“Sou negra e estudante de Direito.” Conforme a própria afirmação sugere, a interlocução que se pretende desenvolver ao longo do texto é a de construir uma reflexão crítica acerca da condição da mulher negra inserida no meio universitário. Aqui, em específico, a daquela que está regularmente inscrita em cursos de bacharelado em Direito. Deste modo, é possível que, muito legitimamente, vários leitores se questionem: “Qual a pertinência do texto com a condição da mulher?” E, ainda, poderão se indagar: “Qual a relação do tema com o feminismo negro” e “Por que, em particular, a condição social da mulher negra e estudante de Direito merece tamanho destaque a ponto de se converter em texto submetido à publicação no Blogueiras Negras?”. Antes de abordar a questão em si, gostaria de registrar que a redação não pretende – de forma alguma – esgotar o assunto em tela. Dados a complexidade da matéria e os propósitos didáticos a que se destina o texto, o objetivo primordial é o de tão somente estimular reflexões correlatas ao tema apresentado. Dito isto, a partir de agora, é viável enfrentar o primeiro degrau da nossa reflexão, o qual se remete à presença do negro nas universidades. Ao contrário do que muita gente pensa, o debate em torno da população negra nos cursos de ensino superior – sejam estas instituições de ensino público ou privado – vai muito além da questão das cotas, pois para o senso comum, tudo relacionado ao negro e a faculdade se exaure neste ponto. Obviamente, em momento algum estou dizendo ou quero dar a entender que as cotas não são relevantes. O que desejo é chamar atenção para o fato de que a análise do acesso da população preta à educação de terceiro grau se define a partir de sua compreensão como resultado maduro das lutas históricas em prol da ocupação de espaços destinados à produção do saber científico e, portanto, ambientes elitizados e profundamente excludentes em sua essência. Transitar em terreno político outrora restrito à classe privilegiada é consequência da afirmação dos direitos fundamentais do negro – o qual foi compulsoriamente, em boa parte de nosso processo histórico, direcionado à realização de trabalhos braçais que se caracterizavam por requisitar nenhuma ou pouquíssima competência intelectiva para sua fiel execução . Destaco ainda que, em paralelo à dinâmica histórica evidenciada e em posição desfavorável ao negro, se organizam todos os demais bloqueios “invisíveis” e impeditivos a sua formação. Dentre eles, por exemplo, podemos citar a conjuntura social e econômica, vez que diversos alunos estudam com muita dificuldade e esforço justamente por se encontrarem em condição de vulnerabilidade social. Somado a isto, também se verifica o contra-ataque do racismo institucional da sociedade brasileira, identificado em várias ocorrências não-esporádicas e não-isoladas. A título de exemplo, pontuo os casos mais recentes como os da aluna Stephanie Ribeiro, estudante de Arquitetura e Urbanismo na PUC-Campinas e o de Mônica Gonçalves, aluna da Faculdade de Saúde Pública da USP. Não é difícil perceber que o efeito psicológico da violência em que se constitui o racismo é o mais deletério possível na vida das pessoas que passam por essa experiência. Ademais, a partir dos depoimentos das alunas, podemos mensurar nitidamente todo o mal que essa doença ocasiona na vida de suas vítimas. Após esta breve ambientação, já entendo ser oportuno raciocinar em torno de um universo mais fechado, restringindo daqui por diante, a abrangência do contexto. O cerne da questão não mais tratará da conjuntura social relativa ao “ser negra e estudante universitária”, mas sim, do “ser negra e estudante de Direito”. A primeira consideração que desejo tecer, neste segundo degrau, é aquela que vai ao encontro da atmosfera elitizada e altamente classista que permeia o curso de Direito. É preciso entender que – em se tratando de curso de nível superior – o Direito é uma das