Mulheres recorrem à Câmara para pedir o incentivo ao parto humanizado e tirar o Brasil do incômodo posto de ser um dos líderes mundiais em cesarianas Ana Duarte Nascimento, 31, planejou o parto de Gabriel, 1 ano e nove meses, antes mesmo de saber que estava grávida. “Eu sempre quis um parto normal, sempre tive medo de passar por uma cirurgia”, conta ela. Mas quando procurou uma obstetra do plano de saúde, entrou numa batalha não prevista. Com a data provável de nascimento do bebê em julho, plenas férias escolares, começou já na 35ª semana a ser pressionada pela médica para agendar uma cesariana. “Ela dizia: ‘vou sair de férias’. Como quem diz: ‘vai mesmo arriscar fazer o parto com um plantonista?’”, conta ela, que resistiu. Cinco semanas depois, ouviu da obstetra que não poderia ter um parto normal porque não tinha dilatação para isso. “Mas eu nem havia entrado em trabalho de parto!”, diz Nascimento, que na época não sabia que o argumento não fazia sentido e o aceitou. Acabou na sala cirúrgica. Ainda com a voz embargada ao lembrar da frustração, ela diz ter se sentido privada do direito de parir, sentimento compartilhado por Adelir Carmen de Góes, 29 anos, que em 31 de abril foi obrigada pela Justiça a ir até um hospital, onde teve seu bebê retirado do útero à força. A decisão judicial dizia que ela havia colocado em risco a vida do filho por não ter aceitado o diagnóstico da médica do hospital de Torres (Rio Grande do Sul) onde ela, grávida de 42 semanas, havia ingressado com dores pélvicas. A obstetra dizia que ela deveria fazer uma cesariana, pois caso esperasse entrar em trabalho de parto para tê-lo via vaginal o bebê seria sufocado, já que estava sentado. E, além disso, disse a profissional, como Adelir já havia feito duas cesáreas, o menos arriscado era mesmo fazer a cirurgia. Ela não aceitou. Voltou para a casa, após assinar um termo de alta à revelia (a pedido do paciente, sem a autorização do médico) com a promessa de que voltaria quando entrasse em trabalho de parto. Mesmo assim, o hospital procurou o Ministério Público, que pediu a intervenção judicial. Pouco depois, policiais, acompanhados de um oficial de Justiça, chegaram à casa dela, que ouviu a ameaça de que seu marido seria preso, caso desobedecesse a ordem. O caso de Adelir causou indignação no país por ser a primeira vez que a decisão de uma mulher na hora de parir sofreu interferência direta da Justiça. Com medo de que isso abrisse um precedente considerado perigoso, mulheres resolveram se organizar e pressionar para que a questão do parto passasse a ser discutida com seriedade no país. A Artemis, uma das principais entidades em defesa da mulher em situação de violência, conseguiu agendar uma audiência na Comissão dos Direitos Humanos da Câmara para tentar sensibilizar os deputados sobre a causa. No próximo dia 7, apresentará alguns dados alarmantes sobre a questão, entre eles o fato de que o país sofre uma “epidemia de cesarianas”, com taxas que estão entre as mais altas do mundo. No país, os dados mais recentes (de 2011) mostram que dos 2,9 milhões de partos feitos no ano, 53% eram cesáreas. Em 1985, a OMS (Organização Mundial de Saúde) já afirmava que não existiam razões para que algum país tivesse uma taxa superior a 15% de cirurgias do tipo, já que ela deveria ser feita apenas em casos emergenciais. As cirurgias são contraindicadas em casos não urgentes porque aumentam o risco de parto prematuro, de infecção para a mulher e por prejudicar o aleitamento materno. Um estudo da OMS de 2010 mostrou ainda que a China e o Brasil foram responsáveis por metade das cesáreas feitas no mundo. Quando analisamos os dados do município de São Paulo, mais atualizados e desmembrados por tipo de rede (pública ou privada) e por maternidades, a taxa de cesariana sobe para 55% dos 165.364 nascimentos ocorridos em 2013. A rede privada é responsável por alavancar esse número de cirurgias: de cada cem partos feitos nos hospitais particulares, em média 86 deles são cesarianas. Há maternidades em que essa proporção passa dos 90%, caso da Santa Joana, na zona sul da capital. O hospital foi a maternidade privada que mais fez partos em São Paulo em 2013 -92% deles por cirurgia. O hospital afirma que a escolha pelo parto é exclusivamente da paciente e do médico e que disponibiliza todas as condições para as pacientes que fazem a opção por partos normais e naturais, inclusive sendo a primeira do país a criar unidades especiais para parto. O argumento da escolha da paciente pelo parto cesariana é compartilhado por muitos especialistas. “A maioria das mulheres que procuram a rede privada fazem cesáreas porque falta a educação da paciente. Ela vive em um ambiente cultural onde