No final de dezembro de 2012, a gestante Ana Carolina Carvalho Santiago, de 18 anos, deu entrada no Hospital e Maternidade Modelo de Ananindeua , na região metropolitana de Belém (no estado do Pará, região norte do Brasil). A internação para o parto da gravidez de 9 meses foi seguida por uma série de atos considerados violadores de sua autonomia e dignidade: de acordo com parentes e com o processo que corre no Conselho Regional de Medicina, proibiram-lhe de ter acompanhante, administraram medicação para induzir o parto sem o consentimento da moça, tentaram manobras de pressão no ventre (a chamada manobra de Kristeller), além de ter sido xingada (sob o argumento de não estar cooperando com a equipe médica). O resultado da situação foi a morte do feto, a ruptura do útero e o consequente óbito de Ana Carolina. A história ganhou destaque na imprensa brasileira e corre na Justiça, mas situações de violência obstétrica, muitas vezes sem desfecho fatal, acontecem diariamente no Brasil e nem sempre ganham visibilidade como o caso de Ana Carolina. O projeto de lei 7633/2014, recentemente protocolado na Câmara pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), procura modificar essa situação.
O projeto é um desdobramento de uma Audiência Pública que abordou, entre outras formas de violência contra a mulher, a violência obstétrica. Construído coletivamente com a organização Artemis, em colaboração com a Associação Brasileira de Enfermagem, o Conselho Regional de Enfermagem, o Fórum Cearense de Mulheres e a Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiras Obstetras e Neonatais – secção Ceará (ABENFO-CE), o texto dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal. Garante à gestante o direito ao parto humanizado, conforme sua vontade, à mínima interferência médica, e provê informação sobre procedimentos e direitos, entre eles o abortamento seguro nos casos previstos em lei. Também estabelece como direitos do neonato o nascimento digno e seguro, o contato com a mãe logo no primeiro momento de vida, quando não houver impedimento médico. A humanização do parto é um modelo de assistência à saúde que prioriza a dimensão “natural” do ato de dar à luz, pensado como resposta a uma excessiva medicalização deste. Por isso, privilegia a assistência sem intervenções médicas e mecânicas, muitas vezes realizada em casa pelas obstetrizes/parteiras ou doulas, evitando o modelo hospitalar atualmente dominante no cenário brasileiro e que favorece a ocorrência de diversos tipos de violência obstétrica. Pela lógica da humanização, a gestação e o parto são vistos como processos fisiológicos normais, cujo desenvolvimento e desfecho o próprio corpo tem capacidade de encaminhar. Assim, a intervenção médica/obstétrica não é encarada como necessária, e sim como uma força auxiliar de acompanhamento, à que se recorre apenas em caso de intercorrência que demande ação para facilitar o nascimento. A violência obstétrica – da qual Ana Carolina foi vítima – é cometida em um contexto de relações de poder e hierarquia favorecido pela vulnerabilidade da grávida e do bebê. Constituem agressões obstétricas o impedimento da presença de acompanhante (apesar de no país uma lei de 2005 obriga os hospitais a permitir a companhia de alguém escolhido pela gestante); maus-tratos, desqualificação, ridicularização, submissão a procedimentos dolorosos desnecessários e humilhantes, muitas vezes sem o consentimento ou permissão (como lavagem intestinal, raspagem dos pelos pubianos, exposição a terceiros para fins de estudo, administração de medicação, indução à cesárea etc); separação do bebê sem necessidade clínica, entre outras. No Brasil, os partos são em sua maioria conduzidos em hospitais e através de cesáreas: de acordo com o Ministério da Saúde, 52% dos partos são feitos assim, índice muito acima dos 15% recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em hospitais privados, os índices chegam a 90%. Uma situação perigosa, de acordo com a obstetriz Ana Cristina Duarte, integrante do movimento brasileiro de humanização do parto e membro da ONG Artemis. De acordo com ela, uma série de fatores contribuem para que a intervenção médica tenha se natuzalizado no cenário brasileiro, entre os quais a hiper-valorização da figura e do conhecimento médicos, a formação de profissionais de saúde, a lógica econômica de maximização do lucro que rege o funcionamento dos serviços e a falta de infraestrutura dos hospitais e maternidades. “Há uma cultura em que o médico adquire status de autoridade máxima, bem como o seu conhecimento, que é consagrado como o mais adequado. É uma representação generalizada, infelizmente, que dificulta o diálogo entre as partes envolvidas – gestante, parentes e equipe de saúde – no sentido de atender às expectativas da mãe. Por isso, é uma violência invisível, pois nem violência é considerada no senso comum, que compreende que a equipe médica faz sempre o melhor e que a mulher de alguma forma não colabora”, afirma Ana Cristina Duarte, mãe de dois filhos – o primeiro por cesárea, induzida pelo médico. “Acredito que os índices de violência obstétrica devem ser elevadíssimos e, na prática, toda mulher na hora do parto deve sofrer algum tipo de violência”, completa. A bandeira central do movimento de humanização do parto é a desconstrução da naturalidade da intervenção médica. Isso significa, conforme o projeto de lei 7633, garantir à gestante, seja no momento do pré-parto, parto, puerpério e nos casos de abortamento (espontâneo ou provocado) o direito de optar pelos procedimentos que lhe propiciem maior conforto e bem-estar, seja através de métodos farmacológicos ou não; de escolher as circunstâncias em que o parto deve ocorrer (o local e a posição, por exemplo); de ser informada sobre o andamento do parto e sobre as possibilidades de intervenção médico-hospitalares, para que possa decidir