Daniela Mercury reage a preconceito: “em casal de mulheres ninguém entra”A cantora Daniela Mercury, 48, trabalha em um novo álbum, “mais autoral”, e em um livro, a ser lançado em novembro com sua esposa, Malu Verçosa. “É uma biografia amorosa-jornalística do nosso relacionamento, o que aconteceu e o impacto que isso teve”, diz Daniela, a respeito da revelação, feita no início do ano pelo Instagram, de seu relacionamento homossexual. As duas se casam no civil neste sábado e, como uma “atitude política”, vão passar a usar os sobrenomes uma da outra. “Já trocamos alianças, mas a sociedade precisa de clichês”, diz a cantora. Em entrevista à BBC Brasil, Daniela conta que ainda ouve risadinhas de homens. “Tenho a sensação de que fere muito a masculinidade de alguns homens o fato de duas mulheres estarem juntas”, diz. Mas pede à reportagem: “Quando for escrever, (ressalte que) o meu intuito não é bater nos homens. Falo da minha vivência particular. Não diferencio as pessoas pelo sexo, mas essa divisão e a atribuição de poder ainda existe na sociedade. O machismo é uma doença social que a gente precisa erradicar, com posicionamento, clareza, e não se deixar diminuir”. Confira a entrevista: BBC Brasil – Quais os principais desafios que enfrenta como mulher? Como a maioria, concilia diversos papéis? Daniela Mercury – A mulher acrescentou papéis na sua vida, por sua necessidade de se expressar, de produzir, de existir como profissional e ter sua independência financeira. Quando querem ter filhos, em geral ela faz muito mais coisas do que o homem – costuma fazer toda a gestão da casa, das crianças, ainda que, em casais héteros, o marido ajude cada vez mais. Acho que os casais de mulheres dividem mais as atribuições dentro e fora de casa, é mais igual. Agora, com Malu, ela já assumiu metade dos assuntos – ela já pega, paga, resolve. Ela assume a responsabilidade, coisa que em geral o homem não faz. Eu que já fui casada com homem e com mulher (posso dizer). Você me pergunta do papel da mulher hoje. A mulher está sujeita a abusos muito mais constantemente do que homens. E são subliminares. Como uma mulher sozinha é vista na sociedade brasileira? Para a maioria, ela teria de ter um homem ao lado dela para ser respeitável. Muita gente vai dizer que isso não existe mais, mas existe. Muitas mulheres não querem casar, querem uma vida sexual mais livre, são donas do próprio nariz e bem-sucedidas profissionalmente. Não encontraram um parceiro para conviver e são olhadas como “tadinhas”. Passei uma época da minha vida solteira e convivendo com casais amigos. Depois de uns três anos, quando estava com um novo namorado, ouvi de três ou quatro amigas: “Que bom, você agora tem namorado”. Fiquei assustadíssima. Respondi “mas eu estava ótima!”. Por que essa ideia de que eu precisava de alguém, e (sobretudo) de um homem? É muito forte isso – e vem das mulheres, que exigem umas das outras que estejam com homens para serem protegidas, respeitadas. Você foi elogiada por ter sido franca quanto a seu relacionamento com a Malu. Mas sente esse “abuso subliminar”? Pela nossa naturalidade, por sermos mulheres inteligentes, fortes, bonitas, femininas e decididas, a gente não deixa muita brecha. Se alguém ameaçar olhar torto, a gente já reage, sutilmente ou menos sutilmente. Mas são perceptíveis olhares, eventualmente uma conversinha ou outra, uma risadinha de mesas de homens (em um restaurante). Às vezes tenho a sensação de que fere muito a masculinidade de alguns homens o fato de duas mulheres estarem juntas. Acham que vão transar com as duas, ter as duas sexualmente. Não percebem que, em um casal de mulheres, ninguém entra. Nem homem, nem outra mulher, vai entrar em um casal que se predispõe a viver junto com fidelidade, compromisso. Não que (o laço) seja mais ou menos forte do que um casal heterossexual, mas é no mínimo equivalente. Ainda que não seja considerado assim. Os rótulos de comportamentos sexuais – sejam de homossexualidade ou de promiscuidade – te incomodam? Quando vemos dois homens ou duas mulheres juntas, qual o problema? A preocupação (tem de ser) se aquela pessoa é legal, correta, positiva, vai fazer bem para o outro. Mas a questão acaba sendo toda o tabu sexual. (Os rótulos) são