A polícia conseguiu identificar os suspeitos pelos disparos em só quatro dos 13 casos de grávidas baleadas no Rio nos últimos 4 anos. Apenas um deles foi preso. A informação foi obtida pelo UOL por meio da Lei de Acesso à Informação junto à Polícia Civil do Rio.
Os dados vêm a público três meses após a morte da Kathlen Romeu. Grávida de quatro meses, a jovem de 24 anos foi baleada durante uma ação da Polícia Militar do Rio no Complexo do Lins em 8 de junho. A reportagem falou com familiares de Kathlen e com uma grávida que sobreviveu e ainda deu à luz o filho.
Na maioria dos casos, as gestantes foram vítimas de execuções ou de balas perdidas. Em metade das ocorrências, a grávida e o bebê não resistiram aos ferimentos e morreram. Cinco das 13 investigações ainda se encontram em andamento, devido a pedidos por mais informações do Ministério Público (MP) à Polícia Civil ou solicitações de mais tempo por parte dos agentes de segurança ao MP. Duas foram encerradas sem os autores serem identificados.
Contabilizados pelo Instituto Fogo Cruzado, todos os episódios de grávidas baleadas ocorreram em áreas periféricas da região metropolitana do Rio. A Baixada Fluminense, com cinco das 13 situações, e a Zona Norte da capital, com quatro, foram as regiões com maior número de casos registrados.
A família sofre com a perda de um querido eterno e também por nunca ver justiça sendo feita. Isso alimenta a sensação de insegurança e, claro, de injustiça. É como se a vida que se foi não importasse. A dor não passa. O ciclo não fecha
Cecília Olliveira, diretora-executiva do Instituto Fogo Cruzado
Caso Kathlen
Quando decidiu visitar sua avó no Complexo do Lins em 8 de junho, Kathlen havia se mudado da comunidade cerca de um mês antes. Devido aos tiroteios na região, a jovem adiou a visita por semanas, conta sua mãe, Jacklline Oliveira Lopes. Só foi ao local naquele dia por ouvir que a situação estava mais tranquila. Por volta das 14h daquela terça-feira, ela foi baleada na localidade conhecida como Beco do 14.
Em sigilo, as investigações apuram, além das circunstâncias da morte, possíveis alterações na cena do crime. Em 14 de julho, a Polícia Civil fez a reconstituição da ocorrência, e dados preliminares mostram que o tiro que matou Kathlen foi disparado por policiais. Esta versão é sustentada pela família desde o dia do crime, na contramão da PM, que afirma que policiais entraram em confronto com traficantes. “O que falamos está se provando verdade”, diz ao UOL Luciano Gonçalves, personal trainer e pai de Kathlen.
“As pessoas do local me contaram que só ouviram um tipo de tiro. Se você vir onde ela foi atingida no Beco do 14 e como caiu, verá que, se tivesse confronto, teria PM baleado”, afirma Jacklline. “É muito humilhante sabemos o que aconteceu de fato, mas precisamos ficar provando por A mais B”, acrescenta.
Para ela, a filha morreu em função da “troia”, como é conhecida a controversa prática policial em favelas do Rio que consiste em invadir casas de moradores para emboscar suspeitos. Em 11 de agosto, a deputada estadual Renata Souza (PSOL) protocolou um projeto de lei para criminalizar a conduta. Se for aprovada, será a Lei Kathlen Romeu.
Na Zona Sul, esse tipo de situação não existe. A polícia é a mesma, o despreparo é o mesmo, mas eles sabem o que fazem. Dar tiro no subúrbio é diferente de atirar na Zona Sul, onde tem filho de ministro, desembargador
Luciano Gonçalves, pai de Kathlen
A mãe de Kathlen se queixa também da situação em que o assassinato da filha a colocou.
