Por Camila Morsch* Há algumas décadas, esforços têm sido empreendidos para promover a equidade de gênero e a diversidade em vários espaços sociais, inclusive no mercado de trabalho. Ainda, desigualdades que afetam muitos grupos, como mulheres, pessoas com deficiência e as populações negra e indígena precisam ser superadas. Grupos que são afetados por múltiplos tipos de discriminação, como mulheres negras, por exemplo, estão situados na base da pirâmide socioeconômica. No levantamento feito pelo Instituto Ethos, em 2010, sobre o Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil, foram encontradas apenas seis mulheres negras no quadro executivo. Números assustadores como este são ferramentas importantes para entendermos que as iniquidades de gênero, especialmente esse tipo de iniquidade interseccional, estão longe de ser resolvidas e que o simples fato de ser mulher, ou mulher negra, ou mulher indígena, tem um impacto enorme no nosso trabalho e nas nossas vidas. Recentemente, tem-se usado argumentos de economia inteligente para demonstrar o valor agregado das práticas de inclusão de mulheres no resultado e atuação das empresas. Esses argumentos são importantes e ajudam a construir uma agenda mais propositiva, de investimento nas políticas e práticas para equidade de gênero. Neste aspecto, destacam-se os estudos que demonstram como o melhor aproveitamento das mulheres promove, por exemplo, maior capacidade da empresa de entender suas consumidoras, gerir seu pessoal e aproveitar talentos que antes eram invisíveis aos recrutadores. Ao mesmo tempo que argumentos de economia inteligente são compreendidos pelas empresas, corremos o risco de esvaziar o movimento de defesa pelos direitos das mulheres, que aponta a necessidade da sociedade como um todo de melhor entender que a inclusão é uma questão de direito. Esse risco relaciona-se com a falta de diálogo sobre os vários papéis e funções da mulher na organização da sociedade e com o não desenvolvimento de uma sensibilidade para as questões que são próprias das mulheres no Brasil. Nesse ponto, destacam-se o descaso em relação ao debate sobre a maternidade e ao direito ao retorno após a licença-maternidade, a dupla jornada de trabalho, as vulnerabilidades à violência e ao assédio moral e a estereotipagem e o consequente engessamento da mulher no papel de quem cuida e serve, entre outros. A construção de uma visão potente que contribua para que as empresas invistam em inclusão passa pelos dois caminhos, o da economia inteligente e o do reconhecimento dos direitos e das realidades que, na origem, estimularam movimentos pela igualdade de gênero. Ao longo dos anos, esses movimentos, no âmbito do trabalho, têm apontado para a necessidade de: equidade salarial; engajamento de ambos, homens e mulheres, nas práticas de cuidado, dentro das empresas e em casa; licença-maternidade e licença parental; equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, para que homens e mulheres possam crescer e cuidar; atendimento específico às necessidades de pais com crianças pequenas, como salas de aleitamento e creches; empoderamento de mulheres em espaços de decisão; etc. Ao longo dos anos, temos visto também o modo como a realização desses direitos e práticas tem contribuído para um melhor desempenho das empresas. Nesse sentido, faz-se necessária uma maior consciência e análise dessa correlação. Precisamos percorrer um caminho que aproxime aqueles e aquelas que têm expertise nos movimentos de defesa e cumprimento de direitos de líderes que estejam dentro das empresas, compreendam suas necessidades e possuam as ferramentas necessárias para implementar programas e fazer do ambiente de trabalho um espaço produtivo e genuinamente igualitário. Direitos específicos para as mulheres: batalha histórica As mulheres avançaram em todos os setores da sociedade. A história nos mostra que essas conquistas foram resultado de reivindicações, movimentos sociais e transformações políticas e econômicas. Há vários marcos importantes nesse caminho, como a conquista, em 1920, do direito ao voto pelo movimento das suffragettes, nos EUA. Mas foi a Nova Zelândia o primeiro país a conceder esse direito às mulheres, em 1893; no Brasil, essa conquista só viria em 1932. E demoraria até 2010 para que uma brasileira assumisse a Presidência da República. Além dos direitos civis e políticos, em geral, as mulheres conquistaram direitos sociais, culturais e econômicos somente a partir de meados do século XX. No Brasil, somente em 1981 caiu o veto ao futebol feminino e, em 1985, surgiram as delegacias especializadas. Na década de 1990, a conferências da ONU em Viena, no Cairo e em Beijing marcaram a sociedade global e estabeleceram novos patamares para o debate sobre igualdade de gênero. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), de Beijing, reitera o papel da mulher como agente econômico, assim como a posição dos direitos das mulheres dentro de um contexto maior, o dos direitos de todos, dos direitos humanos. Para a redução das desigualdades de gênero nas empresas, conhecer esse histórico e o marco regulatório internacional pode tornar-se essencial. Pela Constituição Federal do Brasil (art. 5º, parágrafo 2º), os tratados e convenções de direitos humanos ratificados pelo Brasil são automaticamente recepcionados pela nossa legislação infraconstitucional, tendo força de lei, portanto. Também, leis específicas consolidaram ou regulamentaram os direitos estabelecidos pela legislação internacional que inclui a Declaração Universal de Direitos Humanos e os Pactos por Direitos Civis e Políticos; Econômicos, Sociais e Culturais.1 No Brasil, o marco regulatório perpassa diferentes grupos de direitos: os direitos civis e trabalhistas; os direitos constitucionais (sobretudo os fundamentais; os políticos); os direitos sexuais e reprodutivos; e os direitos de proteção contra a violência. As respectivas leis que compõem o marco podem não ser tão óbvias, variando desde a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) até o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Não obstante, é crucial que esse marco regulatório seja bem conhecido por quem trabalha com inclusão e empoderamento dentro das empresas. Primeiramente, tomado em conjunto, esse marco regulatório transversaliza e concretiza os problemas que as mulheres enfrentam mais do que os homens, mas que impactam todos os indivíduos. Ele traz a compreensão do quão difícil é construir um sistema efetivo que possa garantir os direitos das mulheres e resolver os problemas históricos de discriminação e violência. Segundo, esse marco pode guiar a empresa nas suas ações, elegendo prioridades, olhando criticamente para os pontos que não estejam sendo tratados e possam configurar violações, gerenciando riscos e promovendo a realização de direitos, por entender que tais ações são necessárias. Terceiro, o conhecimento dessas leis e de políticas poderá ajudar na construção de argumentos, junto à presidência da empresa, para que haja investimento nas ações afirmativas feitas para promover o trabalho decente para homens e mulheres, num espaço de trabalho mais harmônico, saudável e produtivo. O impacto do empoderamento nas empresas: estudos recentes Além de um conhecimento sobre os direitos básicos e as políticas públicas federais que protegem e promovem a igualdade entre homens e mulheres,2 é imprescindível que ajudemos os profissionais responsáveis por políticas de inclusão nas empresas a usar argumentos e estatísticas que possam demonstrar que ações afirmativas têm resultados tangíveis. Até mesmo como reflexo da maneira pela qual a nossa sociedade se organiza, dando preferência aos ganhos econômicos sobre outros valores, a construção desse tipo de conhecimento contribui inegavelmente para o avanço da agenda de empoderamento de mulheres econômica e politicamente.3 Nos últimos anos, alguns estudos têm tentado demonstrar a correlação entre práticas de inclusão e resultados econômicos para as empresas. Também o gerenciamento da diversidade tem sido debatido. Destacam-se o artigo “Gerenciando a Diversidade Cultural: experiências de empresas brasileiras”, de Maria Tereza Fleury, e o relatório do Banco Mundial Igualdade de Gênero e Desenvolvimento (2012). Dos Estados Unidos, destacam-se Diversity in the Workplace: Benefits, Challenges, and the Required Managerial Tools, de K.A. Green e outros (University of Florida, 2003); The Law and Economics of Critical Race Theory (Yale, 2003) e What Exactly is Racial Diversity? (UC Berkley, 2002), ambos de Devon Carbado e Mitu Gulati. Em suma, o que esses estudos nos mostram é que há ainda muitas práticas de discriminação nas empresas e que a diversidade vista somente como uma quota numérica não resolve os problemas, gerando pouco valor. As práticas de discriminação podem ser diretas e claras, como o assédio sexual, ou mais veladas e estruturais, como o que poderíamos chamar de síndrome da secretária. A síndrome da secretária refere-se ao fato de que a mulher, por sua relação com a maternidade e por seu papel social construído, tem sido associada a alguém com maior generosidade e talento para cuidar. Muitas vezes, por consequência, ela acaba engessada nas posições de servidão, sendo esquecida quando, por exemplo, abrem-se vagas para cargos gerenciais e executivos. Os estudos mostram também que as práticas de inclusão ajudam a empresa a observar esses