Entidades como Laboratória e Reprograma dão cursos gratuitos para corrigir desigualdade no setor, onde mulheres são apenas 23%; empresas como Itaú, iFood e Nubank dão empregos
Nos últimos dois anos, intensificou-se o número de cursos que capacitam profissionais nas diversas áreas da tecnologia. Como forma de combater o déficit de gênero no segmento, programas abriram caminho para que mulheres pudessem se recolocar no mercado de trabalho. Passadas as primeiras edições dessas iniciativas, contamos as histórias de três mulheres que terminaram suas formações e buscaram a ponte com o primeiro emprego na área.
O mercado da tecnologia vem sendo movimentado por instituições como Laboratória, Reprograma, Programaria e Let’s Code que sozinhas ou em parceria com grandes empresas, como Oracle, TIM, Ifood, Nubank e Itaú, formam profissionais para atuar no mercado, muitas vezes, de forma gratuita. Além da capacitação técnica, programas como esses evidenciam o interesse do mercado em não só formar profissionais de tecnologia, como uma preocupação com a diversidade e inclusão, uma vez que há foco em grupos minorizados, como mulheres e pessoas negras.
Segundo a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom), a projeção é de um déficit anual de 106 mil profissionais até 2025. Em relação ao gênero, um levantamento realizado pela plataforma de empregos Catho mostrou que a presença de mulheres na área é de 23,6%, sendo que mulheres são 52% da população brasileira.
À frente da Diretoria de Operações da {reprograma}, projeto que ensina programação gratuitamente para mulheres em vulnerabilidade, Fernanda Faria explica que a recolocação de mulheres no mercado da tecnologia passa por duas dificuldades: uma que vem delas próprias e outra das empresas.
“Precisamos mudar o pensamento para que elas entendam que são mulheres produtoras de tecnologia, que são capazes e fazem parte disso. No curso, a gente trabalha a ideia de que elas estão prontas para migrar de carreira ou mesmo iniciar carreira, já que muitas ainda não tiveram uma carreira formal. Mas, às vezes, acontece de mesmo quando recebem proposta de emprego não se sentirem prontas”, explica.
Já do ponto de vista das empresas, segundo Fernanda, é preciso investir não só dinheiro, mas esforços em treinamentos. “Se um funcionário júnior não está sendo bem sucedido no trabalho, a culpa não é dele. A empresa precisa dar instrumentos necessários para que ela se desenvolva. Precisam dedicar tempo dos seus times para esse acompanhamento.”
Formação com salário e benefícios
O primeiro emprego de Carolina Daniel na área da tecnologia começou efetivamente há uma semana. Aos 29 anos e com a carreira voltada para a área de humanas, como arquiteta e atriz, a alternativa da tecnologia surgiu durante a pandemia, enquanto cuidava da filha recém-nascida.
“Com um bebê de colo, eu me senti muito à mercê da maternidade, muito focada nela. Bebês crescem rápido e você pensa que não está fazendo nada com a sua vida, então comecei a ficar muito aflita com a minha carreira. Meu marido, que já era área de tecnologia, me indicou alguns cursos e eu resolvi fazer. Me senti intelectualmente estimulada, ainda que eu estivesse só pensando em mamadas e fraldas”, conta.
Depois de alguns cursos livres, ela encontrou a escola de desenvolvedores Let’s Code e participou de dois programas de formação e contratação. O modelo de trabalho deles é baseado em parceria com empresas: a escola ensina programação gratuitamente para alunos selecionados e a organização patrocinadora do programa contrata alguns formandos.
Ao longo de três meses, Carolina aprendeu uma formação básica em dados, além de soft skills necessárias para o mercado de trabalho. Durante o tempo de curso, ela e os outros 35 selecionados já foram contratados pelo Itaú e passaram a receber salário e benefícios, enquanto se formavam. Ao término da capacitação, e já tendo feito entrevistas com diversas áreas dentro do banco, ela foi designada ao cargo de engenheira de dados júnior.
Com pouco tempo de experiência, Carolina entende que o seu maior desafio daqui para frente é entender o seu momento de mercado, principalmente considerando a maternidade e a transição de carreira.
“Eu vejo muita gente entrando na tecnologia com 20 anos. O meu chefe mesmo tem 29, a mesma idade que eu. Eu estou em um outro momento da vida. Eu tenho uma casa para administrar, nove gatos, um cachorro, uma filha e uma família. Estou fazendo um movimento muito agressivo de carreira, indo do 8 ao 80 em um ano. Então, vou ter que correr atrás. Ao mesmo tempo, eu sei que eu trago uma bagagem comigo que ninguém mais tem, de alguém que passou por vários momentos da vida”, conta.
Mercado mais maduro e inclusivo
Na vida da engenheira de software Beatriz Ramerindo, de 24 anos, a maturidade que o mercado de tecnologia ganhou nos últimos anos foi essencial para que ela conseguisse o seu espaço. Em 2012, sem internet em casa, ela estudava programação sozinha em uma lan house. Aprendeu, mas o emprego não veio, segundo ela, por uma combinação de racismo e baixa escolaridade. Apenas 36,9% dos profissionais do setor são negros, segundo pesquisa da PretaLab, iniciativa de inclusão de mulheres negras na inovação e na tecnologia.
