Duas pesquisas divulgadas em junho evidenciam o peso do racismo patriarcal, institucional e estrutural na dinâmica da violência que atinge as mulheres negras no Brasil.
O 3 de julho marca no Brasil o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial. Importante nesta data destacar que as 49 milhões de pretas e pardas que vivem no país, segundo dados do Censo 2010 do IBGE, têm estado historicamente sobrerrepresentadas em todos os índices de violações a direitos. Nessa mesma direção, os dados da pesquisa Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, realizada pelo DataSenado entre 29 de março e 11 de abril, com a participação de 1.116 entrevistadas por telefone, ressaltam como o racismo potencializa e torna ainda mais cruel as violências contra negras frente àquelas praticadas contra mulheres não negras. Já o Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostra a dupla face da mortalidade negra feminina, ao apresentar a série histórica de homicídios entre 2005 e 2015. Além de serem maioria entre as vítimas fatais de agressão, mulheres negras são também as que mais morrem pelas mãos do Estado, nas “intervenções legais e operações de guerra”, que é como as operações policiais são denominadas na base de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, utilizada para elaboração do Atlas.
O racismo nas operações policiais também mata mais mulheres negras
As negras representam 24,5% da população brasileira. No entanto, de acordo com o Atlas da Violência 2017, 61% das mulheres vítimas de óbitos violentos na década analisada eram pretas ou pardas (27.852 em um total de 45.425). A taxa de homicídios de mulheres negras por 100 mil habitantes cresceu 22% no período, enquanto a de mulheres brancas teve uma redução de 7,4%.
Em números absolutos, nos mesmos dez anos, o crescimento dos homicídios de mulheres negras foi de 47%, enquanto as mortes violentas de mulheres não negras tiveram um decréscimo de 5,6%.
“Temos dois fenômenos misturados aí – o do crescimento da violência letal contra as mulheres impulsionado pelo crescimento da violência de um modo geral na sociedade”, aponta Daniel Cerqueira, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea e coautor do Atlas.
Com base nos dados divulgados, a Agência Patrícia Galvão solicitou ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública os números desagregados de mortes de mulheres por agressão e por “intervenções legais ou operações de guerra” combinados com os perfis de raça/cor. Consideradas todas as classificações de raça/cor utilizadas pelo IBGE, as mortes violentas de mulheres por agentes do Estado – tema pouco debatido – tiveram uma variação de 66,7%.
“Se você olha para a ação policial de forma mais ampla e para a vitimização das mulheres de outros pontos de vista, percebe que há uma maior letalidade das negras como resultado da seletividade extremamente perversa calcada no racismo. Ressaltando que, no caso das ações policiais, há uma subnotificação imensa”, ressalta Samira Bueno, coordenadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coautora do Atlas.
Considerada somente a letalidade oficial do Estado contra mulheres em ações policiais, de 2005 a 2015 foram computadas 75 mortes por “intervenções legal ou operações de guerra”. Destas, 39 vítimas eram pretas ou pardas (52%). O número de negras mortas por agentes da lei pode ser ainda maior porque em relação a 12 vítimas femininas o quesito “raça/cor” consta como “ignorado”. Mulheres que, como a carioca Claudia Silva Ferreira e a paulista Luana Barbosa dos Reis, morreram pelas mãos de quem oficialmente é pago para proteger vidas.
Além disso, é necessário considerar a subnotificação dos registros de morte por ação policial. “No caso dos dados gerais, de homens e mulheres, se compararmos os registros policiais aos do SUS há uma diferença de cerca de 3,5 vezes para mais nesse segundo registro. E é possível afirmar que o mesmo se verifica especificamente em relação às mulheres, ou seja, que ao invés de 75 mortes por ações policiais tenham havido no período 210 homicídios desse tipo”, afirma Samira Bueno.
Outro dado do Atlas comprova outro impacto da letalidade racializada nas vidas dessas mulheres, que se revela sob a forma dos assassinatos de seus filhos. De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras, em sua maioria jovens do sexo masculino. Em evento realizado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra para divulgação do dossiê A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil: violências e violações, várias mães falaram sobre sua dor. Débora Silva afirmou que “o Estado brasileiro é um mutilador de mães. Porque quando o Estado tira nossos filhos, nosso útero, nossas trompas, nosso ovários e nossos seios passam a produzir tumores malignos. Somos mães e temos direito de nos abraçar e nos apegarmos umas as outras porque a dor da perda de um filho não tem doutor que dê jeito, não tem psicólogo preparado para tratar essas mães. E nós precisamos de especialistas. Essas mães estão morrendo e há um silêncio sepulcral para as mortes dessas mulheres, porque são negras, são pobres, são faveladas”. Débora integra o Movimento Independente Mães de Maio na Luta por Memória, Verdade e Justiça. O grupo surgiu da união de mulheres que perderam os filhos entre os dias 12 e 16 de maio de 2006, no Estado de São Paulo, a maioria mortos em ações policiais.
