Violência, marginalização, pobreza, discriminação por gênero e raça, abandono escolar e escassez de vagas de trabalho com garantias em Honduras, El Salvador e Guatemala formam o combustível “tóxico” do êxodo de dezenas de milhares de menores desacompanhados e sem documentos para os Estados Unidos. Essa é uma das conclusões do terceiro índice sobre Inclusão social na América publicado hoje pela organização Americas Society/Council of the Americas (AS/COA). Os três países citados estão no final de uma classificação que mede 17 Estados através de 21 variáveis que determinam a capacidade de seus cidadãos para ter acesso a determinados bens e serviços. O Uruguai, a Argentina e a Costa Rica ocupam os três primeiros lugares. Os últimos são El Salvador, Paraguai, Honduras e Guatemala. No meio, nesta ordem, ficam os Estados Unidos, Chile, Peru, Equador, Brasil, Panamá, Bolívia, Colômbia, México e Nicarágua. A classificação reflete a realidade de um continente que, apesar dos indubitáveis avanços e crescimento econômico na última década, não conseguiu erradicar gravíssimos problemas de exclusão social. A lamentável situação da mulher em relação a direitos e oportunidades em muitos países e a insegurança, produto da marginalização dos mais jovens na América Central, constituem os dois pontos aos quais o estudo dedica uma análise mais profunda. “Há 20 anos falávamos de democracia; há 10, de economia; hoje, de inclusão social. Sem dúvida avançamos”, declarou Susan Segal, presidenta da AS/COA, durante a apresentação do estudo em Nova York. Pobreza e violência não formam uma correlação automática, como lembram os pesquisadores Matthew Budd e Marcela Donadio, membros da organização Rede de Segurança e Defesa da América Latina, em um artigo que acompanha o estudo na Americas Quartely, a revista da AS/COA. Para corroborar esta ideia, lembram que a Nicarágua, um país muito mais pobre que seus vizinhos (1.750 dólares (3.900 reais) de PIB per capita e 162 dólares (361 reais) de salário mínimo), tem uma taxa de homicídios (11 por cada 100.000 habitantes) muito inferior à de Honduras (85), El Salvador (41) ou Guatemala (34). Mesmo assim, crianças nicaraguenses não são a maioria entre as que chegam à fronteira dos Estados Unidos. “A exclusão social é muito mais do que pobreza e desigualdade. Tem a ver com um sentido de pertencimento a um grupo. A marginalização gera a sensação de ser um estranho e, inevitavelmente, de insegurança, o que leva a comportamentos violentos em busca de justiça e segurança. A inclusão social cria vínculos e segurança. Por outro lado, um entorno de insegurança cerceia liberdades e a possibilidade de inclusão social. Na América Central esses fenômenos são reforçados mutuamente em uma mescla turbulenta. Os mais jovens da região são cada vez mais as vítimas e os algozes da violência”, afirmam Budd e Donadio. Para a jornalista e escritora norte-americana Sonia Nazario, autora do aclamado trabalho vencedor do prêmio Pulitzer A Viagem de Enrique, os 40.000 menores centro-americanos (40% são meninas) que tentaram cruzar a fronteira dos EUA com o México (calcula-se que a cifra chegará em 90.000 até o fim do ano) não são imigrantes, mas refugiados que fogem de um pavoroso cenário de violência. Os dados avalizam seu comentário. O escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados entrevistou 404 crianças vindas de Honduras, El Salvador e Guatemala. 58% explicou que o principal motivo para tentar chegar aos EUA era escapar das gangues de delinquentes e traficantes que utilizam menores como capangas ou mulas (transporte de drogas e outros materiais). Em 2006 foi realizada uma sondagem similar entre jovens mexicanos. Somente 13% atribuiu sua arriscada viagem à violência no lugar de origem. “Sem dúvida a violência é um fator, mas os problemas para ter acesso à educação de base, ou, em definitivo, a falta de oportunidades também influi”, disse Christopher Sabatini, diretor da Americas Quartely. Para Sabatini, o bloqueio da futura lei de imigração nos Estados Unidos não é a única razão do êxodo de menores, como se argumenta em alguns