Sem a recolocação, ela continuou o trabalho na construção civil, até que iniciou a sua transição de gênero. “Não tem como uma mulher trans trabalhar nessa área (de construção), é muito difícil”, conta. Foi então tentar uma carreira como editora de vídeo, mas os altos preços dos equipamentos fez com que ela buscasse uma outra fonte de renda. A oportunidade veio com a startup social {reprograma}.
“Dessa vez, quando eu entrei para a {reprograma}, eu vi que muitas coisas tinham mudado no mercado de trabalho, inclusive o requisito, antes básico, de ter uma graduação. Hoje, muitas empresas não exigem mais para a área de tecnologia”, explica.
Durante seis meses, ela teve aulas de back-end e soft skills, que foram essenciais para conseguir o emprego atual, como engenheira de software na fintech Creditas, desde agosto de 2021. “Eu já tinha o conhecimento técnico, mas esbarrava muito na entrevista de emprego. Com o curso, aprendi a não ficar nervosa, porque eu entendi que o currículo conta a nossa história e a entrevista era uma oportunidade para usar isso”.
Após terminar a capacitação, Beatriz conta que foi procurada por várias empresas, mas teve que ser criteriosa porque precisava estar empregada em um lugar que tivesse um olhar especial para pessoas trans. Agora, com pouco mais de sete meses de empresa, ela se sente preparada para o mercado, mas ainda está se adaptando a uma nova linguagem de programação, já que a aprendida no curso é diferente da que ela usa no dia a dia de trabalho.
“Quem está pensando em migrar para a área de tecnologia precisa aproveitar as comunidades que existem por aí para encontrar iniciativas de cursos iniciais. Se você vai estudar sozinho, uma dica é começar com javascript, porque é uma linguagem mais simples, você não precisa configurar a sua máquina para isso e tem muito conteúdo gratuito na internet”, aconselha.
Para retribuir o que aprendeu, ela voltou ao {reprograma}, desta vez como professora.
Alternativa ao desemprego
O desemprego durante a pandemia foi o pontapé para Ana Beatriz Costa, de 28 anos, conseguir se profissionalizar na área de tecnologia. Graduada em recursos humanos, sua experiência profissional passava longe da área de exatas: trabalhou em loja, foi massoterapeuta e entrevistadora do Cadastro Único (plataforma em que famílias acessam benefícios sociais do Governo).
Parada em casa, ela lembrou que gostava muito de mexer com a linguagem html quando era adolescente. “Eu passava horas no Tumblr (plataforma de blogging) brincando com html. Por que não transformar esse gosto em tecnologia em uma carreira?”, diz.
Ela estudou sozinha por conteúdos no Youtube e fez cursos livres de uma semana de duração, até que conheceu a Laboratória, edtech que forma mulheres para reduzir o déficit dessas profissionais na tecnologia. Depois de seis meses de curso, se formou e conseguiu uma vaga como analista de dados júnior no Banco Next.
Hoje, já no mercado, diz que o maior desafio é seguir estudando novos conceitos. “Como eu entrei em uma área nova, eu preciso entender os conceitos que eu uso. A Laboratória me deu o conceito, mas o foco é em autoaprendizagem, então eu comecei do zero”, conta.
Para quem quer entrar no mercado da tecnologia, o conselho de Ana Beatriz é acreditar que é possível. “Não é tão difícil quanto parece. Muitas empresas têm aberto vagas procurando profissionais que estão na transição de carreira. A área de tecnologia pode não ser fácil, mas é acessível. A gente consegue conteúdo com uma certa facilidade na internet”, aconselha.
Quem são os empregadores?
A fundadora da {reprograma}, Fernanda Faria, explica que empresas de diferentes segmentos e portes têm desempenhado papel importante na contratação dos profissionais de tecnologia.
“No início, havia mais espaço nas startups, mas hoje não é mais assim. As grandes começaram a sentir que o apagão de profissionais vai acontecer, principalmente em níveis pleno e sênior. Então, hoje, empresas de diversos tamanhos e segmentos, ainda que não tenham foco final em tecnologia, estão contratando”, conta. A {reprograma} tem parceria fixa com empresas como iFood, Creditas, Accenture e NuBank.
Ela também explica que, entre os segmentos, bancos e fintechs têm destaque na movimentação de mercado. “Boa parte das nossas formandas foram para fintechs e bancos. Teve um banco que contratou mais de 20 alunas de uma vez. Esse segmento tem investido bastante na área, até mesmo pelo movimento das próprias fintechs. Como o trabalho exige uma tecnologia grande e robusta interna, isso forçou os bancos a estarem mais tecnológicos”.
Cursos de Programação
- Laboratória: As inscrições para a 8ª edição do bootcamp de programação estão abertas até 15 de maio, pelo site. O curso é online e gratuito, mas, após a conclusão e a entrada no mercado de trabalho, as profissionais devem pagar uma parte do custo total do curso para financiar os estudos de outras mulheres. Os requisitos são: ser mulher, maior de 18 anos, viver no Brasil e ter cursado o Ensino Médio em escola pública ou particular com bolsa integral por critério de renda, além de ter disponibilidade para se conectar de segunda a sexta, no período da tarde.
- Lets’ Code: A escola não é voltada apenas para mulheres, mas há processos focados em gênero e em maiores de 40 anos. Não há nenhum programa com inscrições abertas no momento, mas os interessados podem acompanhar novas aberturas no site do projeto.
- Reprograma: O programa é voltado para mulheres em situação de vulnerabilidade, com foco em mulheres cis e trans e, também, mulheres negras. Uma nova turma é aberta semestralmente.