quando houver alternativas; e de ter um acompanhante por ela designado. Em países como Alemanha e Holanda, a condução do parto vaginal é atribuição da parteira/obstetriz. O médico assiste ao evento e participa apenas quando há intercorrências e a necessidade de cesárea. Tais iniciativas seguem diretrizes do Manual de Boas Práticas de Atenção ao Parto e ao Nascimento, da OMS, que classifica ações benéficas (tais como respeito à escolha da gestante, atenção ao bem-estar, fornecimento das informações e explicações sobre tudo que elas desejarem saber e uso de métodos não invasivos e não farmacológicos para alívio de dor) e prejudiciais ao parto (por exemplo, uso de medicação para estimular o nascimento). O projeto de lei 7633 baseia-se nesse manual, assim como em outras iniciativas do Estado brasileiro sobre a questão, como a Resolução 36/2008 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e o Programa Nacional de Humanização do Parto, de 2002. Raquel Marques, diretora da Artemis, destaca que essas iniciativas estão embasadas em evidências e pesquisas científicas que apontam as vantagens da não intervenção médica e farmacológica. Por exemplo, as cesáreas aumentam os riscos de prematuridade do bebê, uma vez que a operação é geralmente programada e não realizada de emergência, o que pode não coincidir com a plena formação do bebê. Também colocam em jogo a mortalidade materna. Em relatório divulgado esta semana no Fórum da Parceria para a Saúde Materna, de Recém-Nascidos e Crianças, realizado em Johannesburgo (África do Sul), foi constatado que a realização de cesárea sem a indicação de necessidade aumenta em 20% os riscos de morte materna. O que, para o Brasil, é um problema, tendo em vista a dificuldade em se reduzir a mortalidade materna para os padrões recomendados pela ONU nas metas do milênio: atualmente, há 69 mortes de gestantes para cada 100 mil nascimentos, e a redução de tais índices é a quarta mais lenta no mundo, quando comparado com a média de redução de todos os países; a ONU recomenda que os índices sejam de 35 mortes para cada 100 mil até 2015. “Quanto mais natural o parto e menos tecnologia for utilizada, melhor a recuperação da gestante e do bebê. Infelizmente, isso é ignorado nas faculdades de medicina. A formação dos médicos se dá mais pela tradição do que pela ciência. Infelizmente, parece haver pouca atenção para as orientações e diretrizes do parto humanizado.”, afirma Raquel Marques. A realização do parto em casa, com o acompanhamento da família, tem sido apontada por pesquisas como a forma mais adequada. Ana Cristina Duarte, da Artemis, destaca que as equipes médicas nem sempre oferecem o suporte emocional que as mulheres precisam. Ela lembra que o modelo hospitalar ignora algumas evidências. “Os partos são realizados com as mulheres deitadas. Essa é a posição menos recomendada, pois pode prejudicar a oxigenação do bebê. No entanto, é a posição mais difundida e utilizada. O ideal é que a gestante escolha a posição mais confortável para ela, seja de cócoras, de quatro, de lado. Enfim, é a gestante quem deve decidir”, aponta Ana Cristina Duarte. A dominância do modelo hospitalar revela desafios para a humanização do parto. Vale dizer que o modelo de humanização não nega o valor médico, mas procura ampliar as possibilidades do processo de dar à luz. A intervenção médica é importante e necessária quando há intercorrências. Nesse sentido, uma questão importante nesse debate é a formação profissional. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o profissional obstetriz é o mais indicado para acompanhar o parto. Na prática, no entanto, os hospitais costumam negar esse acompanhamento. E o projeto de lei 7633 não avança nessa questão, na opinião de Paula Viana, coordenadora do Grupo Curumim. “Não fica clara a presença da obstetriz. Sinto falta da definição dos deveres das instituições. Não há previsão de que os hospitais sejam obrigados a ter esses profissionais. Reconheço que o projeto de lei, apesar de não trazer novidades, é um passo importante, pois condensa uma série de ações e princípios que têm sido definidos há tempos, no âmbito nacional e global, como os mais adequados para lidar com o processo do parto. Porém, é preciso mais definição e um alcance maior para lidar com todas as questões que envolvem a humanização do parto”, observa Paula Viana. A discussão sobre parto humanizado tem orbitado em torno da questão das cesáreas, mas a violência obstétrica é um fenômeno mais amplo. Diz respeito a disputas de poder e saber, a condições de acompanhamento, acolhimento e assistência às gestantes e parturientes, à formação de profissionais de saúde e à infraestrutura dos serviços de saúde. Raquel Marques, da Artemis, ressalta que é comum culpar exclusivamente o médico. “A violência obstétrica é uma questão multifatorial. O médico muitas vezes está também sob pressão das direções dos hospitais, dos planos de saúde, do número de leitos disponíveis, entre outras questões. Por exemplo, o tempo de ocupação de leito para uma mulher que realiza o parto vaginal é maior do que aquele para mulheres que passaram por cesariana. Além disso, é preciso refletir sobre o ensino nas faculdades, que ignora evidências e recomendações sobre os benefícios da humanização do parto. Vivemos também em um país com sérios problemas na rede pública de saúde: carência de profissionais, de material, de condições físicas. Em resumo, não podemos perder de vista que a situação atual é fruto de processos econômicos, administrativos, educacionais e políticos que ultrapassam a figura do médico. Ter isso em mente é importante para que o modelo de humanização seja debatido, refletido e difundido”, conclui Raquel Marques. |
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Fonte: Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
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