países. “Sem dúvida necessitamos de uma nova lei, e é importante que as crianças comecem a ser tratadas como refugiados, mas não há somente uma resposta. É preciso adotar medidas de inclusão nos países de origem”, acrescentou. A insegurança e marginalização sofridas por grupos tão vulneráveis como os mais jovens e a as mulheres não determina o PIB do país, mas a força de suas instituições, asseguram os pesquisadores do Índice de Inclusão Social da AS/COA. Neste sentido, Honduras ostenta vários recordes negativos: 48% de suas vítimas de homicídio em 2012 tinham entre 15 e 19 anos. A cidade de San Pedro Sula tem a maior taxa de homicídios do mundo, segundo as Nações Unidas. 2.000 crianças que até maio deste ano chegaram à fronteira dos Estados Unidos vêm desta cidade. Não é a única: mais da metade das cidades das quais procedem os menores sem documentos está em Honduras. Entre os aspectos mais débeis sobre a inclusão social, o estudo da AS/COA destaca de forma muito crítica a situação das mulheres. As pesquisadoras Jane Marcus-Delgado e Joan Caivano denunciam que a maior presença de mulheres nas instituições e na vida política dos países americanos não causou uma melhora de suas condições e oportunidades, em particular para as de raça negra e as que vivem nas zonas rurais. Assim, o estudo lembra que uma de cada três mulheres sofre abusos na América Latina, segundo a Associação Panamericana de Saúde, e que a violência de gênero causa mais vítimas no continente que o câncer, a malária, os acidentes de trânsito ou os conflitos armados. No Chile, 50% das mulheres entre 15 e 49 anos de idade foi vítima de seu companheiro. Em São Paulo, uma mulher é abusada a cada 15 segundos. A metade dos países com as mais altas taxas de violência de gênero são americanos. “Um exame das novas tendências, leis e políticas a favor da mulher traz à tona a expressão espanhola: ‘Do dito ao feito há uma longa distância’. Em outras palavras, incluindo áreas nas quais houve um progresso significativo, existem barreiras que não permitem uma aplicação coerente destas novas políticas: insuficientes recursos públicos, falta de vontade política, o prevalecimento de valores e práticas patriarcais e uma desigualdade socioeconômica extrema”, advertem Marcus-Delgado e Caivano. Como exemplo destacam a falta de informação (o Paraguai e o Uruguai não oferecem dados sobre a violência de gênero) ou sua obsolescência (os da Bolívia e da Colômbia são de 2003 e 2005, respectivamente). Mesmo assim, ainda que existam leis, estas não se aplicam. No Rio de Janeiro foram denunciados 1.822 estupros em 2013, mas só ocorreram 70 detenções. O Índice de Inclusão Social mede também as normas que regulamentam o aborto ou a contracepção, na medida que determinam a diferença de oportunidades entre homens e mulheres. Neste sentido, o panorama é desolador: 95% dos abortos da América são realizados em condições insalubres, devido à persistência de legislações muito restritivas em muitos países. Aonde as leis são permissivas, como na Colômbia ou no Uruguai, os meios para aplicá-las são, entretanto, deficientes. Tampouco uma maior presença de mulheres na vida pública melhorou esta situação como se esperava. Na Nicarágua e no Equador, os presidentes Daniel Ortega e Rafael Correa, respectivamente, aumentaram o acesso das mulheres aos cargos de responsabilidade, mas suas legislações sobre aborto são as mais duras. Por último, em países com mulheres na presidência (Argentina, Chile, Costa Rica e Brasil) a norma sobre a interrupção voluntária da gravidez está, paradoxalmente, muito longe do que o estudo elaborado pela AS/COA consideraria plausível. O estudo reconhece avanços – redução dos níveis de pobreza, acesso ao estudo básico, mais moradias e empregos com direito a aposentadoria – graças ao crescimento econômico em países como o Brasil, a Colômbia, o Chile ou Uruguai, mas persistem situações inaceitáveis, concretamente as referidas às mulheres e às minorias, a atitude dos Governos sobre a exclusão social, o acesso à justiça e os direitos e proteção dos que sofrem de algum problema psíquico, entre