insuportáveis. Acho inadmissível piadinha com gay, tão comuns no sexo masculino. São brincadeirinhas nocivas, desagradáveis, preconceituosas ao extremo. E sobre o fato de as mulheres estarem sempre (retratadas) como as promíscuas, sedutoras, isso é o nosso carimbo bíblico desde Eva. Está no inconsciente da sociedade. É um mito completo. Vejo muitas mulheres que seduzem porque estão submetidas ao homem. Elas continuam mostrando muito seu corpo, vendendo sua imagem sem pensar a respeito disso. Odeio quando vou aos EUA ou à Europa e escuto “vou para o Brasil arrumar uma mulher para transar”. Não é à toa que o turismo sexual e a pedofilia são problemas tão sérios. Não é à toa que em países latinos tenhamos pais machistas, ou o mito da virgindade como símbolo de pureza. E as mulheres acabam alimentando isso, o que é irritante. As brasileiras ainda precisam cuidar de si mesmas. Não quero ser dona da verdade, mas a sensação é de que a gente tem que se valorizar muito mais. Todos temos momentos de fragilidade, homens ou mulheres. Mas as mulheres às vezes se põem nessa situação de vítima, de querer se protegida. Se a gente quer (igualdade), então também temos que assumir a responsabilidade de sermos o que quisermos. Na sua área, muito se idolatra a mulher gostosa, sarada. É verdade. E se pressupõe que essas mulheres não sejam muito inteligentes. Porque as mulheres inteligentes ainda irritam muita gente. E eu hoje em dia me irrito com as mulheres não muito inteligentes, ou que se fazem de bobas, porque acham que esse é o caminho mais fácil. É mais fácil, mas muito perigoso. O brasileiro já não é um povo que se posicione muito. A gente fala pouco claramente, porque acha que falar a verdade incomoda demais. Daí vai ficando uma sociedade na névoa, em que tudo acontece mas ninguém deixa claro o que acontece. Acho que o que eu e Malu fizemos não foi nada de extraordinário, a gente só foi transparente, clara, falou a verdade. Mas isso teve um impacto muito grande porque a sociedade prefere fingir que não existe aquilo. E você se sente mais feliz ao ter falado a verdade? De ter comunicado minha relação? Sem dúvida alguma. Não tinha como ser de outra forma – viver em uma relação, construir uma família e camuflar isso não é do meu perfil. Ninguém é contra o amor. Por isso a gente está recebendo tanto apoio. Vê traços de machismo em seus ambientes profissional e pessoal? A arte é uma área diferente, de pessoas sensíveis, abertas, (mas) os homens são os mesmos e as mulheres são as mesmas – filhos das mesmas famílias provincianas. Acho que há, sim, machismo. Quando você vê um homem cantando, já presume que ele seja compositor, músico, pense por si mesmo e tenha o conceito do próprio trabalho. Mas (no caso da) mulher você pensa no máximo “ela é uma ótima intérprete”, e não uma criadora. Em geral acham que a mulher é comandada por alguém. Sou produtora, diretora, concebo meu trabalho desde o começo, sou compositora de muitas das minhas obras. Uma vez cheguei na gravadora BMG e fui conversar com um diretor artístico. Falei para ele que estava preparando um disco mais íntimo, com canções de amor, mais existenciais. Ele respondeu: “Para mim mulher não tem que pensar conceito”. Eu levantei e saí, e só não rasguei meu contrato porque não era empregada dele, era parceira da gravadora. Se eu não tivesse personalidade forte e não viesse de uma educação de mulheres fortes – minha mãe e minha avó, mulheres que se posicionaram diante do mundo -, eu ia ser engolida. Teria desistido de fazer várias coisas. Meu pai, apesar de católico e conservador em muitas coisas, sempre me deu muita força e me respeitou muito. Nunca havia moral boba em casa, sempre se acreditou que como seres humanos todos (os cinco filhos) deveríamos ser respeitados. Então não me deixo desrespeitar fora de casa. Estou fazendo meu primeiro trabalho completamente autoral, para que as pessoas possam perceber como eu penso, enxergar a Daniela autora. Muitos dizem “não sabia que você compunha”, e eu sou autora de grandes sucessos meus, como “O Canto da Cidade”. Tenho sempre que reiterar minha autonomia. É cansativo, mas se não for assim, fica mais difícil ainda. |
Fonte: BBC Brasil
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