Pesquisa inédita na Espanha revisa, um a um, centenas de feminicídios. A partir de dados sobre personalidade e comportamento dos agressores, o objetivo é prevenir assassinatos
Tudo começa lançando ao vento uma pergunta quase sempre evitada, sob o rótulo de “crime machista”: Por que as matam?
Os homicídios classificados como “violência de gênero” abrangem em média 60 mortes de mulheres por ano na Espanha. Desde o caso do sujeito que um belo dia deu um golpe mortal na cabeça de sua mulher e depois a esquartejou para se livrar do cadáver até o do bom pai com o divórcio atravessado na garganta que uma noite, cheio de raiva, entra na casa dos sogros e esfaqueia toda a família. Passa também pelo bandidão da cidade que flerta com drogas, de vez em quando perde a cabeça, entra e sai da prisão e acumula mandados de afastamento que não cumpre — inclusive com o consentimento dela —, até que um dia perde a cabeça de vez e acaba matando-a.
Diante da ideia generalizada — e ensinada nas universidades — de que a violência de gênero implica uma escalada (tensões, agressões verbais, físicas, falsa lua de mel e manipulação emocional…), existe um dado novo e desconcertante: em 45% dos casos os homens que assassinaram seu par não tinham nenhum antecedente violento conhecido; entrariam num amplo grupo que pode ser classificado como de agressores “eventuais”, e, portanto, imprevisíveis.
O rótulo global de “violência de gênero” inclui todos os “homicídios de casal” e se mostra útil para fazer esta contabilidade macabra, mas inútil para detê-la, porque o número mal varia ano após ano. Na Espanha, cerca de 60 assassinatos por ano. Já no Brasil, segundo o Mapa da Violência 2015 sobre Homicídios de Mulheres, ocorrem aproximadamente 5.000 feminicídios por ano, uma taxa de 4,8 para 100.000 mulheres — a quinta maior do mundo e um aumento de 111% com relação a 1980, quando a proporção de feminicídios era de 2,3 para 100.000 mulheres, segundo o estudo.
Uma análise pormenorizada dos casos pode revelar algumas chaves. Foi o que imaginaram na Secretaria de Estado da Segurança do Ministério do Interior da Espanha. Estes órgãos se puseram então a revisar um por um. Já têm 42 casos encerrados e mais de 100 em estudo. E pretendem chegar a 200 no final deste ano. O objetivo é conseguir prevenir os crimes detectando e acrescentando indicadores de “risco homicida” nas delegacias e quartéis em que são feitas as denúncias.
Segundo as primeiras análises do minucioso estudo desenvolvido na Secretaria de Estado, há cerca de 20% dos agressores que podem ser considerados “sociopatas”, homens com dificuldades de integração social, com antecedentes penais ou policiais; 30% que seriam instáveis emocionalmente. E 5% podem ser classificados como psicopatas.
Embora os resultados do estudo sejam conhecidos somente no final do ano, já há uma primeira conclusão: “Não há um padrão único, a violência de gênero não pode ser tratada como um fenômeno homogêneo, porque é heterogêneo e multicausal”, concordam os especialistas. “Dizer que tudo é machismo é ficar na superfície, é preciso averiguar o que detona esta agressividade mortal”, indicam os coordenadores do projeto, o comandante da Guarda Civil e doutor em psicologia José Luis González e o policial e psicólogo Juan José López-Ossorio, da Unidade Central da Família e Mulher (UFAM), ambos com metade da vida dedicada à análise da violência em casais.
As variáveis psicossociais mais comuns a todos os casos analisados servirão como indicadores para melhorar a chamada “Escala do Risco Homicida”. No caso deles, fatores como uma “socialização em cultura sexista, aumento de discussões, processo de separação com ou sem filhos, infidelidades (mais se o rejeitado é ele), baixa tolerância à frustração, sensação de abandono ou de perda, estresse, ruminação de pensamento…”. E no caso delas: “Maus-tratos prévios, baixa autoestima, ser dependente (emocional ou economicamente), falta de apoio social/familiar, situação de imigração, vícios…”.
A seguir estão três exemplos resumidos desta macroinvestigação. Os dados mais reveladores são obtidos com entrevistas no entorno do casal: familiares, amigos, ex-casais, companheiros de trabalho, médicos, assistentes sociais… O EL PAÍS teve acesso a muitas delas, que não podem ser reproduzidas literalmente devido a uma cláusula de confidencialidade.
Caso 1. Uma “carnificina” sem violência prévia.
Tinham se conhecido havia pouco tempo e foram morar juntos quando ela engravidou. Ela era peruana, tinha três filhos de um relacionamento anterior e estava sem visto de residência na Espanha. Tinha chegado à cidade vinda de uma casa de acolhimento depois de ter sido vítima de violência de gênero. Ele tocava um açougue e tinha boa situação econômica. Parecia que tudo ia bem, até que numa bela manhã, no calor de uma discussão, ele a golpeia e a mata. Colocou o corpo no carro e o jogou de um penhasco. Depois pensou melhor e o separou como se fosse um boi e enterrou os pedaços. Nos dias seguintes mentiu aos filhos e aos amigos, dando versões contraditórias: “Está no hospital”; “Está viajando”… Até mandou para si mesmo e para a mãe dela mensagens a partir do celular da mulher: “Mãe, estou nas Ilhas Gregas”. Mas ela, desconfiada, denunciou o desaparecimento de sua filha.
