O Brasil é o país com o maior número de trabalhadoras domésticas do mundo. No início de 2020, existiam aproximadamente 6 milhões de pessoas na categoria, sendo que quase 2 milhões perderam seus postos de serviço por causa da pandemia. Elas estão entre as categorias profissionais mais afetadas e impactadas com a crise sanitária, que acentuou as desigualdades e as más condições de trabalho no país. Em entrevista à ONU Mulheres, a a presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista, traça o contexto e realidade da categoria em meio à crise sanitária.
ONU Mulheres: Quais os grandes impactos causados pela pandemia para as trabalhadoras domésticas?
Luiza Batista: A pandemia desde 2020 vem causando uma reviravolta na vida de toda classe trabalhadora. Na realidade das trabalhadoras domésticas, tivemos muitas situações de demissão, de suspensão do contrato de trabalhadores e trabalhadoras. Muitas vezes, obrigando as trabalhadoras domésticas a ficarem nos postos de trabalhos. Houve empregadores e empregadoras que recorreram à Medida 936 demitindo e impactando milhares de trabalhadoras domésticas – cortando os benefícios e amparos de forma integral ou parcial. E, muitas vezes, até parte do salário era pago pelo governo e outra parte pelo empregador ou empregadora. Tivemos, ainda, aquelas que mesmo mensalistas não tinham carteira de trabalho assinada. Estas, sim, foram as mais prejudicadas.
ONU Mulheres: Quais seriam as soluções para o enfrentamento desta crise sanitária para ajudar as trabalhadoras domésticas?
Luiza Batista: É num momento como esse, que quando o empregador cumpre as leis, respeita os direitos de quem conquista – como é caso da nossa categoria, que temos uma Lei Complementar, os nossos direitos são garantidos. Esses empregadores e empregadoras que mantiveram as trabalhadoras de carteira assinada, tiveram prejuízo mínimo. Puderam suspender o contrato, e o período que estava suspenso não recolheram FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) nem INSS (imposto relacionado à proteção social arrecadado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social). No final do ano passado, pagaram o 13º salário parcialmente de acordo com os meses trabalhados, mas é algo que a gente não concorda muito. Mas, garantiram às trabalhadoras esses direitos e sua manutenção nos postos de trabalho. E, aquelas que não têm seus direitos, que não têm carteira assinada, que seus empregadores não recolhem suas contribuições sociais, realmente tiveram os prejuízos maiores. É aí que a gente fala como solução, que a trabalhadora tem que está com a carteira assinada – umas das ações para fazer o enfrentamento neste momento difícil que o Brasil está passando.
Por outro lado, sabemos que muitos empregadores e empregadoras (das trabalhadoras domésticas) também perderam seus postos de trabalho. E aí, estes que perderam seus trabalhos, infelizmente, rescindiram os contratos das trabalhadoras, seja ele formal ou informal. Acredito que nenhuma federação tenha uma solução ou saída pronta. Essa solução tem que partir dos nossos governantes; tomar medidas urgente e sérias que venham garantir o aumento dos postos de trabalhos para diversas categorias e para que o trabalho doméstico volte a ter a continuidade da contratação – que é algo que não depende de sindicatos, nem da federação, mas dos nossos governantes de dirigir a economia do país de uma forma que volte a crescer. No entanto, o que estamos vendo por aí é uma retrocesso; são fábricas fechando e demissão em massa. Muitos destes são empregadores domésticos.
ONU Mulheres: Podemos traçar um panorama/cenário (em números) de quantas trabalhadoras domésticas foram infectadas, seja sintomáticas ou assintomáticas, pelo coronavírus?
Luiza Batista: Nós temos mais 365 mil mortes pela Covid no Brasil [esta entrevista foi realizada na segunda quinzena de abril de 2021]. Isso porque não temos todos os casos notificados. Por exemplo, eu, meu irmão e meu primo, somos casos não notificados. Pegamos o vírus, não fomos internados, nem notificados. Infelizmente, nenhuma categoria tem o percentual da quantidade de trabalhadoras e trabalhadores que foram infectados. Temos casos pontuais, que mostram a fragilidade das trabalhadoras domésticas no local de trabalho, no transporte público. No Rio de Janeiro, por exemplo, a primeira morte por Covid foi uma trabalhadora doméstica. Mesmo os patrões sabendo que estavam contaminados, eles não tiveram o cuidado de tomar as medidas possíveis de segurança para que ela não se contaminasse.
Em Pernambuco, tivemos um caso emblemático, que foi da trabalhadora doméstica Mirtes Souza, a mãe do menino Miguel que caiu do 9º andar, quando estava no posto de trabalho. Ela relatou que mesmo com Covid teve que trabalhar. Os patrões com Covid e ela também, teve que continuar trabalhando, inclusive levando o filho para o local de trabalho. Quando Mirtes saiu para passear com a cadela da família e deixou o filho na residência, foi quando a patroa deixou a criança sair e pegar o elevador sozinha. Isso é abandono de incapaz. E como já sabemos virou um caso de repercussão internacional. Mas, por fim, a gente não tem o número de trabalhadoras domésticas infectadas, além de termos muitos casos que não são notificados, não temos acesso aos prontuários quando chegam numa unidade de saúde. Mas, sabemos que houve um grande número de trabalhadoras infectadas, até porque o transporte público não contribui para o isolamento da propagação do vírus, sempre estão lotados e em números reduzidos.
ONU Mulheres: Como a Fenatrad conseguiu apoiar as trabalhadoras domésticas neste período de pandemia?
