De escarpin, botina ou sapatilha, o poder será substantivo feminino em 2013. Como nunca antes. Veteranas em universos dominados pela testosterona, elas abrem novas fronteiras. Dalva Carvalho, na Marinha, Cynthiane Maria da Silva Santos na PM, Leila Maria Carrilo Marianao e Letícia Sardas na Justiça, e Márcia Pitta, na Polícia Civil, estarão no comando no ano que vem. Todas, com exceção da corregedora Márcia, que segue caminho aberto pela chefe de Polícia Civil, Martha Rocha, serão as primeiras mulheres na chefia máxima de suas instituições. É com a História que a primeira contra-almirante do país explica sua ascensão. – Tem um ciclo que está se fechando agora. A mulher só começou a votar em 1932 no Brasil. Depois, foi para as universidades. É natural que agora esteja alçando esses postos mais altos – teoriza Dalva. É ciclo e tendência. Pesquisa do Instituto Sophia Mind, especializado no universo feminino, indica que, em dois anos, aumentou de 30% para 43% o percentual de mulheres que chegaram a cargos de liderança. Também cresceu o índice das que dizem ter ambição de ascender: de 37%, em 2010, para 46%, em 2012. Ecos da eleição de Dilma Rousseff à presidência? Outra pesquisa deste ano mostra que 74% acham a escolha de uma mulher para o comando do país uma conquista feminina. – É como ganhar um espelho, uma inspiração. É de fato um momento inédito – analisa Isabela Portella, coordenadora de pesquisa do Sophia Mind. Nas páginas a seguir, são elas que estão com a palavra. Na verdade, elas estão com tudo.
Dalva CARVALHO contra-almirante da marinha ESTILO.”Ando arrumadinha. Não sou muito vaidosa, mas tem coisas de que faço questão. Tudo muito discreto. Não sou de usar brincos grandes, por exemplo. Não consigo me gostar assim”SAUDADE.”Lembro que a gente (ela e o marido, Rodolfo, já falecido) ia para a cozinha fazer comida quando eu chegava do trabalho. Hoje vou pouco” Contra-almirante, assim, sem a flexão de gênero, é a inédita patente da anestesista Dalva Maria Carvalho Mendes, de 56 anos. Alçada ao posto máximo de uma mulher na carreira militar – e, ato contínuo, à galeria de ícones femininos do país -, a carioca tímida, de vaidade discreta e voz pausada, enfrenta dias de celebridade. Desconfortáveis, diga-se. A adaptação ao assédio é a fragilidade mais evidente da mulher mais forte das Forças Armadas. A platina, com as insígnias que atestam seus méritos, ilustra, com símbolos, sua trajetória na Marinha, centrada na rígida rotina administrativa. Na véspera da entrevista para a Revista O GLOBO, este mês, participara de um evento organizado pela revista “Newsweek”, em São Paulo, em que se viu diante das mulheres mais poderosas do mundo. – A Condoleezza ( Rice, ex-secretária de Estado americana ) estava lá – lembra ela, com indisfarçável alegria de fã. Ela guardou o convite para mostrar à mãe, que mora na Região dos Lagos. – Todo mundo quer tirar foto comigo. Fico meio desconcertada. Tenho uma personalidade discreta. É da profissão. O anestesista não é um popstar – explica ela, que recebeu uma homenagem especial da presidente Dilma no último dia 20 e ainda se mostra surpresa com a comoção que causa a cada aparição com seu uniforme, exemplar único no país. A história feminina na Marinha se mistura à trajetória da almirante Dalva, ou Estrela Dalva, como chamam hoje suas colegas de turma. Ela estava lá, em 1981, entre as primeiras 202 oficiais a ingressar nas Forças Armadas. A Marinha foi a primeira delas a abrir seus quadros para as mulheres. Foi o maior efetivo que já entrou na corporação. Era ela uma das oficiais do “pelotinho”, o pequeno pelotão de quatro grávidas que, com bata-uniforme, desfilaram no dia da formatura. Depois de 30 dias interna, aquartelada, logo após a entrada na Marinha, as meninas foram para casa. Resultado: casada, a então aspirante voltou esperando o primeiro filho, Carlos Eduardo Carvalho Mendes, hoje com 30 anos. – Nadar, eu nadei. Mas a gente só podia caminhar, não corria. Não havia uma legislação específica naquela época. Aí ficou aquele impasse: o que fazer? O pessoal permitiu que ficássemos. O caminho