Direitos essenciais para mulheres e meninas, fundamentais para garantir o exercício de outros direitos.
Por: Ketline Lu
Os direitos sexuais e reprodutivos são importantes, pois eles almejam garantir o controle e o exercício livre e responsável da sexualidade e da reprodução. Eles se relacionam, por exemplo, ao direito à educação, ao conhecimento do próprio corpo e de seu funcionamento, ao acesso a serviços seguros de saúde e a métodos contraceptivos adequados e eficientes, à decisão sobre qual momento ter e quantos filhos se quer ter, se é que se deseja tê-los.
Tais direitos são amplos e são muito importantes para as mulheres e meninas, uma vez que são pressupostos para o exercício dos demais direitos e requerem políticas públicas permanentes. É só pensar, por exemplo, que uma mulher gestante precisa de apoio para ter uma gestação saudável, com atendimento médico durante toda a gestação até o parto, momento delicado para ela e para a pessoa que está nascendo. Os serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), nesse sentido, são imprescindíveis para a maioria das trabalhadoras.
Se considerarmos ainda que a questão da reprodução e da sexualidade são fenômenos da vida em que as mulheres inegavelmente são desproporcionalmente mais atingidas em comparação aos homens, entendemos a relevância desta pauta para a luta pela igualdade entre gêneros. Uma gestação, por exemplo, tende a causar muito mais obstáculos às mulheres trabalhadoras, pois sabemos que mulheres em idade reprodutiva tendem a sofrer mais preconceito no ambiente de trabalho, enfrentando mais obstáculos para ascender na carreira profissional, além de receberem os piores salários e de não usufruírem de jornadas de trabalho mais flexíveis, o que inegavelmente as coloca na difícil posição de escolher entre a carreira e os cuidados no lar.
Infelizmente, porém, essa pauta de direitos sexuais e reprodutivos sempre sofreu forte resistência, especialmente pelos setores religiosos e conservadores da sociedade. Lembremos, por exemplo, o processo constituinte que culminou na Constituição da República de 1988, em que as mulheres participaram ativamente na formulação do projeto de sociedade. Porém, apesar do sucesso de muitas reivindicações – cerca de 80% das proposições feitas pelas constituintes lograram êxito e foram constitucionalizadas –, as pautas relativas aos direitos reprodutivos e sexuais foram ignoradas.
Atualmente vemos forte atuação dos setores conservadores contra os direitos das mulheres, especialmente no que atine à interrupção voluntária da gravidez ou aborto. Um exemplo são os recentes movimentos do Conselho Federal de Medicina (CFM) de perseguir profissionais de saúde que atuam no atendimento às mulheres e meninas vítimas de estupros e a edição da Resolução nº 2.378/2024, cuja finalidade é vetar o procedimento de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas, na contramão das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso atinge diretamente meninas e mulheres, especialmente aquelas que estão em condições socialmente mais vulneráveis, que necessitam urgentemente de atendimento médico em casos de estupro e cuja realização não é punida por lei.
Em reação, a Sociedade Brasileira de Bioética, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde e o Ministério Público Federal ajuizaram uma ação civil pública de nº 5015960-59.2024.4.04.7100/RS, visando a nulidade da referida resolução, pois ela restringe o direito fundamental à saúde das mulheres e meninas vítimas de violência, negando-lhes acesso a serviço de saúde, o que é ilegal. No primeiro grau, a Juíza Paula Weber Rosito, considerando os efeitos concretos nas vidas de mulheres e meninas, atendeu ao pedido liminar de suspensão da resolução, acolhendo o entendimento de que o CFM não tem competência legal para criar restrições na matéria – uma mera resolução não pode restringir os efeitos de leis. A magistrada, aliás, em sua decisão destacou os efeitos concretos nas vidas de gestantes que desde a publicação da resolução não puderam recorrer ao aborto seguro.
