Recentemente, a ONU anunciou 17 metas globais para os próximos 15 anos. A meta pro Brasil é redução das desigualdades. Inspirados por isso, pensamos numa série de matérias pra VICE, Noisey, Thump e Motherboard.
O primeiro emprego de Vanessa Tonini foi de designer por apenas um motivo: ela é mulher. Formada em sistemas para internet e com pós-graduação em desenvolvimento web, Vanessa nunca gostou de design de verdade. Queria mesmo era escrever códigos. Seu chefe, porém, achava que ela não era competente para trabalhar com linguagem de programação. “Ele achava que o fato de eu ser mulher justificava ter que fazer design”, diz ela. Para se livrar de um trampo –e de um chefe– que não tinha nada a ver, ela passou por um processo seletivo em que era a única mulher. Fez prova escrita de código, realizou entrevista e acabou selecionada. Foi trabalhar com código de verdade. Hoje, aos 25 anos atua como desenvolvedora web de fato focada em front end. Vanessa é parte dos 25% de mulheres que trabalham na área de tecnologia da informação (TI) no Brasil. De acordo com dados do Censo de 2010 do IBGE, existem cerca de 518 mil trabalhadores nesse ramo no país e apenas um quarto desses trabalhadores são mulheres. É pouco. Além de serem minoria, o salário delas é cerca de 28% menor do que o dos homens. Como resultado, o ambiente de trabalho se torna hostil, e as mulheres precisam provar muito mais que sabem o que estão fazendo e não precisam de ajuda, obrigada. Tem homem dizendo publicamente por aí que essa disparidade no mercado é culpa da biologia, mas não é bem assim. “É muito importante a gente começar a quebrar essa cultura dentro da área. Não sei quando exatamente surgiu isso, mas antigamente, 50, 60 anos atrás, eram as mulheres que cuidavam de software e os homens de hardware. Inverteu nos últimos 20 anos”, conta Vanessa. Um grande exemplo dessa história que a Vanessa contou é o que aconteceu em Bletchley Park durante a Segunda Guerra Mundial. Foi lá que Alan Turing, considerado o pai da computação, decifrou o Enigma, uma máquina de codificação utilizada pelos alemães para trocar mensagens com táticas de guerra. Ninguém contesta a importância do trabalho de Turing, que, estimam, reduziu em dois anos o tempo de duração da guerra e salvou milhões de vidas; o que pouca gente lembra quando toca no assunto é que metade da equipe de 10 mil pessoas que trabalhavam lá era formada por mulheres. Fascinada por esse fato, a pesquisadora inglesa e doutora em computação Sue Black, da University College, em Londres, se dedicou a saber mais sobre essas mulheres. “Fiquei muito surpresa de não saber sobre isso, então comecei a levantar fundos para um projeto histórico de entrevistas com algumas mulheres que estiveram lá”, ela conta ao Motherboard. Com o levantamento, Sue descobriu que Bletchley Park inteiro estava fadado ao esquecimento por falta de grana. Em 2008, ela lançou uma campanha para salvar essa história. Conseguiu. A pesquisadora esteve no Brasil em 2012 por causa do centenário do Alan Turing. Em 2015, ela voltou para participar de um painel sobre mulheres em tecnologia no Consulado Britânico. Entusiasmada, ela se revelou uma ativista em prol de mais mulheres nessa área no nosso país e no mundo. “Tradicionalmente têm sido homens brancos no comando de tantas coisas. Eu acho que mulheres, assim como todas as minorias, têm muito a oferecer, não só na tecnologia, mas em geral no mundo”, diz. Assim como a Vanessa foi minoria na sua turma da faculdade, na classe de Sue apenas 10% dos alunos eram mulheres. As duas contaram que não se incomodaram no começo, mas depois passaram a perceber que existia um padrão de desigualdade dentro de sala de aula. “Se você é maioria, na maioria das vezes, é fácil se encaixar. O que eu estou dizendo é óbvio, mas nunca tinha acontecido comigo antes. Quando você é minoria, você pode ficar muito desconfortável”, afirma Sue. Ao voltar para Londres, Sue sabia o que era preciso fazer para esse desconforto