Luiza Batista: A Fenatrad buscou apoiar as trabalhadoras domésticas que estavam desamparadas e desempregadas, com ajuda humanitária, por meio de distribuição de cestas básicas. Ao longo do ano passado, com ajuda dos sindicatos estaduais, conseguimos com apoio de várias outras organizações, federação internacional e Ministério Público, cestas básicas para distribuir com elas ou depósito bancário para os sindicatos para ajudar na compra de cestas básicas. Em alguns estados, tivemos parcerias com as secretariais estaduais. E, este ano estamos mais uma vez fazendo nova campanha para ajudar as companheiras, porque o auxilio emergencial foi suspenso e têm muitas que não conseguiram receber.
Em todos os estados que a Fenatrad tem sindicato, buscamos apoio de outras organizações da sociedade civil. Sem falar em outras campanhas que fizemos sobre os nossos direitos, principalmente voltados para os governos que decretaram nosso trabalho como serviço essencial nesta pandemia. Enviamos ofícios para os governos no intuito de alterar a redação, pois sabemos da importância do nosso trabalho. Promovemos até uma reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, no ano passado, na tentativa de mudar o texto.
E, esta mudança nunca foi votada. Agora, queremos que as trabalhadoras domésticas sejam prioritárias no grupo da vacinação. São elas que enfrentam todos os dias os transportes lotados e trabalham na casa de pessoas, que muitas vezes têm crianças e pessoas idosas. Para mim, não adianta muito, os idosos se vacinarem e não vacinar as pessoas que estão em sua volta. O ideal é ter vacina para todo mundo. É importante que o calendário de vacinação olhe esse recorte de aproximação das pessoas.
ONU Mulheres: Quais a necessidades mais urgentes das trabalhadoras domésticas devido a esse contexto de pandemia?
Luiza Batista: A necessidade mais urgente é a ajuda humanitária. Há milhões de trabalhadoras domésticas sem emprego. Não temos perspectivas de reabrir os postos de trabalhos, porque a classe média emprega muito as trabalhadoras domésticas. Esta é uma classe que precisa trabalhar e, consequentemente, precisa também da trabalhadora doméstica. Muitas pessoas, perderam seus empregos ou tiveram seus salários reduzidos, ou estão trabalhando home office. São várias questões, e hoje as pessoas se esforçam para fazer os trabalhos domésticos, que antes eram feitos por essas trabalhadoras. Antes, podia pagar uma pessoa para fazer.
Então, o trabalho doméstico teve uma redução drástica e com isso muitas trabalhadoras domésticas estão desempregadas. Apoiar a trabalhadora doméstica ou qualquer pessoa que precise neste momento de pandemia é considerado ajuda humanitária, por exemplo, com cestas básicas. A fome não espera. Se você não se alimenta, você não fica nutrido, adoece e fica com a imunidade baixa, mais vulnerável ao vírus. Neste momento, a ajuda urgente é com alimentos e, se possível, acompanhado com a abertura dos postos de trabalho.
ONU Mulheres: Como seu deu a relação e a parceria entre a Fenatrad e a ONU Mulheres?
Luiza Batista: Nossa parceria com a ONU Mulheres não é de agora, é de muitos anos atrás, assim como também com a OIT. A nossa luta é muito específica, dada à especificidade da nossa categoria. É diferente de outras categorias, onde tem acesso aos dados das empresas e dos seus trabalhadores. Por isso, achamos importante e necessário termos esse apoio da ONU Mulheres, da OIT e da federação internacional para que a nossa luta não pare. Atualmente, estamos com um projeto junto à ONU Mulheres, que vai beneficiar milhares de trabalhadoras, abrangendo oito sindicatos nossos, que vai ficar mais centrado a região sudeste, previsto para iniciar agora no final de março. Conseguimos outro apoio com a federação internacional que vai apoiar os sindicatos da região nordeste.
Sobre Luiza Batista Pereira – É presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) desde 2016, organização que representa uma das categorias profissionais mais numerosas no Brasil. Estima-se que há mais de 6 milhões de pessoas realizando trabalho doméstico remunerado, número que leva o país para o topo do ranking de nações com maior população de trabalhadoras domésticas e trabalhadores domésticos – segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Filha de mãe e pais agricultores, Luiza é natural da cidade de São Lourenço da Mata, antiga região Zona da Mata Norte, no estado de Pernambuco (Brasil). Começou a trabalhar como doméstica aos 9 anos de idade por necessidade financeira, após a família ser expulsa das terras onde moravam pelo proprietário, um dono de um engenho no município de Chã de Alegria (PE). Hoje, aos 64 anos de idade, ela é considerada uma liderança nacional para a categoria e uma referência na luta pelos direitos das profissionais domésticas.
PARCERIA – A ONU Mulheres Brasil atua em parceria com a Fenatrad para fortalecer a defesa dos direitos trabalhistas da categoria e promover o diálogo com a sociedade sobre trabalho decente, em conformidade com a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A parceria com a Fenatrad se insere no contexto da campanha Geração Igualdade e do Fórum Geração Igualdade – um espaço para reflexão e discussão acerca das conquistas e desafios que ainda enfrentamos para a igualdade de gênero. Nesse sentido, a problemática das trabalhadoras domésticas está no âmbito da Ação de Coalização por Justiça Econômica e Direitos, dado que estas são prejudicadas de diversas maneiras por desigualdades no sistema econômico.
A ONU Mulheres está engajada com iniciativas para o fomento de debates que promovam a construção de estratégias de curto, médio e longo prazo para abordar as vulnerabilidades enfrentadas por mulheres e meninas hoje, de modo a viabilizar que as mulheres e meninas do futuro vislumbrem um mundo de igualdade. Nesse sentido, alia-se com a sociedade civil, principalmente, na parceria com a Fenatrad, e com autoridades locais promovendo ações de desenvolvimento de capacidades das instituições e pessoas em educação econômica.
Fonte: ONU Mulheres