Posteriormente, em recurso do CFM, o desembargador Cândido Alfredo Silva Leal Junior, suspendeu a mencionada decisão da magistrada, restaurando a vigência da Resolução nº 2.378/2024, alegando que o assunto já está em discussão no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 989, inferindo que “a questão relativa ao aborto é das mais complexas” e concluindo que a decisão da magistrada não foi “oportuna”, por conta do seu impacto nacional. Ele ignorou completamente que mulheres já estão sendo prejudicadas concretamente conforme se noticiou na ação. Ressalvou o desembargador ainda que “situações individuais” e “os casos concretos tenham tratamento específico e individualizado”, o que soa absurdo, considerando que a questão é de saúde pública, ensejando posicionamentos e soluções coletivas. Pior, com essa decisão está se impondo mais um obstáculo ao exercício de direitos das mulheres e meninas vítimas de estupro, que terão que individualmente procurar a justiça se suas condições lhe permitirem. Fica evidente não só a falta de conhecimento sobre a relevância dos direitos sexuais e reprodutivos na vida das mulheres pelo desembargador como também o quanto o discurso jurídico majoritário pode ser machista e misógino.
Por conta dessa forte resistência conservadora, tal caso chegou recentemente ao Supremo Tribunal Federal STF, por meio da ADPF 1141, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), cuja relatoria está atualmente com o Ministro Alexandre de Moraes. Liminarmente (ou seja, temporariamente, porque o caso será discutido de forma mais aprofundada no curso do processo), em prol das mulheres e meninas vítimas de estupro, o referido ministro suspendeu mais uma vez os efeitos da resolução 2.378/2024, reconhecendo indícios de abuso de poder regulamentar do CFM, pelo fato de ter fixado com a referida normativa uma condicionante ultra legem (ou seja, que não é prevista em lei), sendo que a legislação vigente sequer prevê qualquer limitação de ordem temporal, circunstancial ou procedimental. Também entende que essa limitação proposta se afasta dos padrões científicos compartilhados pela comunidade internacional e representa restrição de direitos não prevista em lei, que pode criar “embaraços concretos e significativamente preocupantes para a saúde das mulheres”. O ministro, portanto, valida o importante entendimento da juíza Paula Weber Rosito, posteriormente analisado.
Todo esse esforço conservador contra o gênero feminino que verificamos nos atos do CFM, no entanto, contrasta drasticamente com a realidade em que nós, mulheres, vivemos. Segundo relatório do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a região da América Latina e Caribe é campeã na violação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: a mortalidade estagnou na região há duas décadas; a gravidez na adolescência é a segunda maior no mundo; 14 dos 25 países com maiores taxas de feminicídio estão nesta região; casamentos infantis continuam muito frequentes e pouco diminuíram. Tais dados alarmantes demonstram que não é suficiente o que tem sido feito para proteção dos direitos das mulheres na região, a qual se torna um dos piores lugares para meninas e mulheres viverem. Alertam, outrossim, para o fato de que esta luta é de extrema importância, porque sem a efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos, as mulheres terão muito mais dificuldade de usufruir de outros direitos, como educação e trabalho, e de terem uma vida com mais dignidade e cidadania.
Precisamos entender que questões como o aborto estão inseridas em uma discussão mais ampla que é a dos direitos sexuais e reprodutivos. E, olhando por esse horizonte mais amplo de discussão, precisamos mais do que nunca reunir esforços para que esses direitos sejam efetivamente respeitados. Para tanto, devemos apoiar a formulação de políticas públicas voltadas a sua concretização, exigir por mais serviços de saúde específicos para atendimento de meninas e mulheres e, especialmente no direito, precisamos de mais juízas e juízes, promotoras e promotores, advogadas e advogados sensibilizadas e sensibilizados com a questão de gênero. É lamentável que no atual regime constitucional, em que a igualdade entre gêneros é comando da Constituição, e ante a realidade social vivida atualmente por meninas e mulheres, sua dignidade e seus direitos sexuais e reprodutivos sejam atacados como temos observado.
Fonte: Brasil de Fato