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O Mapa da Violência 2012, publicado pelo Instituto Sangari, aponta que, de 1980 a 2010, foram assassinadas no País mais de 92 mil mulheres. A mesma pesquisa ressalta que duas em cada três pessoas atendidas no SUS são mulheres vítimas de violência doméstica ou sexual.
Como compreender o fenômeno da Violência Contra a mulher? Qual tem sido a resposta da ordem internacional a esta grave violação aos direitos humanos das mulheres? Qual tem sido o impacto da Lei Maria da Penha (nº 11.340/06) na experiência brasileira? Quais são os desafios e perspectivas para assegurar às mulheres uma vida livre de violência?
Fruto de reivindicação do movimento de mulheres, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de discriminação contra a mulher foi adotada pela ONU em 1979, sendo hoje amplamente ratificada por 187 Estados. Embora a Convenção não explicite a temática da Violência Contra amulher, o Comitê da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de discriminação contra a mulher adotou relevante Recomendação Geral sobre a matéria, realçando que: “A violência doméstica é uma das mais insidiosas formas de violência contra mulher. Prevalece em todas as sociedades. […]. A violência baseada no gênero é uma forma de discriminação que seriamente impede a mulher de exercer seus direitos e liberdades com base na igualdade com relação ao homem”.
O Secretário-Geral da ONU, em 8 de março de 2013, reiterou o compromisso das Nações Unidas no combate à epidemia mundial de Violência Contra a mulher. Segundo a ONU, 7 em cada 10 mulheres no mundo já foram vítimas de violência física e/ou sexual em algum momento de sua vida (dado da Campanha UNiTE to end Violence against Women). Por sua vez, a Comissão sobre o Status da mulher aprovou, em sua 57ª sessão, em março de 2013, uma resolução demandando expressamente que os Estados acelerem seus esforços para desenvolver, revisar e fortalecer políticas para combater as causas estruturais de violência contra mulheres e meninas, incluindo discriminação e estereótipos de gênero, desigualdades, desequilíbrio nas relações de poder entre homens e mulheres, entre outros fatores. Alude, ainda, à necessidade de empreender esforços com vistas a erradicar a pobreza e as persistentes desigualdades econômicas, sociais e legais, principalmente por meio do fortalecimento da participação econômica de mulheres e meninas, como forma de diminuir o risco de violência. No mesmo sentido, a Relatora Especial da ONU sobre a Violência Contra a mulher tem realçado a necessidade de fortalecer due diligence standards, envolvendo tanto a prevenção, como a repressão à violência no campo da responsabilidade do Estado.
A Declaração da ONU sobre a Eliminação da Violência Contra a mulher, de 1993, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a mulher (Convenção de “Belém do Pará”), de 1994, reconhecem que a Violência Contra a mulher, no âmbito público ou privado, constitui grave violação aos direitos humanos e limita total ou parcialmente o exercício dos demais direitos fundamentais. Definem a Violência Contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública, como na privada”. A violência baseada no gênero ocorre quando um ato é dirigido contra uma mulher, porque é mulher, ou quando atos afetam as mulheres de forma desproporcional. Afirmam que a violência baseada no gênero reflete relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre homens e mulheres.
A Convenção de “Belém do Pará” elenca um importante catálogo de direitos a serem assegurados às mulheres, para que tenham uma vida livre de violência, tanto na esfera pública, como na esfera privada. Consagra ainda deveres aos Estados partes, para que adotem políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a Violência Contra a mulher.
É neste contexto que nasce a Lei Maria da Penha, em 7 de agosto de 2006, instituindo, de forma inédita, mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como medidas para a prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de violência.
Diversamente de 17 países da América Latina, o Brasil, até 2006, não dispunha de legislação específica a respeito da Violência Contra a mulher. Aplicava-se a Lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais (JECrim) para tratar especificamente das infrações penais de menor potencial ofensivo, ou seja, aquelas consideradas de menor gravidade, cuja pena máxima prevista em lei não fosse superior a um ano. Contudo, tal resposta mostrava-se absolutamente insatisfatória, ao endossar a equivocada noção de que a Violência Contra a mulher era infração penal de menor potencial ofensivo, e não grave violação a direitos humanos. Pesquisas demonstram o quanto a aplicação da Lei nº 9.099/95 para os casos de Violência Contra a mulher implicava a naturalização e legitimação deste padrão de violência, reforçando a hierarquia entre os gêneros. Os casos de Violência Contra a mulher ora eram vistos como mera “querela doméstica”, ora como reflexo de ato de “vingança ou implicância da vítima”, ora decorrentes da culpabilidade da própria vítima, no perverso jogo em que a mulher teria merecido, por seu comportamento, a resposta violenta.
