Por: Carolina Ricardo e Cristina Neme
Presença da arma de fogo, além do risco de morte, aumenta a vulnerabilidade da mulher à situação de violência na medida em que se impõe como um meio de coação altamente letal
A violência contra a mulher é uma realidade que persiste e se manifesta de diversas formas, não só na sociedade brasileira, mas globalmente. É um dos efeitos da desigualdade estrutural entre homens e mulheres, presente em muitas dimensões da vida social: no trabalho, no lazer, na política. A gravidade das agressões que atingem sistematicamente as mulheres ganhou maior reconhecimento com a tipificação prevista na Lei Maria da Penha, que discriminou as formas de violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial características da violência doméstica e familiar, e instituiu meios de reprimir e prevenir sua ocorrência.
A Lei Maria da Penha, de 2006, e a lei do feminicídio, de 2015, são instrumentos fundamentais para o enfrentamento da violência doméstica e de outras formas de agressão às mulheres que são motivadas pela discriminação de gênero e pela misoginia, o ódio ao feminino. Esses instrumentos ajudaram a reconhecer melhor o problema, aumentando a conscientização social e o reconhecimento por parte das vítimas. Ofereceram também meios de coibir o agressor e proteger a vítima em situação de vulnerabilidade.
Política de controle de armas deve ser construída também sob a perspectiva de gênero, de modo interseccionado com a política de enfrentamento da violência contra a mulher
Mas há muito a avançar. Em contexto de desigualdades estruturais, o machismo e a misoginia perseveram e atualizam as formas de manifestação da violência. Exemplos de ataques às mulheres por meio digital assim como a violência política cometida contra parlamentares e lideranças políticas femininas evidenciam que a violência de gênero se estende para além da esfera doméstica.
As notícias de crimes de feminicídio e de violência doméstica despontam todos os dias no país. Vidas perdidas ou destruídas pela razão de ser mulher em uma sociedade que, apesar das transformações legais, sociais e econômicas que estabeleceram relações de gênero mais igualitárias, segue alimentada por valores machistas. Os dados escancaram as graves consequências desse cenário, que afetam também as famílias das vítimas.
No ano de 2022, foram registradas cerca de 3,8 mil mortes de mulheres por agressão no Brasil, das quais metade foi provocada por arma de fogo: um assassinato provocado por arma a cada quatro horas. Foram também notificados cerca de 3,8 mil casos de violência envolvendo arma de fogo contra mulheres que, em razão da agressão sofrida, passaram por atendimento no sistema de saúde. Nesses casos, a arma de fogo é empregada sobretudo em atos de agressão física, psicológica e sexual.
Esses números indicam como a presença da arma de fogo, além do risco de morte, aumenta a vulnerabilidade da mulher à situação de violência na medida em que se impõe como um meio de coação altamente letal. Dos homicídios ocorridos dentro de casa em 2022, 39% foram cometidos com arma de fogo. No caso das agressões de mulheres envolvendo arma de fogo que não resultaram em morte, 43% aconteceram dentro de casa e, em 43% dos casos, os autores eram pessoas próximas à vítima, como companheiros ou ex-companheiros, amigos e familiares. Ainda, em ao menos 35% dos casos de agressão armada dentro de casa, havia também indício de uso de álcool pelo agressor, outro fator de risco de violência que se soma à presença da arma de fogo.
A violência armada atinge muito mais as mulheres negras, que foram 68% das vítimas em 2022, mas a arma de fogo é o principal meio empregado no assassinato tanto de mulheres negras como de não negras.
Após a política de facilitação ao acesso e enfraquecimento dos mecanismos de controle de armas, promovida pela gestão federal anterior, o país viu crescer exponencialmente a quantidade de armas nas mãos dos cidadãos e conta hoje com um arsenal de aproximadamente 2 milhões de armas de CACs e para defesa pessoal.
A arma de fogo ceifa a vida de milhares de pessoas a cada ano no país e é um fator de violência contra mulheres. Desse modo, a política de controle de armas deve ser construída também sob a perspectiva de gênero, de modo interseccionado com a política de enfrentamento da violência contra a mulher. O país já instituiu medidas importantes nesse sentido, como as leis que determinam a apreensão de arma de fogo do agressor e a avaliação de risco em que a mulher se encontra no momento do registro de uma ocorrência de violência. É preciso avançar na implementação dessas medidas na rotina dos operadores do sistema de justiça criminal – da polícia à Justiça – para que ganhem efetividade. Assim como investir em estruturas, equipamentos e recursos humanos que garantam a assistência às vítimas, desde delegacias especializadas abertas por 24 horas até uma rede de atendimento capaz de oferecer proteção às vítimas e condições para que rompam ciclos de violência.
Fonte: Nexo