Ministra do STM (Supremo Tribunal Militar), Maria Elizabeth Rocha, 62, não tem receio dos rótulos de feminista e de militante pelos direitos humanos. Há 15 anos, ela foi a primeira mulher a sentar em uma cadeira da corte máxima da Justiça Militar da União. E continua sendo, levantado justamente essas bandeiras.
O STM julga recursos em processos que envolvem crimes cometidos em ambiente militar ou por integrantes das Forças Armadas Ainda que seja a corte máxima, algumas decisões podem escalar para o STF (Supremo Tribunal Federal). Em sua composição há 15 ministros, cinco deles civis, como Rocha.
Desde que chegou à corte, a ministra tomou decisões de reconhecimento de casamento homoafetivo e de assédio moral contra mulheres nas Forças Armadas. Hoje, sua luta é por uma renovação do Código Penal Militar, lei que ela considera “extremamente retrógrada”, principalmente quando aborda crimes sexuais.
Ex-procuradora federal na AGU (Advocacia Geral da União), a ministra, que participou da elaboração do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, adotado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) no ano passado, conversou com Universa sobre como a presença de mulheres traz mais sensibilidade à Justiça para temas como identidade de gênero e a orientação sexual. “A visão da alteridade faz diferença em um ambiente homogêneo. E um ambiente que só tem homens acaba sendo homogêneo”, pontua ela.
Na entrevista, ela também rechaçou possibilidades de golpe ou impedimento às eleições gerais este ano com participação de militares. “Nunca houve uma ameaça concreta e real”, diz. “As eleições estão caminhando, com as urnas eletrônicas e com tudo o mais. As Forças Armadas vão para as ruas porque não tem eleição sem elas, sobretudo no Norte do país, onde é necessário levar as urnas para as populações ribeirinhas.”
Leia trechos da entrevista.
Como a senhora chegou à área militar?
Dava aulas de Direito em institutos militares, onde conheci meu marido, um general do Exército. Então, por acaso, eu conhecia a Justiça Militar. Mas era advogada, procuradora federal. Fui requisitada para trabalhar na Casa Civil da presidência da República na subchefia para assuntos jurídicos, sempre militei na área de direitos humanos e do direito internacional.
Na época em que estava na Casa Civil, abriu vaga para ministro do STM. A escolha é feita da mesma forma que a do STF: é de livre indicação do presidente da República. O presidente indica [na época, o cargo era ocupado por Lula (PT)], o Senado sabatina, o plenário do Senado ratifica a nomeação. Então, apresentei meu nome. Mas foi uma luta muito difícil. Era a primeira mulher e meu nome não foi o primeiro a ser indicado. A vaga ficou um ano e meio aberta.
Em que medida sua entrada alterou a visão da corte para determinados temas?
Por exemplo, em relação aos crimes sexuais. Faço questão de mostrar para meus colegas como isso agride moralmente, fisicamente e psicologicamente uma mulher. Só o olhar feminino pode retratar a diferença de um atentado violento ao pudor e de um estupro, como isso repercute na alma de uma mulher. É uma ferida que vai estar sempre aberta.
Julguei um caso que mostra como a visão feminina é importante. Era relatora de um processo em que uma suboficial aparecia como ré por desacato a um superior. Fui estudar o processo: realmente ela tinha desacatado um coronel. Mas por quê? Quando fui verificar, vi que ela era uma controladora de voo, tinha uma expertise, uma formação técnica, mas havia sido colocada pelo coronel num quartel para fazer faxina, servir café e fazer churrasco.
Falei que ela tinha razão para ter tido aquele comportamento. Afinal de contas, ela era uma mulher qualificada que estava sendo diminuída em razão do gênero, pelo simples fato de ser mulher, e estava sendo humilhada diante dos colegas. Ela que era a vítima, por assim dizer, de um assédio moral. E conseguimos a absolvição.
Não é que nós, mulheres, sejamos melhores do que os homens, mas temos uma visão de mundo diferente. Isso é importante em uma corte que era reduto de masculinidades e precisava de uma visão alternativa.
A perspectiva do gênero é muito importante também em relação à orientação sexual. Fui relatora de um processo administrativo onde uma funcionária da Justiça Militar da União pedia que a sua companheira fosse sua dependente no plano de saúde. Isso há 15 anos, logo quando eu tomei posse como ministra, e muito antes d e o STF reconhecer as uniões homoafetivas e de o CNJ possibilitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Deferi o pedido e equiparei a união estável ao casamento.
O STM foi o primeiro tribunal do Brasil que equiparou uma união homoafetivo a um casamento sem qualquer questionamento judicial.
