Denúncias contra ex-ministro dos Direitos Humanos ressaltam importância de garantir escuta qualificada nas investigações sobre casos de assédio e importunação sexual.
As denúncias de assédio sexual contra o advogado Silvio Almeida, demitido do Ministério dos Direitos Humanos em 6 de setembro, reacendem o debate sobre a importância da palavra da vítima nesse tipo de crime. As acusações, coletadas pela organização Me Too Brasil e amplamente divulgadas pela imprensa, envolvem várias mulheres que permanecem anônimas.
A inclusão da ministra da Igualdade Racial, como uma das vítimas, trouxe à tona novas denúncias. Embora Silvio Almeida negue as acusações, sua demissão foi motivada pela gravidade das denúncias, que estão sendo investigadas pela Polícia Federal.
O Portal Catarinas consultou advogadas especializadas em violência de gênero para entender as diretrizes para garantir uma escuta adequada em casos de violência sexual, que enfrentam dificuldades na coleta de provas e depoimentos. Além disso, conversou com uma cientista polícia que analisa a perspectiva interseccional do episódio, considerando recortes de raça e gênero dos envolvidos.
Diferença entre assédio e importunação sexual
Assédio sexual e importunação sexual são crimes tipificados no Código Penal brasileiro, mas apresentam distinções importantes. O assédio sexual (artigo 216-A) ocorre em contextos de hierarquia ou poder, como no ambiente de trabalho, onde o agressor usa sua posição para fazer propostas ou insinuações sexuais constrangedoras à vítima.
Já a importunação sexual, incluída em 2018 (artigo 215-A), envolve atos libidinosos sem consentimento, como toques ou aproximações indesejadas, em situações cotidianas, sem a necessidade de uma relação de poder entre as partes.
As denúncias de ex-alunas do advogado se enquadram como assédio sexual devido à relação de hierarquia entre aluno e professor. No caso da ministra Anielle Franco, inicialmente, juristas indicaram que o crime de importunação sexual seria mais adequado, pois ambos ocupavam o mesmo cargo. No entanto, até o início deste ano, o Ministério da Igualdade Racial, liderado por Franco, dependia financeiramente do Ministério dos Direitos Humanos, sem autonomia orçamentária. Compras, licitações e passagens aéreas, por exemplo, só eram realizadas com o apoio da pasta. Esse fato será relevante na investigação.
A advogada Ana El Kadri, Diretora de programas do Mapa do Acolhimento, organização que acolhe mulheres cis e trans vítimas de violência, destaca que o assédio sexual geralmente acontece em ambientes privados, como escritórios ou por telefone, onde não há testemunhas. Por outro lado, a importunação sexual costuma ocorrer em locais públicos, onde a presença de testemunhas ou provas, como câmeras de segurança, podem ajudar na apuração.
Segundo ela, na prática, o relato da vítima pode ser suficiente para formalizar uma denúncia em casos de violência ocorridos em ambientes privados. No entanto, em crimes que acontecem em espaços públicos, é comum que outras provas sejam exigidas para corroborar o depoimento da vítima.
“A questão aqui é que a palavra da sobrevivente em qualquer caso deve ter peso maior e deveria servir como prova única e exclusiva para a realização de uma denúncia”, defende.
Palavra da vítima é suficiente para iniciar investigação
A advogada Alice Bianchini, doutora em Direito Penal e vice-presidenta da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas (ACMJ), destaca dois momentos cruciais em casos de violência contra a mulher: o acolhimento da vítima e a investigação com perspectiva de gênero.
Ela explica que, no primeiro momento, “a palavra da vítima é suficiente para iniciar a investigação”, e alerta que, se o depoimento for desacreditado, muitas provas importantes podem ser perdidas, já que muitas são irrepetíveis.
“Desde o acolhimento nos serviços de saúde até a investigação e o processamento judicial, é crucial garantir que a vítima seja ouvida adequadamente”, ressalta. Esse procedimento é chamado de “depoimento sem dano”, e o Fórum Nacional de Juízes e Juízas (Fonavid) estabelece diretrizes sobre como conduzi-lo adequadamente.
Mayara de Andrade, advogada e conselheira do Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres (Cedim/SC), destaca que preconceitos enraizados na sociedade desqualificam o relato das vítimas, acusando-as de vingança ou mentiras, o que dificulta a obtenção de justiça. Segundo Andrade, o trauma pode afetar a forma como a vítima narra os fatos, mas isso não deve ser interpretado como falta de credibilidade.
“Não podemos ignorar que vivemos em uma sociedade ainda muito machista e patriarcal, onde existe a ideia de que mulheres são vingativas e mentem para obter vantagens. Neste caso do ex-ministro, não foi diferente”, ressalta.
Ana El Kadri aponta que exigir outras provas para reivindicar um direito reforça a lógica de que a violência precisa ser validada pelo contexto social para ser reconhecida. Para ela, o que está em questão é o funcionamento de tribunais e delegacias, onde, na maioria das vezes, a palavra da sobrevivente é minimizada ou descredibilizada, a ponto de impedir o acesso à justiça. “Se tratando de um sistema que opera a partir da lógica patriarcal, precisamos ter mecanismos jurídicos que protejam as mulheres e garantam o seu acesso a direitos”, argumenta a advogada.
Por fim, Bianchini destaca a importância de investigações com perspectiva de gênero, seguindo diretrizes de 2016, que são aplicáveis a todos os tipos de violência contra a mulher. As diretrizes às quais ela se refere constam no Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio que orienta as instituições a aprimorar sua resposta em todas as etapas do processo judicial, levando em conta as desigualdades de gênero. “Se uma investigação não considera essa perspectiva, pode comprometer todo o processo”, alerta a advogada.
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Fonte : Agência Patrícia Galvão