desbravador é relatado em detalhes pela colega de turma Sheila Aragão, capitão de mar e guerra. – Nós ganhamos logo de cara um saco de roupas enormes, fora do nosso tamanho. Em 24 horas, já estávamos com perfil de militar – lembra Sheila, a primeira a tosar os cabelos, na altura da gola do uniforme, num barbeiro. – Achei que seria um Jambert, mas foi num cubículo mesmo – conta ela, autora do livro “mulheres a bordo, 30 anos da mulher militar na Marinha”, em parceria com a capitão de fragata Helena Maria Peres. Dalva sempre preferiu o “cabelo quase nos ombros”. Mas, com o dia a dia nos centros cirúrgicos, optou pelos fios presos. Um leve blush. Batom quase invisível. Ela suspira ao lembrar que teve que trancar a academia, que frequentava duas vezes por semana. Fazia musculação. – Eu ando arrumadinha. Não sou muito vaidosa, mas tem coisas que faço questão. Tudo muito discreto. Não sou de usar brincos grandes, não consigo me gostar assim. Com o cabelo na altura dos ombros, às vezes eu parecia um espantalho – resume-se. A história da contra-almirante Dalva com a Marinha começou quando criança. Seu pai, metalúrgico, tinha uma traineira e a levava para pescar nas águas da Ilha do Governador ou da Barra da Tijuca. – A gente pescava muito siri, fazia arrastão. Até hoje acho relaxante – diz a mais poderosa das marinheiras. Viúva há seis anos, Dalva deixa escapar uma lágrima ao lembrar de Rodolfo: – Lembro que a gente ia para a cozinha fazer comida. Hoje não gosto mais de ir. Dalva ascendeu ao terceiro posto mais importante da Marinha por decreto da presidente Dilma Rousseff do dia 23 de novembro. Os critérios da escolha misturam antiguidade, mérito e qualificação. Dalva foi chefe de clínica e diretora de dois hospitais. O decreto segue o protocolo militar. E não flexiona o nome do cargo em função do sexo de quem o assume. No mundo civil é diferente: a “presidenta Dilma”, na lei 12.605, de 3 de abril deste ano, determina a obrigação da flexão para “nomear profissões ou grau em diplomas”. Dalva, assim, não precisou virar contra-almiranta.
Cynthiane Maria da Silva Santos Tenente-Coronel DA PM VAIDADE. “Do cabelo, fiquei desapegada” (ela raspou com máquina um no treinamento do Bope)FUNÇÃO MÃE. “Não pense que não vou ao supermercado, que não tenho que cuidar da casa. Vou à reunião de escola, por exemplo. E sou motorista também. A mamãe leva, acorda de madrugada para buscar (o filho)” Primeiro, Pocahontas perdeu as tranças. A máquina um levou todas as madeixas de Cynthiane Maria da Silva Santos, há 13 anos, quando fez os cinco meses de treinamento do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar). O filho, Andrei, autor do apelido, estranhou, mas curtiu depois que Cynthiane disse que os dois ficariam iguais. Foi um período de treinamento intenso no cerrado, numa turma em que era a única mulher. De 42 que tentavam ser “caveiras”, 20 pediram para sair. Não ela. Hoje, aos 16, Andrei a chama de madame, galhofa inspirada no curso de francês que está fazendo. E madame agora está no topo. É a primeira mulher a comandar uma tropa de elite no país, o Batalhão de Choque da PM do Distrito Federal. A hoje tenente-coronel lembra da estratégia para manter um quê de feminino em meio a pura testosterona: – Do cabelo, fiquei desapegada. Mas meu corpo mudou muito. Fiquei muito musculosa. Sou magrinha, mas o músculo aparece muito fácil. Imagina careca e musculosa… Eu ia para casa, colocava um vestido, argolas gigantescas, para parecer que era mulher, e passava batom. Manter intocável a vaidade é mais um dos desafios que Cynthiane se impôs. Depois da fase de Bope, garante, essa preocupação ficou ainda mais forte. – Toda mulher é muito vaidosa, independente da aparência. Sempre se cuida. Faz as unhas, coloca brinco. Eu tenho tudo isso. E depois dessa fase da minha vida, eu fiz questão – conta. Rabo de cavalo e pele irretocável, a tenente-coronel comandou no começo de dezembro uma reintegração de posse numa cidade-satélite do DF. São situações extremas, que pedem ações milimetricamente calculadas. A comandante transmite firmeza, mas também uma certa doçura. Diz