a maioria das pessoas fez cesárea, então ela entende que aquilo é o melhor”, afirma Rossana Pulccinelli, cooperadora técnica da saúde da mulher da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e coordenadora científica de obstetrícia da Associação de Obstetrícia e Ginecologia de SP (Sogesp). Alberto Kiochi Aguemi, assessor da Saúde da Mulher da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, ressalta ainda que, pelo lado das pacientes, a escolha pela cesárea acontece, geralmente, pela comodidade de poder escolher um horário ou pelo medo de realizar um parto normal. Mas há outro fator: o da preferência do médico, do hospital e do convênio privados pela cesárea, algo que resvala no lado financeiro. “As operadoras de saúde pagam ao médico em média 250 reais por um parto normal [que pode durar horas] e 300 reais por uma cesárea [muito mais rápida]. A maternidade tem uma sala de parto. Uma cesárea dura em média uma hora. Ela pode marcar dez cesáreas em 12 horas, tempo que pode durar um único parto normal”, conta ele. A conclusão: é muito mais rentável realizar cesarianas do que partos naturais. E, por isso, a mulher acaba convencida de que o melhor é fazer a cirurgia, mesmo quando ela não é necessária. Na rede pública, como o parto é feito com o médico plantonista do hospital e o dinheiro não pesa, o número de cirurgias acaba sendo menor. O aspecto financeiro acaba por criar na rede privada algumas aberrações, como o caso vivido pela médica D.A., que nesta semana buscou uma vaga em uma maternidade particular para internar uma paciente que precisava ter o parto induzido e demorou 12 horas para encontrar um leito, pois todas as maternidades estavam lotadas com cesarianas marcadas, já que muitos médicos preferiram adiantar suas cirurgias por conta do feriado da próxima semana para poder sair de folga. “Isso sempre acontece perto de feriado. Antes do Natal é o pior. Nenhum médico quer ficar preso a uma paciente em trabalho de parto na própria folga”, diz ela, que pediu para não ser identificada por ter medo de represálias. Mais consciênciaNos últimos anos, entretanto, as campanhas feitas por entidades que lutam contra as cesáreas desnecessárias têm ajudado a aumentar a consciência das mulheres de que muitos dos argumentos dados pelos médicos para “empurrar” uma cirurgia podem não fazer sentido. Com isso, muitas mulheres estão, inclusive, procurando a Justiça para processar os médicos que, segundo elas, “roubaram delas o direito de parir”. A advogada e doula Priscila Cavalcanti, consultora jurídica da Artemis, já ingressou com ao menos dez ações desde julho do ano passado. O número inclui também outros casos de violência obstétrica, como gritos e ofensas da equipe médica, episiotomia (corte no períneo) sem o consentimento da mulher, a proibição de acompanhante na hora do parto, entre outras. Ela reconhece, no entanto, que são causas que dificilmente têm êxito, já que, muitas vezes, a mulher que sofre a pressão ou a violência está sozinha com o médico e não tem provas. O importante, nesses casos, é a exposição do problema. É justamente pela visibilidade que representa que a audiência conseguida na Câmara, em grande parte por causa da repercussão do caso de Adelir, é comemorada, explica Raquel Marques, a presidente da Artemis. “Temos que discutir de onde vem essa cultura da cesariana, quais são as crenças que a embasam”, diz ela, que ressalta que o ideal seria incentivar a criação de equipes multidisciplinares, encabeçadas por um obstetra, mas com enfermeiras obstetrizes que poderiam realizar os partos normais no lugar dos médicos. Outro ponto defendido pela instituição é o credenciamento dos municípios em um programa do governo federal para a criação de unidades de parto normal nas cidades, para que a referência da mulher para o parto deixe de ser apenas o hospital. O município de São Paulo aprovou no final do ano passado uma lei de autoria da vereadora Juliana Cardoso (PT) que obriga a criação desses centros e, agora, a prefeitura está se credenciando para receber a verba federal. Serão seis centros, mas não há previsão de abertura ainda. Adelir pode agora se transformar no ícone da mudança, como foi Jane Balaskas na Inglaterra em 11 de abril de 1982, que criou um movimento para exigir o direito a acompanhantes nos partos e o fim da episiotomia. A mobilização transformou o país em uma referência em parto humanizado. Na mesma data, neste ano, mulheres realizaram uma vigília em frente à Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, centro de São Paulo, para chamar a atenção para o caso Adelir. O Brasil, 32 anos depois, começa seu processo. |
Fonte: El País
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