Eles acabaram com minha vida. Não tenho direito de chorar. Está entendendo o estrago que o Estado faz? Minha família não pode viver o luto normalmente. O desfecho do caso pode demorar 10, 15 anos. Conto com jornalistas, perito e promotor para se fazer Justiça. Esse tiro de fuzil vai me matar até o fim da minha vida
Jacklline Oliveira Lopes, mãe de Kathlen
Para Gonçalves, o assassinato de sua filha não é caso isolado. “Só muda o personagem. As autoridades estão praticamente autorizando um genocídio.”
Quem sobrevive não esquece
Grávida de oito meses, Michelle Ramos da Silva Nascimento Araújo tinha marcado um ensaio de fotos para registrar sua gestação naquele 13 de janeiro de 2018. Às 6h30 daquele sábado, a moradora de Belford Roxo recebeu mensagem de uma amiga. Ela perdera o pai na madrugada e queria ajuda com os trâmites no cartório.
Para atender ao pedido, saiu de casa mais cedo que o habitual junto do marido, Wallace. Enquanto avisava uma colega de trabalho que, ainda assim, poderia atrasar, Michelle avistou um carro vermelho atravessado na diagonal mais à adiante. Imaginou que o veículo estivesse avariado, mas, quando o marido tentava desviar, um rapaz desceu e foi em direção a eles.
Quando percebi, falei ‘amor, acho que é…’ e o ‘um assalto’ já não saiu. Fui baleada
Michelle Ramos da Silva Nascimento Araújo, mãe de Antônio
No assento do carona, ela se encolheu para proteger a barriga. A bala atravessou o vidro e atingiu sua cabeça. “Lembro de ouvir um zumbido insuportável no ouvido esquerdo. Soube depois que era o projétil furando minha caixa craniana em espiral”, diz.
Wallace levou Michelle à UPA Bom Pastor. Lá, mãe e o bebê, chamado de Antônio, receberam os primeiros cuidados. “O pediatra disse que o coração do Antônio já não estava batendo. Fizeram uma massagem nele e, após alguns minutos sem batimentos nem respiração, ele voltou”, conta a mãe, internada por nove dias.
O filho só foi liberado do hospital um mês depois, em 5 de fevereiro. “Sou escrevente de cartório e chorei quando pude assinar meu nome de novo, um mês após a alta dele”, diz.
A investigação do caso de Michelle foi encerrada sem chegar aos responsáveis. O trabalho ficou a cargo da 54ª DP. “Eu não tinha como identificar. Só lembrava que o primeiro a sair do carro era branco e tinha uma falha na sobrancelha, mas não recordo fisionomia nem nada”, diz.
Acredito que a polícia tinha poucos elementos para descobrir, mas, na delegacia, meu marido ouviu que o suspeito tinha 17 anos, perdeu a mãe por câncer aos 13, o pai se matou em seguida e tinha sido abraçado pelo ‘movimento’ ao ir morar com uma tia. Peço a Deus que nada de ruim tenha acontecido a ele
Michelle Ramos da Silva Nascimento Araújo, mãe de Antônio
Ela tem dúvidas se o crime foi mesmo cometido pelo menor de idade ou se ele foi apontado como bode expiatório, apesar de não ser indiciado. Ainda assim, afirma que perdoou quem quer que fosse o responsável. “Perdoei para não ficar presa ao passado. O que me importava era dar todo amor ao meu filho.”
Hoje, Antônio tem 3 anos e 7 meses, e a família já não mora em Belford Roxo. Está em Nova Iguaçu. “Agradeço muito a Deus porque eu e o Wallace poderíamos não estar mais aqui”, diz. Aos familiares de Kathlen, ela deseja que tenham “esperança de dias melhores”: “Mesmo em meio a dor, ela será a engrenagem para ativar uma vida melhor para todos nós”.