graduações mais antigas no Brasil. Uma rápida busca na internet acerca da polêmica no uso da palavra “doutor” para advogados e toda a argumentação histórica a favor de sua manutenção (assim como as dos que se manifestam contra o seu emprego) muito bem corroboram a essência aristocrática do curso. Ainda nessa esteira, se tiverem curiosidade de verificar a história dos cursos de ensino superior no país, também comprovarão facilmente que o bacharelado em ciência jurídica é um dos mais antigos no país. Muito importante ressaltar que esta reflexão tudo tem a ver com o ser negra e estudante de Direito. Você, caro leitor, perguntará: “De que forma o que já foi dito se relaciona com a mulher negra e as reivindicações do feminismo negro?”. Eu, de pronto, posso responder a você: “considerando que o Direito se impõe nos espaços decisórios como instrumento concretizador de uma vontade, o sujeito que exerce o uso da habilidade jurídica com fins de argumentar, sentenciar, condenar e absolver pessoas; tem em suas mãos o poder decisório”. Historicamente, o manejo da verve forense sempre foi feito por aqueles que estavam em condição social mais privilegiada. Assim, mediante este raciocínio, conclui-se que nem o negro e tampouco a mulher negra, participaram do processo de tomada das decisões políticas e fundamentais no qual se inscreveu o Direito na História. Quando ocorreram as reivindicações iniciais do feminismo branco cujo objetivo se assentou em seus primórdios na luta para que mulheres brancas tivessem o direito de trabalhar, as mulheres negras já trabalhavam. Nós trabalhamos desde sempre. Fomos forçadas ao trabalho compulsório ainda cedo. Mulheres negras ao lado de homens negros foram os braços e as pernas que ajudaram a construir a economia deste país. Além disso, na ocasião da “libertação dos escravos”, momento em que os negros se viram completamente desamparados pelo Governo e alijados de chance na obtenção de emprego, foram as mulheres negras que proveram o sustento de suas casas por meio de trabalhos domésticos. É por isso que a mulher negra não luta para ter o direito de trabalhar, pois isso já nos impuseram a fazer desde sempre. Nossa luta é para que tenhamos o acesso a espaços monopolizados pela classe mais privilegiada e dessa forma possamos fazer uso dos instrumentos acadêmicos que possibilitam a mobilidade social e o engrandecimento pessoal da mulher negra. Daí é que se descortina toda a pertinência da temática, já que é uma conquista significativa e substanciosa dos pontos de vista político, histórico, social e pessoal para esta mulher historicamente oprimida, violentada e explorada, seu ingresso em um curso de nível superior reconhecidamente elitista assim como o Direito. Já escutei, inclusive, várias pérolas a respeito disso ao longo da minha trajetória: “Faculdade de Direito não é coisa para neguinha” e “Quem nasceu para o trabalho duro não deveria se aventurar em fazer Direito”… Eu até entendo (mas não aceito, é claro!) as observações apontadas, uma vez que ser mulher, negra, pobre e, ainda por cima, aluna do curso de Direito em instituição de ensino público federal –por si só – já é uma tremenda afronta ao orgulho dessa sociedade racista! E ainda haverá quem fale: “Amanda Beatriz, que exagero; isso é só pode ser piada de mau gosto!”. E eu então lhe responderei: “Lamento profundamente, mas, ainda nos dias de hoje, encontramos pessoas com este tipo de pensamento. Isso é mais recorrente do que se imagina e só alguns dos casos extremos de racismo ganham visibilidade nos grandes meios de comunicação. Os episódios que a gente ouve no noticiário são apenas a ponta do iceberg”. Em 1984, Luislinda Valois Santos, neta de escravos, filha de mãe lavadeira e costureira e de pai motorneiro de bonde, tornou-se a primeira juíza negra do Brasil. Proferiu, em 1993, a primeira sentença brasileira contra o racismo na qual condenou o supermercado Olhe Preço a indenizar a empregada