outros aspectos. “É difícil mudar a situação em curto prazo por razões históricas, estruturais e de atitude”, corrobora Sabatini. Por países, o Uruguai repete o primeiro lugar pelo segundo ano graças ao seu crescimento econômico e a melhora dos direitos políticos e do acesso à moradia digna. Sua pontuação sofreu pela persistência de desigualdades de gênero ou raça, segundo o estudo. A Argentina ocupa o segundo lugar graças ao dinheiro público dedicado para os programas sociais. Entretanto, tem baixa pontuação em participação social e capacidade de resposta do Governo, segundo a opinião dos cidadãos. Apesar desses avanços, o índice denuncia que ainda falta muito em relação à possibilidade de se ter direitos civis sem descriminação de nenhum tipo na Bolívia, Equador, Guatemala, México, Nicarágua e Paraguai. A Costa Rica, terceiro lugar, é um dos países melhor avaliados em muitas das variáveis. Entretanto, ocupa um dos piores postos no que se refere aos direitos dos gays, lésbicas e transexuais. O Peru, sexto na tabela, experimentou avanços nos direitos das mulheres, além de um crescimento econômico importante. Entretanto, continua investindo pouco em medidas sociais que aumentem as matrículas na educação básica e o acesso à moradia digna. O Brasil desce para a oitava colocação, em parte, pela má percepção que os cidadãos têm sobre a capacidade do Governo de resolver os problemas de exclusão social. A Colômbia e o México, décima primeira e décimo segundo, respectivamente, têm sérias metas a atingir. No caso da Colômbia, sempre segundo o estudo, a escassa presença da mulher na política. No do México, o acesso aos postos de trabalho com todos os direitos trabalhistas reconhecidos e uma aposentadoria. Em Honduras, o assunto é realmente grave: somente 10% das mulheres e 5% dos homens trabalham com direito a aposentadoria. O Índice de Inclusão Social não se limita a constatar os avanços ou retrocessos em determinadas questões, mas também coloca recomendações e exigências. As prioritárias têm a ver com políticas a favor das mulheres (Brasil, Colômbia e Chile), melhores condições de acesso ao mercado de trabalho (México, Equador, Guatemala e Paraguai), potencializar as matrículas na educação de base (El Salvador, Brasil e Uruguai) e fortalecer uma justiça mais eficiente e próxima dos cidadãos (México e Bolívia), entre outras. Os responsáveis pelo índice lembraram a necessidade de melhorar a informação obtida pelos censos nacionais, e que neles sejam incluídas categorias de raça e etnia. Para elaborar o índice, os pesquisadores utilizam os dados do censo de cada país, documentos do FMI e do Banco Mundial, o comunicado sobre Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, o Barômetro Americano da Universidade Vanderbilt, assim como trabalhos de pesquisadores de outras instituições (Inter-American Dialogue, Amherst College e City University de Nova York, entre outras). Os responsáveis pelo estudo medem até 21 variáveis (PIB, direitos civis, acesso à moradia digna, matrículas em educação de base, acesso ao trabalho com aposentadoria, concessão de créditos, direitos e proteção de pessoas com problemas psíquicos, legislação sobre a mulher, capacidade de resposta do Governo…) até atribuir uma pontuação para cada país. Devido às dificuldades para reunir dados homologáveis e a escassez destes em muitos casos, podem ocorrer algumas conclusões surpreendentes e ausências notáveis. É o caso do quarto lugar ocupado pelos Estados Unidos. O próprio estudo adverte que, ainda que este país tenha importantes “objetivos” em relação à inclusão social, essa surpreendente classificação responde à impossibilidade de obter dados federais em oito variáveis. No caso da Venezuela, a duvidosa qualidade da informação disponível motivou sua exclusão do índice. “Em onze das variáveis, os dados de que dispúnhamos procediam do Governo. Não nos ofereciam confiança suficiente. É uma pena que não possamos conhecer com rigor se o Governo venezuelano está realizando a revolução social que defende em sua agenda política”, explicou Sabatini. |
|||
Fonte: El País
|