No campo jurídico, a omissão do Estado brasileiro afrontava a Convenção de “Belém do Pará”, ratificada em 1995. É dever jurídico do Estado atuar com a devida diligência para prevenir, investigar, processar, punir e reparar a Violência Contra a mulher, assegurando às mulheres recursos idôneos e efetivos.
Daí o advento da Lei Maria da Penha, em cujo texto destacam-se sete inovações extraordinárias:
Mudança de paradigma no enfrentamento da Violência Contra a mulher
A violência contra mulher era, até o advento da Lei Maria da Penha, tratada como uma infração penal de menor potencial ofensivo, nos termos da Lei nº 9.099/95. Com a nova Lei, passa a ser concebida como uma violação a direitos humanos, reconhecendo a norma que “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma as formas de violação dos direitos humanos” (art. 6º), sendo expressamente vedada a aplicação da Lei nº 9.099/95.
Incorporação da perspectiva de gênero para tratar da Violência Contra a mulher
Na interpretação da Lei devem ser consideradas as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. É prevista a criação de Juizados de violência doméstica e Familiar contra a mulher, com competência cível e criminal, bem como atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à mulher.
Incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar
Para o enfrentamento da Violência Contra a mulher, a Lei consagra medidas integradas de prevenção, por meio de um conjunto articulado de ações da União, Estados, Distrito Federal, Municípios e de ações não governamentais. Sob o prisma multidisciplinar, determina a integração do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, com as áreas da segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.
Realça a importância da promoção e realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como da difusão da Lei e dos instrumentos de proteção dos direitos humanos das mulheres. Adiciona a necessidade de capacitação permanente dos agentes policiais quanto às questões de gênero e de raça e etnia.
Fortalecimento da ótica repressiva
Além da ótica preventiva, a Lei inova a ótica repressiva, ao romper com a sistemática anterior baseada na Lei nº 9.099/95, que tratava da Violência Contra a mulher como uma infração de menor potencial ofensivo, sujeita à pena de multa e de entrega de cestas básicas.
Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei proíbe penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniárias, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
Harmonização com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a mulher
A Lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em conformidade com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a mulher. Amplia o conceito de Violência Contra a mulher, compreendendo tal violência como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, que ocorra no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto.
Consolidação de um conceito ampliado de família e visibilidade ao direito à livre orientação sexual
A nova Lei consolida, ainda, um conceito ampliado de família, afirmando que as relações pessoais a que se destina independem da orientação sexual. Reitera que toda mulher, independentemente de orientação sexual, classe, raça, etnia, renda, cultura, nível educacional, idade e religião tem o direito de Viver sem Violência.
Estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas
Por fim, a Lei prevê a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero, raça e etnia, concernentes à causa, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, com a sistematização de dados e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas.
A adoção da Lei Maria da Penha permitiu romper com o silêncio e a omissão do Estado brasileiro, que estavam a caracterizar um ilícito internacional, ao violar obrigações jurídicas internacionalmente contraídas quando da ratificação de tratados internacionais. A tolerância estatal à Violência Contra amulher perpetua a impunidade, simbolizando uma grave violência institucional que se soma ao padrão de violência sofrido por mulheres, em total desprezo à ordem internacional e constitucional.
A Lei Maria da Penha constitui uma conquista histórica na afirmação dos direitos humanos das mulheres. Sua plena implementação – com a adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da Violência Contra a mulher, em todas as suas manifestações – surge como imperativo de justiça e respeito aos direitos das vítimas desta grave violação que ameaça o destino e rouba a vida de tantas mulheres brasileiras.
Flávia Piovesan é Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) nas disciplinas de Direitos Humanos e Direito Constitucional. Membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Procuradora do Estado.
(Consulex, 22/10/2014)
Fonte: Agência Patrícia Galvão