Em primeira visita ao Rio Grande do Sul, ministra discutiu luta antirracista e mulheres negras no poder
Uma noite marcada pelo protagonismo das mulheres negras. Assim foi o encontro desta segunda-feira (14), no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa do RS, que em sua lotação máxima recebeu a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, em sua primeira visita oficial ao estado. Mais cedo a ministra participou de uma reunião com movimentos populares no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), pautando a revisão da Lei de Cotas, o combate à violência política de gênero e as investigações do assassinato de sua irmã, a ex-vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, morta em 2018. Também foi recebida pelo governador Eduardo Leite (PSDB), no Palácio Piratini.
Promovido pelo mandato da deputada federal Daiana Santos (PCdoB/RS), a roda de conversa intitulada “Desafios atuais das pretas no poder” foi realizada em alusão ao Julho das Pretas. No palco repleto de mulheres dos mais diversos movimentos sociais do estado, a ministra foi acompanhada da Daiana Santos, assim como das deputadas federais gaúchas Reginete Bispo e Denise Pessoa, ambas do PT, assim como das deputadas estaduais Bruna Rodrigues (PCdoB) e Laura Sito (PT).
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Ao abrir sua fala, Anielle saudou os ancestrais e disse estar orgulhosa de estar pisando a terra de Luiza Bairros (ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil entre 2011 e 2014). A ministra fez um relato da trajetória de sua irmã e o apoio que a mesma teve na família, assim como os embates após eleita.
“A gente tinha pouco dinheiro para fazer a campanha. Foi uma campanha desafiadora, assim como é para várias que estão aqui, e várias também que estão pensando em entrar. Tinha todo o desafio do orçamento e para além do desafio do orçamento tinha às vezes as próprias disputas internas, que é difícil a gente falar sobre isso, mas que tem que falar, com muito cuidado, com muita cautela”, expôs.
Após eleita, continuou a ministra, Marielle teve seu mandato marcado pelos embates, por sua orientação, por sua vestimenta, cabelo. “Eu estou fazendo esses três momentos porque, quando eu penso em desafio, eu nunca consigo deixar de imaginar o que as mulheres passam quando decidem se candidatar. Porque é o antes, o durante e o depois. Só que com a Marielle foi muito pior, porque foi uma campanha difícil, um ano e pouco de mandato, também muito difícil, e mataram ela. E todo ano que tem eleição, tentam matar minha irmã de novo. Quando a Marielle foi assassinada com cinco tiros na cabeça, três no corpo, na mesma noite eu recebi a primeira fake news da minha irmã”, relatou.
Desafios
Segundo ela, “os desafios atuais são muitos, a começar por nos mantermos vivas”. Por isso, defende a necessidde de apoiar uns aos outros. “Essas meninas precisam se reeleger, precisam ficar vivas, precisam ter autocuidado, rede de apoio. A Bruna fala do feminismo cotidiano, o quão difícil é estar nesse lugar, eu tenho duas filhas, uma de sete e outra de seis. Os desafios são imensos, são enormes, mas eles vão ser muito piores se a gente não continuar elegendo gente preta.”
Em sua intervenção a ministra citou escritoras negras como Maya Angelou, Vilma Piedade, bell hooks e Audre Lorde, como exemplos de como se fortalecer. Falando de uma de suas referências políticas, a deputada federal Benedita da Silva, questionou o por quê dela, com 40 anos de estrada, nunca ter sido cogitada para ser presidente do país.
“Nossa luta tem que ser coletiva”
“Eles têm um projeto, nós temos outro projeto. O projeto que a gente defende é que nenhuma mãe negra chore a morte do seu filho ou da sua filha. Para que não aconteça o que aconteceu com a Eloá, com o Thiago, de 13 anos, do Rio de Janeiro, as chacinas da Bahia, as chacinas de São Paulo. De nenhum estudante fora da escola, de escola fechada”, afirmou.
Para ela, infelizmente, vive-se um momento de muito ódio. Contudo é também de muito trabalho. “A gente vai precisar conscientizar ainda muita gente. Ano que vem tem mais um ano eleitoral e a gente vai precisar estar do lado de quem vai estar na linha de frente. Vai precisar colocar os corpos à disposição dessa batalha de rodar o país de estar junto, de proteger. Eu não desejo para ninguém que está aqui dentro o que aconteceu com a minha irmã. Não desejo a ninguém o que eu ouvi e o que eu ainda ouço da minha mãe de falar ‘eu não tenho mais vontade de viver’. Quero seguir lutando, mas sozinha eu não consigo”, disse. Nesse momento a plateia entoou em coro “companheira me ajude que eu não posso andar só, eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”.
A ministra também falou da atuação do ministério junto a outras pastas como da Educação, Desenvolvimento pessoal, Direitos Humanos, entre outros. “Nossa luta tem que ser coletiva. Estou entrando o meu melhor, seguindo os passos de quem veio antes de mim. Espero que a gente consiga eleger uma bancada negra em cada lugar desse país. Espero que as nossas mães não precisem chorar mais. É por isso que a gente está aqui para batalhar por dias melhores, por dias mais dignos. Para que a gente possa concretizar um projeto de país que está em curso ainda. E eles precisam entender que a gente não vai retroceder, não vai abaixar a cabeça, não vai voltar e não vai permitir que continuem matando os nossos filhos, filhas, irmãs, irmãos e tantas outras pessoas que a gente ama nesse lugar.”