hiatos e a lucrar com isso. Especialmente, quando ela adota programas mais robustos que vão além do cumprimento de uma meta numérica, buscando desenvolvimento profissional, criação de grupos de afinidade para reduzir preconceitos e combater a discriminação, consulta às mulheres trabalhadoras sobre os produtos das empresas, ouvidoria e suporte no retorno da maternidade. Uma crítica pertinente a dois dos estudos acima mencionados (o de Maria Tereza Fleury e o de K.A. Green e outros) é que eles optam por não ativar os argumentos baseados em leis e em direitos, nem a trajetória histórica que impulsionou avanços na redução das desigualdades, para falar sobre gerenciamento da diversidade. Com essa postura, perde-se a oportunidade de construir uma agenda de igualdade nas empresas e de maior produtividade econômica, baseada em direitos conquistados. Também se perde a oportunidade de melhorar os marcos regulatórios e conquistar novos direitos, contando com o envolvimento das empresas. A mesma crítica serve aos movimentos de defesa de direitos e às organizações da sociedade civil que têm se mantido distantes desses novos modelos de pesquisa e de discurso. Temos de construir pontes que permitam o diálogo entre os dois discursos –o econômico e o de defesa de direitos – e os agentes que tradicionalmente os representam. Programas de inclusão são “eticonômicos” Enxergar o resultado econômico como um produto colateral do cumprimento e realização de direitos de mulheres e de homens deve ser o caminho para estimular as empresas a realizar programas de igualdade de gênero. A igualdade entre homens e mulheres, nesse sentido, não pode ser entendida apenas como boa prática, mas como produto de lei, de dever e de direito de todos. Se os programas de inclusão forem assim entendidos pelas empresas que os desenvolvem, as ações afirmativas, assim como outras ações relacionadas à agenda da sustentabilidade, têm maiores chances de dar certo, de ser de longo prazo e de gerar melhores resultados para as empresas.4 A conclusão desse texto, portanto, é que podemos e devemos defender os programas de inclusão corporativa pela visão que combina ética e economia, uma visão “eticonômica” das coisas. Entretanto, precisamos entender melhor o que isso significa e como reflete na atuação das empresas que adotam o cumprimento da agenda de direitos humanos e trabalho decente conquistados. Uma atuação que aproveita bem seus talentos, que não discrimina por classe, gênero ou raça, que traduz a diversidade em melhores serviços e em produtos que atendam melhor necessidades específicas etc. é uma atuação mais inteligente. A atuação “eticonômica” passa necessariamente pela inclusão de mulheres, mas ultrapassa o âmbito das ações afirmativas. Está relacionada com a sobrevivência do negócio e com a construção de uma sociedade mais justa e sustentável. * Especialista em direitos humanos, Camila Morsch é assessora da Presidência do Instituto Ethos e do Grupo Nacional Assessor da ONU Mulheres. Agradece as contribuições a este texto de Mariana Parra e Gabriela Rodrigues dos Santos. _______________ NOTAS 1 Para saber mais sobre a cronologia dos avanços e sobre o marco regulatório, acesse o site do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (Niem), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 A igualdade entre homens e mulheres também é direito dos homens. Esse direito do homem à igualdade pode ser entendido assim: 3 Uma análise sobre o comportamento sociocultural moderno, que sobrevaloriza ganhos econômicos ou não enxerga uma conexão natural entre fundamentos de justiça e benefício coletivo, vai muito além do escopo dessa discussão. A intenção neste texto é apenas combinar os dois discursos por um olhar convergente, hierarquizando-os. Apresentei uma ordem aos argumentos que, a meu ver, faz sentido tanto para as empresas quanto para o movimento feminista e de defesa de direitos. Aplicada ao mercado de trabalho, a perspectiva feminista das coisas (que significa uma perspectiva sensível às questões que afetam, de maneira específica ou exacerbada, as mulheres) apresenta uma alternativa pela qual podemos ilustrar formas mais justas e eficientes de organização nas empresas e, a partir disso, novas oportunidades de negócios. 4 Para saber mais sobre os mitos e os benefícios das ações afirmativas no contexto dos EUA, país em que o histórico mais longo dessas políticas permite uma análise longitudinal mais consistente, veja a série Os 13 Mitos sobre as Ações Afirmativas, série do African American Policy Forum (AAPF) e do Public Broadcast Service (PBS). _______________ |
Fonte: Geledés Instituto da Mulher Negra
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