Ele “era um bobão, a cidade toda lhe devia dinheiro”, dizem. “Estava muito apaixonado, enfrentou seu pai por ela.” “Até ficou amigo do ex dela.”. “E levava seus filhos à escola”. Ele “estava mal, nunca se meteu com ninguém”… Palavras de familiares e conhecidos.
Dessa maneira, sem antecedentes violentos, não confessou o crime até 25 dias depois. Sua versão, já na prisão, é que naquela manhã tinham discutido porque ela — que só colaborava com a pensão dada por seu ex aos três filhos — queria que fossem viajar. Ele queria ficar para as festas locais e para vender carne. Então ela ameaçou denunciá-lo por violência…
Algumas conclusões do relatório elaborado pela psicóloga Maria Luisa Alcázar, especialista em análise de comportamento na unidade técnica de Polícia Judicial da Guarda Civil, apontam no que se refere a ele: “Violência situacional, falta de habilidades para gerir conflitos (sempre fugia), incapacidade de dizer “não”, elevada necessidade de aceitação social (contradição com valores socialmente aceitos), sensação de encurralamento, dificuldade para a expressão emocional…”. E no caso dela: “Falta de apoios familiares, filhos a seu cargo, gravidez, dependência econômica, vícios, antecedentes de violência, situação de imigração…”
Caso 2. Ela e seus filhos sobrevivem.
“O estranho é que era o papai”, diz o menino de oito anos no dia seguinte aos fatos. “Quando entrei no quarto vi que estava golpeando a mamãe com uma faca e que o namorado dela estava caído no chão, com sangue na barriga, e disse ao meu pai: ‘O que está fazendo, você é bobo?’ E ele foi embora.”
“Foi meu primeiro namorado”, conta ela, que sobreviveu às facadas. “Não tinha amigos, era controlador e ciumento”, diz. “Começou a me humilhar, a me vigiar e a me isolar”, prossegue. “Uma vez me arrancou da cama pelo cabelo, fiquei uns dias na casa dos meus pais e voltei porque me convenceu, até que pedi o divórcio”, afirma. “Naquela noite soube que eu ia conseguir um cargo político”, ressalta. E conclui: “Não denunciei porque achei que seria contraproducente, não vi chegando”.
As conversas com pessoas de seu círculo revelam que as discussões começaram quando ele flagrou uma mensagem de um terceiro. Ela pediu o divórcio e começou um relacionamento “com o das mensagens”, enquanto decolava em sua carreira política. Ele aceitou a situação com muita relutância, teve crises de ansiedade e ameaças de suicídio. Ele ficou na cidadezinha, na casa da família, com as reclamações de sua mãe. Ela ficou com o carro, que tanto lhe custara para comprar. Ele dava pensão para os filhos, pegava-os e os levava de volta nos fins de semana e reclamava sempre de que estavam vestidos do mesmo jeito. Não tinha nenhum rompante prévio de violência.
O relatório da capitã e doutora em psicologia Maria José Garrido aponta como possíveis fatores de risco “a importância da personalidade: de talhe introvertido, o neuroticismo (ruminações, tendência à preocupação), isolamento…”, indica. “Uma pessoa que não ventila seus problemas acaba se tornando uma bomba-relógio.” Matou o namorado de sua ex-mulher, o pai e o irmão dela quando tentaram pará-lo.
Caso 3. 49 denúncias. A “escalada de violência”.
“Já me acusou, é isso, não me deixa viver, com denúncias por todos os lados.” É um fragmento da chamada que ele fez de madrugada para o 112, número espanhol para emergências. Os anos de vaivém do casal eram conhecidos por toda a cidade. O sistema informatizado do posto da Guarda Civil registrava 49 denúncias.
O agressor acumulava 14 crimes por quebra de mandados de afastamento, às vezes “com o beneplácito da vítima”, segundo relatórios policiais. Ela o visitou 17 vezes na prisão, inclusive com o filho de ambos, e lhe escrevia cartas de amor. Ele tinha se divorciado de outra mulher por violência de gênero.
Na noite dos acontecimentos se encontraram num bar da cidadezinha. Ela lhe disse para ir embora, ou chamaria a Guarda Civil. Ele lhe disse para chamar quem quisesse, que era seu aniversário. Acabou matando-a a golpes na rua.
“Era ela que o perseguia”, dizem vizinhos, “a perdição deles era o álcool”. A filha mais velha a descreve como “boa, repentinamente mal, deprimida pela falta de dinheiro, mas iludida com outra relação”. Sobre ele: “Mau, obcecado por minha mãe, cocainômano, manipulador e agressivo”. Os irmãos dela dizem que “era irresponsável e impulsiva”, mas negam conhecer seu relacionamento. Os amigos o descrevem como “um abusador de carteirinha”. “Trabalhador, mas bebedor”; “com poucos amigos”; “encantador, mas muito irritável”.
A psicóloga que a atendia a via “indefesa, questionada pelas pessoas e dependente”.
Por que naquela noite? O que detonou a violência mortal? “Ele viu frustrada sua expectativa de passar a noite com ela”, informa o relatório da capitã e psicóloga Cristina Gayá. “Ambos estavam conscientes de que a relação estava terminando e buscavam alternativas sentimentais.” “A ele, educado numa cultura machista, chegavam naquele momento recriminações tardias, e temia perder contato com seu filho.” “Ela sofre um isolamento sociofamiliar que a faz vulnerável. E ele carece de apoios reais.” Um coquetel que, misturado com álcool, foi mortal.
Patrícia Ortega Dolz
Fonte: El País