ir embora. Ela fundou a primeira rede on-line para mulheres na computação do Reino Unido, a BCSWomen, em 2001, que hoje conta com mais de mil membros. “Eu queria que fosse um grupo de apoio, basicamente”, diz. “Foi legal porque, de repente, tínhamos centenas de mulheres se conhecendo e conversando entre si sobre questões de tecnologia e contando histórias difíceis sobre ser mulher nesse meio”, declara a doutora. Para ela, essa comunicação é o que mais dá autonomia às mulheres. No Brasil, rola algo parecido. A jornalista Carine Roos, 29, fundou em 2013, ao lado de outras mulheres, o MariaLab, o primeiro “hackerspace” voltado para mulheres (e pessoas que não são consideradas homens) no país. Hoje são mais de 130 pessoas na lista de e-mails. Inspiradas em “hackerspaces” dos EUA como o Double Union, de San Francisco, e o HackerMoms, de Berkeley, voltados para mulheres, as meninas do MariaLab promovem oficinas e palestras para educar as minas em tecnologia e lhes dar autonomia. “A gente quer que as mulheres se sintam seguras fazendo o que gostam de fazer”, diz Carine. Ela foi a primeira mulher a ser sócia do Garoa Hacker Clube, um dos primeiros espaços do tipo no Brasil. O Garoa é um local aberto e colaborativo, mas que ainda conta com poucas mulheres. Lá nasceu a ideia de Carine e outras mulheres de abrir um espaço voltado apenas para elas. “Num espaço que é dominado por homens, é mais difícil, a gente se sente mais acanhada e acaba não perguntando. Então a gente achou que seria interessante ter um espaço voltado para mulheres, mas que no Garoa não seria, então era hora de criar o MariaLab”, conta Carine. Além da autonomia, objetivo delas também é ensinar as mulheres a se protegerem de ataques que possam rolar na internet, como “revenge porn” e ameaças, por meio da criptografia. “O ativismo é muito perseguido, principalmente porque a gente luta por causas que causam certo desconforto nas pessoas”, afirma Vanessa, que também atua no MariaLab. Segundo Carine, as aulas vão além de ensinar como funciona o básico do computador. “A linguagem da programação dita as coisas do mundo, então a lógica da programação é a lógica do mundo e como as coisas estão organizadas”, diz. “Se você tiver uma noção de códigos e de dados, isso pode te ajudar com as coisas até mais simples como no Excel. E você tem também mais autonomia sobre seus aparelhos. Existem professores que dizem que o básico, as estruturas da programação deveriam ser ensinadas nas escolas, o básico, as estruturas, o raciocínio lógico.” O efeito de iniciativas como o MariaLab é que os números se tornam mais animadores. Nas turmas da professora titular Maria Eugênia Boscov, do curso de engenharia civil e engenharia ambiental Escola Politécnica da USP, hoje existe uma média de 30% de meninas, contra 5% na época em que ela cursou engenharia civil na mesma instituição, em 1977. Em 2004, a Poli nomeou a primeira professora titular da instituição, e só existe uma mulher vice-diretora por lá. “Você tem que se destacar muito para conseguir avançar, porque você não está competindo em pé de igualdade com os homens”, justifica a professora. Maria Eugenia diz que acha muito importante esse tipo de iniciativa, assim como debates e, no caso da Poli, a existência do Poligen, o grupo de estudos de gênero da Escola Politécnica, dentro do meio da tecnologia e da ciência. “É importante porque às vezes a gente não tem consciência do que está acontecendo, você acha que é algo particular seu, mas aí você vê que não, que acontece com outras mulheres”, ela opina. A luta não é fácil, mas só desconstruindo preconceito é que as coisas podem mudar. Mesmo com todas as tretas, Sue me garantiu que uma carreira no ramo da tecnologia é a melhor carreira que alguém pode ter: “Se você quer mudar o mundo, então a tecnologia deve ser a sua carreira”. Letícia Naísa |
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Fonte: Folha de S. Paulo
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