que considera novos filhos os 400 integrantes de sua equipe. E a mãe de Andrei não descansa. A função de comando não a tira do front doméstico. – Não pense que não vou ao supermercado, que não tenho que cuidar da minha casa. Vou à reunião de escola. E sou motorista. A mamãe leva, acorda de madrugada para buscar. Tem os castigos, as proibições – resume. O estímulo para entrar na polícia, Cynthiane, uma das quatro filhas de um militar do Exército, teve do pai. Durante o treinamento no cerrado, depois do corte radical, feito por opção própria, ela disse que teve certeza de que não desistiria. Tinha que desenvolver estratégias para as contingências mais básicas, como ir ao banheiro. Que era no mato mesmo. – Quando terminei o curso, disse que queria ser mulherzinha, queria ter outro filho. O ano que passou no Timor Leste, numa missão de paz da ONU, foi ainda mais complexo. A comandante lembra que chorava dia e noite de saudade do filho, mas ganhou dividendos profissionais. Ligava diariamente para Andrei. A diferença de 12 horas de fuso horário dificultava ainda mais a comunicação. – Eu ligava às vezes e não conseguia falar. Foi um drama na minha vida. Mas era uma coisa que queria muito, foi um desafio. Ele tinha um aparato familiar muito bom, mas sentia muito a minha falta. Ao entrar na academia como oficial, em 1983, Cynthiane convivia com três mulheres e 64 homens. Ainda hoje, a tropa feminina da PM do DF não chega nem aos 10% previstos para a instituição. Ela explica que delineou sua carreira para chegar ao posto em que está desde 28 de novembro. Daí o curso de caveira. Para a tenente-coronel, os tempos são de quebrar antigos paradigmas. – É resultado da evolução das instituições. Somos capazes, competentes, iguais – defende Cynthiane, que considera os pilares do militarismo (hierarquia e disciplina) aliados na percepção de que comando não tem sexo. Na PM do DF, há mulheres há 29 anos. No batalhão da tenente-coronel, são 12, que convivem com 200 homens. – No início, elas deviam ser meio óvnis. Hoje, posso afirmar que a tropa já está completamente adaptada. Nessa unidade, que nunca nenhuma mulher veio antes comandar, deve ter havido um estranhamento, mas não há falta de respeito de jeito nenhum. PAPEL FEMININO.”Antes, a ideia é que se tivesse um emprego com poucas horas, porque a grande função da mulher era fazer feliz o marido. Você não se identificava como pessoa. Era alguém para fazer alguém feliz”HOBBIES.”Adoro artes, adoro ler, adoro costurar. Tenho uma paciência de Jó. Só não tenho mais tempo. Na aposentadoria, vou ter tanto programa, tanta coisa para fazer quanto isso aqui” O prédio no Centro do Rio onde a desembargadora Leila Maria Carrilo Mariano despachava, no último dia 7, era por si só a testemunha de uma guinada histórica. Quando ele foi construído, em 1887, a vida da mulher brasileira era ainda regida por leis rígidas, que definiam textualmente: “Compete ao marido o direito de exigir obediência da mulher, a qual é obrigada a moldar suas ações pela vontade dele, em tudo o que for honesto e justo.” Até agosto de 1962, a lei definia que a mulher deveria pedir autorização ao marido para trabalhar. Foi isso que Leila fez quando se casou pela primeira vez, em 1963. – Meu marido consentiu que eu fizesse Direito. Eu queria Arquitetura. Ele achava que tinha feito muito ao me deixar fazer faculdade – lembra Leila, nos últimos dias como presidente da Escola de Magistratura. Será ela a primeira mulher a ocupar, a partir de 4 de de fevereiro, o posto de presidente do Tribunal de Justiça do Rio. Leila – uma beldade em seus 15, 20 anos – viveu os tempos dourados do Rio. Filha de uma costureira gaúcha e de um soldado da PM, a moradora de Bonsucesso passou entre as mais bem colocadas no Instituto de Educação. Em 1979, tornou-se juíza. Ceramista amadora há 22 anos, quando teve um câncer, dedicou os sábados de novembro a estudar uma peça infantil com a neta, de 7 anos. Chegou de um compromisso, na véspera da entrevista, diretamente para a estreia, no Jockey Club. – Na Justiça, daqui a pouco, os homens vão precisar de cota…- brinca.
