Nos 90 anos do voto feminino no Brasil, advogada que estuda a participação da mulher na gestão pública e na política aponta desafios atuais
Democracia significa, necessariamente, representatividade e participação social nas ações decisórias de toda esfera de poder. Apesar de se declarar uma república democrática desde 1889, somente em 1932 o Brasil reconheceu o voto feminino. Completados 90 anos no último dia 24 de fevereiro, a participação feminina na política e nos cargos de liderança da gestão pública segue desafiando a democracia brasileira.
Historicamente, há uma luta constante por uma participação feminina plena no centro das decisões mais importantes do país, mas ainda existem muitos entraves legais e culturais. A advogada Nara Bueno, especialista em Direito Eleitoral e pesquisadora sobre a participação feminina nos espaços de poder, defende que mudanças substanciais só serão percebidas pela população do Brasil quando houver mais mulheres nos espaços políticos e funções de liderança. Isso vai aprimorar a democracia e garantir isonomia de acesso, independentemente de gênero.
Nara Bueno coordenou a série de debates realizada pela Megasoft sob o tema A participação feminina na gestão pública, que contou com a participação de especialistas de renome nacional para discutir os desafios da mulher nos espaços de poder. A íntegra está no portal da Megasoft e no canal do Youtube.
Que reflexos essa exclusão histórica ainda acarreta às mulheres na conjuntura política atual do país?
Os reflexos políticos da exclusão histórica das mulheres são profundos e são vistos em muitas camadas: a falta de efetividade dos direitos políticos das mulheres consiste no desrespeito de direitos humanos. Em um aspecto geral, afeta a densidade da democracia brasileira — outros países com mais mulheres nos espaços políticos, possuem democracias mais sedimentadas. Por outro lado, em aspectos práticos, há um tratamento violento e criminoso com mulheres que se enveredam na política, essa ojeriza às mulheres na política acaba se materializando na ausência de políticas públicas voltadas especificamente para a saúde e educação (como atendimento psicológico no puerpério e creche para as crianças, por exemplo).
Em 1932 o Código Eleitoral assegurou o voto feminino e a entrada das mulheres na vida política brasileira. Dois anos mais tarde, a Constituição Federal de 1934 ratificou essa conquista. Como se deu a entrada das mulheres na política e o que isso representou e ainda representa para a democracia brasileira?
A entrada das mulheres na política representou um grande passo para o aprofundamento da democracia representativa brasileira. Inclusive, permitindo a representação democrática da maioria demográfica da população. Esse acesso à política pelas mulheres só foi possível pelo sacrifício daquelas que lutaram por décadas, reivindicando nossos direitos políticos. Dentre elas, Leolinda Daltro, Almerinda Gama, Carlota de Queirós, Gilka Machado, Alzira Soriano, Nísia Floresta, Bertha Lutz, Antonieta de Barros e tantas outras.
Desde 2008, as brasileiras são maioria no universo de quase 150 milhões de eleitores. Ainda assim, as mulheres enfrentam hoje enormes dificuldades para encontrar um papel de destaque na política. A que a senhora atribui essa contradição? Por que mesmo com um eleitorado majoritariamente feminino e com uma quantidade de candidaturas ascendente de mulheres ainda continuamos a eleger majoritariamente homens?
Para entendermos um fenômeno complexo (como a representação política) temos fatores e respostas igualmente complexos a serem considerados. Destaco alguns deles, mas ressalto que não são os únicos: o apagamento histórico das mulheres, com a naturalização das figuras dos “pais fundadores”, em detrimento das figuras das “mulheres raízes” (como conceitua a intelectual Luciana Dias de Oliveira). Essa cultura de alijamento e apagamento de mulheres reflete diretamente na seara política e de como o imaginário do eleitorado vai construindo a percepção das mulheres ao longo do tempo. No geral, mulheres foram — e infelizmente ainda estão sendo — reduzidas a adjetivos que não fazem jus às nossas plenas capacidades.
Dois fenômenos recentes têm despertado esperança em mim: o primeiro, a crescente conscientização da importância de mulheres serem candidatas. O segundo, a crescente percepção por parte do próprio eleitorado, enxergando que a eleição de mulheres traz benefícios para todo o coletivo e não só para as mulheres. Acredito que a combinação de ambos resultará no aumento da representação de mulheres no poder.
O sistema eleitoral brasileiro vem tentado medidas para corrigir essa disparidade de gênero, com as leis de cotas eleitorais. Primeiro, em 2009, com a reserva de vagas e depois, em 2015, com a cota para financiamento das campanhas. Mas, ao longo desse processo, mecanismos foram sendo criados para fraudar a legislação vigente, fazendo com que a desigualdade entre homens e mulheres, no meio político, permaneça. Como advogada na área, o que a senhora considera que deve/pode ser feito para corrigir/evitar essas fraudes e para melhorar a representatividade feminina na política, como um todo?
O combate às candidaturas fraudulentas pode ser realizado em várias frentes. Há três núcleos que entendo por essenciais: a conscientização do eleitorado (e isso implica em investimentos em educação, somados no combate às notícias falsas (fake news); o aumento de fiscalização a respeito dos recursos destinados às campanhas das candidatas e, principalmente, a reserva de assentos. Essa última medida, inclusive, consiste em uma solução honesta e definitiva, que evita a adoção de paliativos, além disso, possibilitaria o aprofundamento da democracia semi representativa, incluindo o Brasil no rol de democracias paritárias, como são os países com maiores índices de IDH e também os considerados como mais evoluídos democraticamente, no mundo.
No seu livro, “Pequeno Manual das Mulheres no Poder”, você orienta tanto candidatas novatas como experientes a melhor transitar pelo universo da política e do direito eleitoral. Pensando que estamos nos aproximando de mais um período eleitoral, o que você deixaria de dica básica para cada uma delas? O que seria mais determinante observar em cada uma dessas situações?
Enfatizo que nada substitui uma orientação eleitoral especializada e personalizada. Dito isso, é importante que as candidatas, conheçam as regras de propaganda, não tenham vergonha de difundir suas ideias, apliquem com sabedoria seus recursos e, principalmente, formem redes políticas reais e virtuais de apoio.
Fonte: G1