Coletiva
Antes da roda de conversa a ministra atendeu à imprensa. Indagada sobre a revisão da lei de cotas aprovadas recentemente, e sobre a permanência das pessoas na universidade, Anielle disse que foi um momento histórico, frente ao receio que se tinha com o Congresso da forma como está composto. Ela ressaltou que o ministério queria ter colocado mais pontos e dialogado mais sobre a questão da permanência.
“Quando a gente fala de permanência, a gente tem que estar com o orçamento e tem que estar em conjunto com o MEC para que isso seja realizado. É impossível a gente pensar as cotas raciais sem pensar nas permanências de todos os povos porque a cota já é social e sempre foi. E uma das provas desse grande avanço é a gente ter conseguido diminuir para um salário mínimo e meio para um. E também pensar todas as questões raciais, de etnias, para indígenas, quilombolas, era essencial. Foi uma articulação de várias mãos”, afirmou.
Conforme enfatizou, não há como pensar em cotas sem pensar na permanência. “O nosso maior desafio com as cotas é isso, é você entrar e como que você se mantém. Para além de tudo, desde transporte, as impressões que você precisa fazer lá, até você se alimentar. Agora é hora da gente afinar”, pontuou.
Sobre a questão da representatividade das mulheres negras no poder, e do encontro com a vice-presidente da Colômbia, a Francia Márquez, Anielle disse que foi um momento histórico, para além das trocas América Latina, do reforço do combate à violência política. A ministra relatou que arancia, diariamente vive em violência política.
“Ela vem sendo ameaçada desde a campanha, perdeu pessoas da família por conta da violência política. Não é à toa que quando a gente fala do combate à violência política, que mais de nós estejamos numa mesa como essa. Mas para além de que a gente chegue lá, precisamos cuidar dessas mulheres para que elas permaneçam. Isso tem sido uma fala desde quando eu estava à frente do Instituto Marielle Franco, de 2020 para cá. Porque a Mari é, infelizmente, esse ápice da violência política, mas não isolado. Porque depois disso vem uma crescente do ódio, da polarização e dos ataques a essas parlamentares, das mais diversas, não só aqui no sul, mas tantas outras que seguem lutando firmemente por isso.”
Ela também citou a questão envolvendo a deputada Benedita da Silva (PT/RJ), que com seus 40 anos de vivência política até recentemente não sabia nomear o que sofria como sendo violência política, mas que desde seu primeiro mandato era vítima dele. “Se a gente pensar nela, ela foi senadora, governadora, está como deputada e ainda vive a violência. Não somente das pessoas xingarem ou vaiarem como aconteceu esse ano com ela, mas também do próprio trato do racismo, que ele não é somente estrutural, ele é organizacional, institucional, e tantos outros. E a gente precisa cada vez mais impulsionar mulheres negras para chegar nesses espaços. Não só porque a gente quer, mas porque as pautas com os nossos corpos precisam ter esse tipo de mulheres para poderem debater e pautar o que a gente merece, de fato, com dignidade, com acesso, com protagonismo e tantas outras coisas.”
A respeito do questionamento do movimento de estudantes quilombolas, que criticou recentemente a lei aprovada sobre critérios específicos da população quilombola não estarem especificados, a ministra ressaltou que houveram muitas revisões na lei. “O que não podia acontecer era não passar, esse retrocesso não podia ter. Agora acho que cabe com certeza entender quais são as demandas e caminhar junto, porque tem que ser coletivamente, não tem jeito.”
Na sequência indagada sobre o enfrentamentos em frente ao racismo ambiental, Anielle comentou que a equipe recentemente voltou da Cúpula da Amazônia. “Primeiro ponto, após o Censo Quilombola, que demorou 150 anos para sair, agora tem um número real de quantos quilombolas nós temos. Lá na Amazônia Negra a gente tem um terço desse número. Então, de 1,3 milhões a gente tem um terço lá. E aí nós sentamos com a Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos para pensar essa Amazônia Negra e a Amazônia Legal. Nós fundamos um comitê para ajudá-los, inclusive com esses dados agora, demandas, quantas estão titulados e quantos não”, disse.
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Por fim, falou do projeto Aquilomba Brasil e sua operacionalização e titularização. A ministra pontuou que Aquilomba é uma atualização do programa Brasil Quilombola. “A gente sabe que não é fácil titular. Quando a gente pensa titulação, a gente tem todo um processo, todo um aparato por trás. A minha meta era sair desse governo titulando 300 quilombos. Não é impossível, mas para isso eu sei, vai ser toda uma articulação transversal para que as pessoas também se sensibilizem, porque requer orçamento. E a gente está caminhando para isso. A primeira primeira reunião que eu tive antes de ser ministra foi com a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos). A gente já rodou mais de 20 estados com a Aquilomba Brasil”, contou.
Ainda segundo Anielle, dentro do Aquilomba há o Abre Caminhos, de combate à intolerância religiosa, e o Pensar a Educação para quilombolas. “Nossa meta é que agora nesse segundo semestre a gente consiga titular mais. O nosso objetivo desse ano era 10, nós fizemos cinco já”, revelou, contando que a expectativa é que o número seja alcançado até novembro deste ano.