Juiz absolveu policiais militares do crime de estupro, ao afirmar que entendeu que a vítima poderia, sim, resistir à prática do fato libidinoso, mas não o fez.
“Entendemos que estamos diante de uma grave violação dos direitos humanos contra essa mulher”. A conclusão é da defensora pública Paula Sant’Anna Machado de Souza, que acompanha o processo da jovem que acusa dois policiais militares de estupro em Praia Grande, litoral paulista. A Justiça Militar entendeu que não houve crime, mas sexo consensual no caso. Para o juiz militar Ronaldo Roth, da 1ª Auditoria Militar, “a vítima poderia, sim, resistir à prática do fato libidinoso, mas não o fez”.
Paula é coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria. De acordo com a defensora, não existe um modo ideal de reação para uma vítima de crime sexual, e considerar que há um padrão para quem é vítima deste crime é uma “conduta discriminatória e culpabilizante”.
“É difícil compreender qual a expectativa do Estado em dizer que não houve estupro em um caso em que a vítima não reagiu, quando estamos tratando de um possível crime que aconteceu dentro de uma viatura policial, com policiais armados. Então, devolvemos a pergunta, qual a reação esperada em um caso como esse? Nesse sentido, entendo que a reação ou não reação da vítima nunca deve ser ponderada para absolver ou condenar alguém pelo crime sexual”, diz.
A defensora ainda afirma que, na sua visão, a decisão da Justiça é um resultado da naturalização do crime sexual no país. “Ainda há um olhar social de que a mulher deve servir ao homem, de que ela não é igual a ele. Quando, na verdade, na Constituição, é garantida a igualdade de direitos”, explica.
Segundo explica Paula, ela atuou como assistente de acusação no processo, em prol da jovem, e aguarda decisão do Ministério Público Militar, que é o único órgão que pode decidir se recorrerá da decisão da Justiça Militar. “Existe já uma discussão sobre, exatamente, a importância desses crimes, que são praticados contra civis, serem também julgados pela Justiça comum. Porque a Justiça Militar tem mais esse olhar de disciplina, de uma esfera mais correcional. Precisamos amadurecer isso, para pensar que esses casos, chegando na Justiça Militar, podem não ter esse olhar de gênero”, diz.
‘Retrocesso’
“Todo processo para a vítima é muito desgastante. Essa decisão é um retrocesso para outras vítimas, que se sentiriam encorajadas a denunciar. Isso certamente irá desmobilizar muitas mulheres a denunciarem. Infelizmente, essa alegação do juiz traz esse tipo de sentimento para um coletivo de mulheres. Certamente, a decisão repercute na vida da vítima, que tinha uma expectativa de que a decisão apontasse que realmente a violência que ela sofreu foi muito grave”.
Segundo a defensora, a decisão ainda mostra que, no país, a mulher não é vista como cidadã, quando se trata de seus direitos com relação a uma vítima de crime sexual. “Quando ela procura a Justiça para falar sobre violência sexual, o olhar, muitas vezes, ainda é voltado para qual conduta, qual vestimenta, e o que ela estava fazendo no momento do ocorrido, no sentido de que a violência só existe por alguma coisa que aquela vítima fez ou deixou de fazer, quando, na verdade, o olhar deveria ser no sentido que estamos em uma grave violação de direitos humanos”, alega.
Para Paula, ainda é preciso ter um grande amadurecimento com relação à gravidade do crime sexual. “A pessoa não é culpabilizada nos demais crimes. Ninguém fala ‘aquela pessoa estava com a porta de casa aberta, então mereceu ser roubada’. Mas, infelizmente, os julgamentos se fazem presentes quando se trata de crime sexual”, lamenta.
Defensoria diz que decisão causou ‘estranheza’,
A defensora afirmou, também, que a absolvição dos policiais “causou estranheza”, já que, segundo ela, o caso está amparado pela denúncia, com perícias e laudos que comprovavam a violência sexual, além de imagens de câmeras de segurança.
Ainda de acordo com a defensora, os depoimentos dados pela vítima, tanto no processo criminal quanto à Corregedoria da PM, sempre foram muito consistentes e constantes.
Defesa diz que decisão foi ‘justa’
Em nota ao G1 São Paulo, os advogados que defendem o PM absolvido afirmam que a decisão “analisou profundamente o conjunto probatório, após ampla defesa, contraditório e o devido processo legal, de sorte que ficou amplamente comprovado a inocência”.
Já o advogado do PM condenado por libidinagem afirmou que, “na sentença, analisou-se de maneira detalhada todas as provas do processo, chegando-se a um resultado que a defesa compreende justa”.
O caso
A vítima relatou no processo que, ao desembarcar de um ônibus, por volta das 23h40, em Praia Grande, se dirigiu aos PMs que estavam em frente a um shopping da cidade. Ela disse que perdeu o ponto de ônibus onde deveria ter desembarcado e pediu orientações aos policiais.
Os policiais, então, segundo o processo, ofereceram à jovem carona até um terminal rodoviário, o que foi aceito por ela.
Câmeras de ruas em Praia Grande registraram o deslocamento da viatura pela cidade e a chegada do carro da PM e o desembarque da jovem no Terminal Rodoviário Tude Bastos, onde os policiais a deixaram após o ocorrido.
Segundo relato da jovem, os PMs desviaram o caminho, e um deles, que sentou no banco de trás do veículo com ela, e, “sob emprego de força física”, “constrangeu à conjunção carnal”, introduzindo o pênis na vagina dela.
Em seguida, o PM a obrigou a fazer sexo oral, relatou a vítima. A jovem contou que se sentiu ameaçada e coagida, pois ambos os PMs estavam armados e, antes dela embarcar no veículo, conversaram rapidamente, o que poderia sinalizar que haviam premeditado e combinado o suposto estupro.
A mulher contou, ainda, que o policial a obrigou, sob força física, a engolir o sêmen. Após a prática do ato, a jovem foi “liberada”.
Perícia na vítima confirmou a prática do sexo. Também foi encontrado sêmen na roupa da PM. O celular da jovem foi encontrado dentro da viatura onde o sexo ocorreu.
A defesa dos PMs juntou no processo relatos de redes sociais que apontaram que a jovem participou de uma festa após o ocorrido. Para o juiz do caso, porém, ficou provado apenas o sexo oral e a vítima não provou que ofereceu resistência à prática do ato.
Fonte: G1