conforme a Lei nº 12.845/2013, Art. 3º, III, estimular o registro da ocorrência e os demais trâmites legais para encaminhamento aos órgãos de medicina legal, no sentido de diminuir a impunidade dos autores de agressão”, disse o órgão em comunicado. No início do ano, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) apontou que o Brasil registra média de 87 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes por dia. Segundo o Disque 100, foram registradas 37.726 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes em todo o Brasil em 2012. Em 2013, esse número caiu para 31.895, redução de 15,46%. Violência contra a mulher Dados do 8º Anuário Nacional de Segurança Pública, o Brasil pode ter tido 143 mil casos de estupro em 2013. O número é uma projeção com referência aos 50.320 casos registrados. Para Gabriela Rondon Rossi Louzada, pesquisadora do Anis, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero de Brasília, e especialista em violência contra a mulher, questões culturais, como a posição dominante imposta aos homens desde criança, influenciam nessa onda de violência, principalmente a sexual, contra a mulher. “O estupro não é um ato de descontrole do sexo, mas de controle pela dominação do corpo da vítima. É a moral patriarcal e machista que fabrica corpos com diferentes marcadores de poder: corpos masculinos como possuidores de si e capazes de dominar corpos femininos e infantis, objetos de alienação”, analisa ela. Para o ginecologista Jefferson Drezett, é essa vulnerabilidade que torna a criança a maior vítima dos crimes sexuais. De acordo com levantamento do Bem Me Quer, metade das 420 vítimas atendidas por mês são crianças com idade entre 5 e 12 anos. “Há casos de recém-nascidos também. Não é raro acontecer”, afirmou. “A violência não é natural. Não é natural estuprar. Esse é um fenômeno da cultura. E ela pode ser reconstruída”, acrescentou. Amanda Campos |
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Fonte: Último Segundo
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