Mais do que somente a força do número, os 100 primeiros dias são relevantes em uma gestão pois demarcam o impacto da recente chegada, ao mesmo tempo em que sinalizam as bases de atuação no horizonte futuro. Há 100 dias o Brasil reconquistou a sua democracia e passou a ter pela primeira vez um Ministério da Igualdade Racial com este nome, histórico avanço na responsabilização do estado brasileiro com a luta pela promoção da equidade étnico-racial, germinada em 2003 com a instituição da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a SEPPIR.
Estamos falando de uma trajetória não linear, pavimentada pela força politizada, organizada e pulsante do movimento negro na articulação para inserir, definitivamente, a promoção da igualdade no planejamento global do país. A partir do campo institucional é possível dialogar com a sociedade, reconhecendo as múltiplas e complexas demandas da população negra, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, povos de terreiro de matriz africana e ciganos deste país continental, e multiplicar as condições materiais para atendê-las, com ações bem planejadas, estruturadas, monitoradas e continuamente aperfeiçoadas. Estamos nesta estrada.
Desde a posse do novo governo, há um espírito de retomada do sentido maior da ação pública, simbolizando o que é construído para a coletividade, para o bem-viver, não mais de um grupo, mas de todos, com urgência prioritária aos que foram barrados do acesso à cidadania.
Carregamos na bagagem do ministério acúmulos em formulações acadêmicas e experiências exitosas na gestão de políticas públicas promotoras de equidade racial, montamos uma equipe qualificada, no qual a presença de pessoas negras, mulheres, quilombolas, representantes de comunidades tradicionais é a regra, não a exceção, em uma nova fotografia do poder e da diversidade.
Conhecemos bem o ponto de partida, de chegada e todas as bifurcações deste trajeto que o poder público precisa cumprir para fazer a sociedade avançar em rígida sintonia com a conduta transparente, responsável e democrática. Temos intimidade com trajetórias participativas, coletivas, próprias da sabedoria ancestral das mais velhas: avançamos sem deixar ninguém para trás.
Esta centena de dias simboliza um novo Brasil em radical (re)construção pós barbárie, que decidiu pela democracia como caminho para dignificar a vida das pessoas e que amadureceu para compreender que enfrentar o racismo é combater as raízes das desigualdades e da exclusão social. Promover a equidade é promover a democracia.
Sabemos que as violências executadas contra o povo negro por mais de 500 anos não serão solucionadas no curto prazo. Nos importa, por isso, preservar essa memória e também enxergar o novo tempo, visível no empenho deste governo Lula em trazer a agenda da equidade racial para o centro da gestão e do debate público.
É um compromisso que o próprio presidente reitera diariamente nas suas falas e no apoio irrestrito às ações intersetoriais e transversais mobilizadas pelo nosso Ministério da Igualdade Racial.
Como órgão irradiador de políticas públicas, construímos nestes meses iniciais dezenas de ações e medidas significativas em aliança não somente com os ministérios, mas em parcerias internacionais de articulação para a promoção de direitos destinados à população negra. Este acesso precisa se dar de forma ampla e explícita, tanto no sentido de enfrentar as barreiras que o racismo impõe, como de positivar a vida, de modo que seja plena.
Em recente entrevista, Kabengele Munanga, antropólogo congolês-brasileiro, referência nos estudos sobre o racismo, resume três caminhos que considera mais relevantes para combater o preconceito racial: as leis, a educação antirracista e ações afirmativas.
As leis precisam ser qualificadas, mas elas só atingem as práticas racistas observáveis. Os preconceitos naturalizados atuam em outro nível, só podendo ser alcançados pela educação e sua condição de alterar as nuances valorativas que o racismo cria. Por fim, as ações afirmativas são a forma de transformar as realidades de maneira mais concreta.
Essa combinação revolucionária norteia a estrutura do nosso ministério, composto por três secretarias centrais – de Políticas de Ação Afirmativa, Combate e Superação do Racismo; de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos; e Gestão do Sistema de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir).
Esse corpo de profissionais, na importante data do 21 de março que marca justamente os 20 anos da criação da SEPPIR, lançou o Pacote pela Igualdade Racial com medidas que abrangem a reserva de vagas de no mínimo 30% para pessoas negras na administração pública, o novo Programa Aquilomba Brasil, titulação de terras quilombolas, grupos de trabalhos interministeriais expressos no planos Juventude Negra Viva, no Novo Programa de Ações Afirmativas, para enfrentamento ao racismo religioso e, por fim, para a preservação do Cais do Valongo (RJ).
Também assinamos e propomos leis como a 14.532/23 que equiparou a injúria racial ao crime de racismo, e o projeto de lei do Dia Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política de Gênero e Raça, em tramitação no Congresso Nacional.
É um belo e robusto começo de jornada que nos dá a dimensão da responsabilidade de avançar no desafio de alterar a vida das pessoas negras com ações reais. Mais ainda, inserir o tema da equidade racial na conversa do almoço de domingo, nos comitês científicos, na sala de aula, no orçamento público, na recepção dos consultórios, nas favelas, na esplanada dos ministérios, na beira da praia. Não aceitamos a invisibilidade desumanizadora do racismo, queremos que este seja um assunto do cotidiano, visível, uma questão para toda a sociedade.
Nosso projeto é, de fato, ambicioso, aprendemos com quem nos antecedeu a misturar com sabedoria o sonho, o pé no chão e a cabeça erguida. Assim chegamos até aqui e coletivamente seguiremos, na certeza de que estes 100 primeiros dias confirmam o Ministério da Igualdade Racial como matriz do futuro que sopra no Brasil redemocratizado desde 1º de janeiro de 2023.