Suspeitos identificados
Enquanto o assassinato de Kathlen ainda é investigado pela Polícia Civil, os casos que tiveram os suspeitos identificados ocorreram entre 2017 e 2018. Claudinéia dos Santos Melo foi baleada durante uma operação policial na favela do Lixão, no centro de Duque de Caxias, em 30 de junho de 2017. Grávida de nove meses, ela sobreviveu, mas o tiro atingiu o bebê Arthur, que morreu um mês depois.
A partir de grampos telefônicos, investigações apontaram o traficante Charles Jackson Neres Batista e Romário da Conceição da Silva como responsáveis pelo crime. Para a polícia, Charlinho do Lixão, como Batista era conhecido, ordenou os disparos na direção dos policiais. Silva, apelidado de Pirulito, apertou o gatilho.
Em 26 de março de 2019, nova ação da PM resultou na morte a tiros de Charlinho. Desde então, só Silva responde ao processo, aberto em 2017. Embora não tenha sido condenado, o suspeito está preso preventivamente. No fim de 2020, a 4ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias negou um pedido de habeas corpus.
Dandara Heleno Damasceno de Souza estava grávida de seis meses quando morreu após ser atingida por um tiro no rosto em casa na Vila Vintém, favela da Zona Oeste do Rio, em 12 de março de 2018. No dia seguinte, Renato Luciano Brasil dos Santos, esposo de Dandara, se entregou à polícia. Ele relatou que os dois manuseavam uma pistola quando a arma disparou acidentalmente. O bebê que a jovem esperava foi salvo.
O MP acusou Santos do crime. Mais de três anos após a morte, a Justiça ainda não anunciou sua decisão definitiva em relação ao caso.
Gabriele Dias Barbosa estava grávida de oito meses quando Renato Caldas Queiroz apareceu na porta de sua casa, em Bangu, na Zona Oeste do Rio, em 9 de abril de 2019. Pai da criança, ele queria reatar o relacionamento de quatro anos interrompido em 2018. Diante da negativa, atirou três vezes na direção da jovem, que morreu no local. Seu corpo foi levado ao Hospital Albert Schweitzer, mas o bebê também não resistiu.
Queiroz foi acusado pelo MP, que enviou um parecer sobre o caso à Justiça no último dia 21 de junho. Entretanto, o julgamento ainda não aconteceu.
No dia 30 de dezembro de 2018, Verônica Sabrina Sousa Silva e seu esposo, José Carlos da Rocha, passavam pela avenida Pelotas, no bairro Sarapuí, em Caxias, quando um arrastão começou.
Agente penitenciário aposentado, Rocha reagiu aos bandidos e foi morto com cinco tiros. Verônica foi atingida com um disparo na cabeça. Grávida de seis meses, ela não resistiu, assim como o bebê.
Uma informação recebida pelo Disque Denúncia levou a Polícia Civil a investigar e prender Flavio Francisco Silva dos Santos, identificado como autor do crime. De acordo com a denúncia do MP à Justiça, Santos roubava carros no local e trocou disparos com Rocha. Dois anos e meio após a morte de Gabriele, o julgamento ainda não ocorreu.
Maioria dos casos segue sem solução
O mais comum em casos de grávidas baleadas é que os casos se arrastem antes de chegar à Justiça. Uma das razões para a demora é a Polícia Civil pedir mais tempo para investigar. Exemplos são as ocorrências que envolveram Karolayne Nunes de Almeida Alves.
Ela foi baleada ao ser surpreendida por uma troca de tiros entre policiais e um homem de moto quando passava de carro pela localidade conhecida como Birosca na Fazendinha, uma das favelas do Complexo do Alemão, em 2 de dezembro de 2017. Aos 19 anos, a jovem estava grávida de 5 meses e, internada, faleceu um mês depois de ser atingida. Seu bebê também morreu.
Outro fator recorrente são os pedidos do MP para que a polícia forneça mais informações. Enquadram-se nesta categoria casos como o de Tainá Souza do Nascimento. Grávida de seis meses, ela teve sua casa invadida na favela Beira-mar, em Caxias. Quatro homens armados mataram Tainá e seu marido, Adilson dos Santos Portela, em 14 de maio de 2019. O bebê também morreu.