Violência doméstica contra negras tem números de guerra
As mulheres negras vivem outra situação que se equivale em números a panoramas de guerra: violência e morte dentro de casa. Quase 28 mil assassinatos na década. Em um ano 2.902 vidas ceifadas, o equivalente a 8 homicídios por dia.
“Os dados apresentados revelam um quadro grave e indicam também que muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Em inúmeros casos, até chegar a ser vítima de uma violência fatal essa mulher é vítima de uma série de outras violências de gênero, como bem especifica a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Episódios de violência psicológica, patrimonial, física ou sexual, em um movimento de agravamento crescente, muitas vezes antecedem o desfecho fatal”, destaca o Atlas, que também aponta a importância da ampliação e aprimoramento da rede de atendimento à mulher para melhor acompanhamento das vítimas e prevenção, bem como a necessidade de que a rede possa ser acessada pelo sistema de saúde e não apenas pelo sistema de justiça criminal. Isso porque “muitas mulheres passam várias vezes pelo sistema de saúde antes de chegarem a uma delegacia ou a um juizado, e muitas nunca nem chegam”, ressalta o estudo.
O racismo no âmbito doméstico e familiar
Analisando os dados da pesquisa DataSenado, os resultados confirmam as estatísticas mencionadas acima. A maioria entre as mulheres que já sofreram violências é de pretas e parda, sendo que chama atenção entre as pretas o índice de vítimas declaradas de violência sexual por parceiro íntimo ou em contexto familiar, assim como as que declaram já ter sofrido violência doméstica física cometida por um homem em relação familiar ou íntima de afeto.
Para a psicóloga e psicanalista Maria Lucia da Silva, coordenadora do Instituto AMMA Psique e Negritude e fellow da Ashoka Brasil, “nesse dado está uma grande perversidade do racismo, que é uma maior objetificação do corpo da mulher”. Maria Lucia avalia ainda que as diferenças nos índices de sofrimento da violência doméstica entre mulheres pretas e pardas podem estar associadas à maior visibilidade e ao empoderamento conquistados pelas mulheres negras, que trouxe também um acirramento dos ataques racistas. “E que, do ponto de vista psicológico, também vai afetar essa mulher, no sentido de como ela é assediada, de como eventualmente tem poucos recursos emocionais, recursos internos para lidar com isso. Ela tem mais acesso aos direitos, ela até usa isso, mas seria importante investigar quais são os custos psíquicos nesse processo de visibilidade – o que tem acirrado o racismo e se colocado como obstáculo à mobilização”, afirma a especialista, que aponta também que o patriarcado faz aumentar a possibilidade dessas violações por parte dos parceiros, que passam a temer, em uma perspectiva machista e de poder, a visibilidade que essa mulher vem conquistando no mundo.
A reportagem conversou também com Lúcia Xavier, coordenadora da ONG fluminense Criola. “Realmente os dados são bastante críticos. Fiquei muito impressionada com esses números, que significam que os processos de violência estão sendo potencializados com os processos de discriminação. E isso significa um certo descaso em relação aos direitos já adquiridos. Então, mesmo aqueles grupos que reconhecíamos como racistas ou sexistas agora estão também se sentindo mais livres ou desresponsabilizados em cumprir as leis”, denuncia a ativista. “O que mais choca nessa situação é que tanto a violência sexual quanto a moral – aquela do xingamento – as deixam descrentes, não só do conjunto de mecanismos para sua defesa mas também das suas próprias condições para reagir a essas agressões”, afirmou.
A demógrafa Jackeline Romio, coautora do Dossiê Mulheres Negras 2009 do Ipea, concorda. “Em muitos aspectos a violência incide de forma maior nas populações que já sofrem outros tipos de desigualdades. Então, as mulheres que são negras, indígenas e das periferias passam por um acúmulo de opressões e violências”, destaca. Em relação aos índices declarados por pretas e pardas sobre violências psicológicas e morais sofridas, a pesquisadora ressalta que seria importante “uma entrevista aprofundada com essas mulheres para saber o que elas estão entendendo por violência psicológica, por humilhação e por violência moral para compreendermos essas diferenças”.