Um ambiente que só tem homens acaba sendo homogêneo, porque os homens têm — ainda que muitos já tenham rompido com paradigmas que são arcaicos — internalizada a criação de uma sociedade patriarcal. Inclusive nós mulheres, também. Então é preciso desconstruir o machismo, o sexismo, a homofobia cotidianamente.
Por que a participação das mulheres ainda é tão reduzida nas cortes superiores como o STF e STJ?
São vários fatores. Um deles são as cortes serem compostas majoritariamente por homens — e elas todas são, em todas as instâncias, em todos os ramos do Poder Judiciário. Os homens acabam promovendo uns aos outros. Além disso, muitas vezes, a mulher não tem a autoestima que os homens têm. É capacitada, é competente, muitas vezes mais do que o homem, mas se acha inferior ou acha que tem que se preparar mais, que precisa se dedicar mais.
Você já sofreu ataques por ser mulher?
Houve várias discriminações ao longo da minha carreira que não foram sutis, mas nunca me rendi. Um exemplo foi no caso Mariana Ferrer, quando ela sofreu violência pelo advogado do réu, que acha que o processo legal se estende à agressão da vítima. O juiz do processo e o Ministério Público ficaram em silêncio, a ponto de precisar ser editada uma lei para dizer que as vítimas de um crime sexual têm o direito a serem respeitadas. Dei uma entrevista a um jornal e falei que aquilo era um absurdo e critiquei, inclusive, o silêncio do MP.
O chefe do Ministério Público de Santa Catarina, onde o caso foi registrado, teve a coragem de mandar um ofício para o presidente do meu tribunal reclamando da minha entrevista. Ou seja, na hora de defender a vítima, o promotor ficou calado. Mas na hora de mandar um ofício para reclamar de uma entrevista, em que eu dizia que um promotor deveria ter se pronunciado e não ter permitido que o advogado fizesse o que ele fez com a Mari Ferrer, o Ministério Público teve tempo para sentar e escrever um ofício. Guardei esse documento para mostrar como o sexismo permeia nossa sociedade.
O governo de Jair Bolsonaro (PL) aumentou substancialmente o número de militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo. Essa relação inclusive suscitou temor de golpe militar. Qual sua visão sobre isso?
Nunca acreditei em golpe militar. Não depois de 1988, não depois da redemocratização. Tenho convivência com os militares do meu tribunal, que são todos generais de alta patente. Normalmente são os decanos das Forças Armadas, são os mais antigos. E nunca houve qualquer conspiração ou qualquer burburinho de golpes militares no Brasil.
Hoje está provado que realmente nunca houve uma ameaça concreta e real. Digo isso também porque eu estou dentro de um tribunal militar, mas eu nunca percebi nenhuma movimentação de prevalecimento de uma ditadura militar. A democracia está consolidada. As eleições estão caminhando, com as urnas eletrônicas e com tudo o mais. As Forças Armadas vão paras ruas porque não tem eleição sem elas, sobretudo do Norte do país, onde é necessário levar as urnas para as populações ribeirinhas.
Como feminista, qual sua opinião sobre a legalização do aborto?
Todas as mulheres são a favor da descriminalização do aborto. Quando uma mulher é levada a abortar é porque ela não tem outro caminho. Não se pode punir uma mulher criminalmente pelo fato de ela não querer conceber. É um direito que ela tem, é o direito que ela tem sobre o próprio corpo e sobre as suas próprias escolhas.
O Código Penal Militar não está atualizado como a legislação civil em relação aos crimes contra mulheres. Não consta, por exemplo, feminicídio, e o crime de estupro ainda é identificado apenas quando há “conjunção carnal”. Como a senhora avalia isso? A abordagem do Código Penal Militar é extremamente retrógrada e desconexa com a realidade atual, principalmente nessa parte dos crimes sexuais. Esse novos delitos, por assim dizer, somente incidem na jurisdição militar se não houver previsão no nosso código. Na minha visão, violência contra mulher e doméstica não é crime militar de jeito nenhum e deve ser julgada por varas especializadas. Mas meus colegas homens, com exceção de um, acham que podemos julgar. Aí, a gente acaba aplicando a Lei Maria da Penha pela metade, porque damos a pena ao agressor, mas as medidas protetivas, que são tão importantes, não podemos aplicar, pois não consta na nossa legislação.
Há dez anos, fui coordenadora da reforma do código. Eu entreguei nas mãos do deputado federal Carlos Zarattini [PT-SP], para que fosse uma proposição dentro do Congresso. A gente nem modificou, só atualizou a lei, para não causar muita polêmica. Sabe o que que aconteceu? Nada. Ficou lá, nos escaninhos do Congresso Nacional.
Fonte: Universa