Outros inquéritos são encerrados sem que os autores dos tiros sejam identificados, como o de Natacha Lucas Silva. Ela estava grávida quando foi atingida por uma bala perdida em casa, na Cidade de Deus, na noite do dia 1º de fevereiro de 2018.
Em que pé estão os casos
De 13 ocorrências, apenas 4 tiveram suspeitos identificados
Kathlen Romeu (08/06/2021)
Baleada durante uma ação da PM do Rio no Complexo do Lins;
Mãe e bebê morreram;
As investigações ainda não estão concluídas.
Atingida no pé durante briga em São Gonçalo;
Mãe e bebê sobreviveram;
Investigações se encontram em fase preliminar.
Tainá Souza do Nascimento (14/05/2019)
Morta em ocorrência de execução na favela Parque Beira Mar em Caxias.
Mãe e bebê morreram.
O MPRJ solicitou mais informações sobre o caso à Polícia Civil.
Inara Júlio dos Santos (06/04/2019)
Ferida por bala perdida na favela Terra Nostra, em Costa Barros.
Mãe e bebê sobreviveram.
O MPRJ solicitou mais informações sobre o caso à Polícia Civil.
Ana Cristina de Oliveira do Sacramento (28/03/2019)
Morta em ocorrência de execução na rua Franz Liszt, no Jardim América.
Mãe e bebê morreram.
A Polícia Civil pediu mais tempo para investigar o caso ao MPRJ.
Verônica Sabrina Sousa Silva (30/12/2018)
Morta em ocorrência de roubo na Avenida Pelotas, no bairro Sarapuí, em Caxias.
Mãe e bebê morreram.
O suspeito Flavio Francisco Silva dos Santos foi denunciado pelo MPRJ, mas o julgamento ainda não aconteceu.
Gabriele Dias Barbosa (09/04/2018)
Morta em ocorrência de execução na Rua Nova Canaã, em Padre Miguel.
Mãe e bebê morreram.
O suspeito Renato Caldas Queiroz foi acusado pelo MPRJ, mas o julgamento ainda não aconteceu.
Dandara Heleno Damasceno de Souza (12/03/2018)
Morta durante ocorrência de homicídio na Vila Vintém, em Padre Miguel.
Mãe morreu e bebê sobreviveu.
O suspeito Renato Luciano Brasil dos Santos foi acusado pelo MPRJ, mas o julgamento ainda não aconteceu.
Ferida por bala perdida durante operação policial na Cidade de Deus.
Mãe e bebê sobreviveram.
Investigação foi encerrada sem que suspeitos fossem identificados.
Michelle Ramos da Silva Nascimento Araújo (13/01/2018)
Ferida durante ocorrência de roubo no bairro Piam, em Belford Roxo em 13/01/2018.
Mãe e bebê sobreviveram.
Investigação foi encerrada sem que suspeitos fossem identificados.
Karolayne Nunes de Almeida Alves (02/12/2017)
Morta durante ocorrência na localidade conhecida como Birosca na favela da Fazendinha, no Complexo do Alemão.
Mãe e bebê morreram.
A Polícia Civil pediu mais tempo para investigar o caso ao MPRJ.
Claudinéia dos Santos Melo (30/06/2017)
Ferida por bala perdida durante operação policial na localidade do lixão no Centro de Caxias.
Mãe sobreviveu e bebê morreu.
O suspeito Romário da Conceição da Silva se encontra preso preventivamente, mas ainda não foi julgado.
Michele dos Santos Sales da Silva (01/06/2017)
Ferida por bala perdida durante ocorrência no bairro Cabuçu, em Nova Iguaçu.
Mãe sobreviveu e bebê morreu na ocorrência.
A Polícia Civil pediu mais tempo para investigar o caso ao MPRJ.
Fonte: UOL