doméstica Aíla de Jesus, acusada injustamente por furto. O futuro, por sua vez, se delineou na vida da magistrada Luislinda a partir de um acontecimento bastante emblemático em sua trajetória pessoal. Professor: – Mais isso não foi o que eu pedi! Dito e feito. A primeira parte da declaração profética, ela cumpriu. Aos 39 anos, Luislinda formou-se em Direito pela Universidade Católica de Salvador – UCSAL. Em 2009, A magistrada lançou seu primeiro livro: “O negro no século XXI”. No ano de 2011, depois de oito anos de espera e às vésperas de completar 70 anos, foi promovida a desembargadora titular do Tribunal de Justiça da Bahia. Quando indagada sobre a existência do racismo no Brasil, em entrevista concedida à Revista Visão Jurídica, a juíza declarou: “Quem quiser saber o que é ser negro, fique negro por apenas 24 horas”. Esta é sua máxima para quem duvida que ocorra discriminação racial no país. Já com relação ao Judiciário, eis algumas considerações importantes de Luislinda: 1) Em 2009, na reportagem da Revista Visão Jurídica: Todavia, quero crer que muito em breve teremos mais negros não apenas ocupando espaços de execução e apoio mas exercendo cargos de ministros de Estado, presidentes de Tribunais, governadores, prefeitos, presidentes da República, senadores, executivos de empresas multinacionais, procuradores etc., até porque também somos competentes; falta-nos apenas oportunidade. O Judiciário está mudando. Aqui, ali e alhures já nos deparamos com magistrados negros (ministros, desembargadores, juízes) atuando nesse grandioso e indispensável Poder. 2) No IV Congresso Estadual dos Servidores do Judiciário, promovido em Porto Alegre, em 2011: “É o Poder menos democrático. Não evolui em termos da democracia que vivenciamos hoje no Brasil. Há uma orquestração de inclusão no Brasil, mas isso não aconteceu no Judiciário”. 3) Em entrevista concedida ao Portal R7 Notícias, em 08/03/2014: “Para ser desembargadora eu tive que recorrer a um processo junto ao CNJ. É difícil ser negra neste país, a situação é muito difícil”. Na sequência, a desembargadora Luislinda Valois ainda disse que para a mulher conquistar um espaço com visibilidade na sociedade, ela precisa ousar e lutar pelos seus direitos. Concluo, então, mediante a conjuntura esmiuçada ao longo do texto, que em se tratando da mulher negra e estudante de Direito, é perceptível já ter havido alguma evolução na inserção desta mulher no bojo institucional forense. Entretanto, apesar dos passos largos dados na direção ao empoderamento da mulher negra, ainda assim, identificamos muita estrada pendente por avançar. Embora o Direito possua – em seus domínios de existência – uma essência subjetiva e extremamente conservadora, sendo, portanto, bastante refratária a mudanças; muitas de nós, mulheres negras, temos logrado êxito nos embates políticos em prol de nossa inserção no arcabouço do Judiciário. Por fim, gostaria de destacar que o grande desafio e principal objetivo é a “conquista” do nosso lugar nas Escolas de Direito. Desejo faculdades mais plurais, inclusivas e coloridas. Quero centros de produção do saber jurídico onde existam muitas Luislindas Valois, Amandas Beatrizes, Alessandras Gabriellas, Marjores Janis, Márcias Vasconcelos, Stephanies Ribeiro, Mônicas Gonçalves, Anas, Ritas, Marias e Franciscas e não apenas um ou outro caso isolado. Desejo ver empoderadas todas as mulheres negras universitárias e aqui, em especial, as negras do Direito. Sonho com o futuro próximo em que mulheres negras sejam respeitadas e protegidas no pleno exercício do seu direito social à educação. *Amanda Beatriz é estudante de Direito; negra em construção; mulher em intenso processo de individuação; humanista por excelência e partidária inveterada de um mundo em que todas as pessoas, sem distinção, sejam respeitadas em sua plenitude de autonomia e escolha. |
Fonte: Blogueiras Negras
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