Márcia Pitta Corregedora da Polícia Civil figurino.”Gosto de me cuidar, de ir às lojas. Acho muito importante você se apresentar bem. Mas na posse foi corrido. Peguei uma roupa no armário e vesti” FAMÍLIA.”Tenho um grande companheiro. Ele ficava com a minha filha nos meus plantões, em Natal, Ano Novo, sem problema” Márcia Pitta convocou uma espécie de conselho familiar ao receber a convocação para se tornar corregedora geral. Não é dos cargos mais simpáticos. A advogada de voz tranquila, desde 1993 delegada, está à frente de uma espécie de polícia da Polícia Civil no Rio. Tomou posse em novembro. – Eles acharam o máximo – conta ela. – O corregedor não é exatamente a pessoa mais amada da instituição. Aos 55 anos, aluna de pilates, evangélica, Márcia tem uma rigidez quase desmentida pela estrutura física delicada. Conta em detalhes a última ameaça de morte que recebeu, quando trabalhava nas comissões de inquérito da Civil. Estava num shopping, recebeu uma ligação, e alguém disse: – Doutora, chegou um Disque-Denúncia aqui dizendo que vão matar a senhora. E vão atropelar. Márcia encara como parte do trabalho. O maior obstáculo veio no começo. As delegacias não tinham sequer banheiro feminino. A nova corregedora gosta de treinar tiro, mas de praticar por esporte. Nunca precisou matar ninguém. E não anda sem sua carteira de policial. Mas evita, no entanto, mencionar que é policial em locais como hotéis, lojas etc. Quando conta, ainda há frisson: – Há uma mística, um charme, em torno da profissão. Quando digo o que sou, junta todo mundo em volta. Ainda existe aquele estereótipo de delegada masculinizada, truculenta. E não é nada disso.
Letícia Sardas presidente eleita do TRE-RJ CANTADAS.”Evidentemente que todo mundo leva algumas cantadas. Mas aqui dentro temos critérios muito certos para promoção e remoção”TEMPO x BELEZA. “Esse bullying sofri mais aqui dentro com as mulheres. Eu sempre fui vaidosa, sempre gostei de andar bem vestida. Elas diziam: “Como você tem tempo?!” Eu dizia: “Tenho filho, mãe, casa, cachorro. E dá tempo” Quando jovem, Letícia Sardas tinha uma aspiração: ser mãe de 9 filhos. Sobrinha de 23 tios, apenas por parte de pai, a então estudante do antigo curso Normal cozinhava e costurava “muito bem”, segundo descrição da própria. Foi nomeada professora por conta do bom desempenho na escola. E despertou para o Direito por influência de um cunhado. Na faculdade, surgiram novas perspectivas. – Você está preparada para ser mandada pelo marido, e de repente esbarra em um movimento cultural de libertação feminina. A pílula foi uma coisa fantástica. A desembargadora é uma das quatro filhas de um barbeiro com uma dona-de-casa – que se tornou dona de salão depois de viúva. Até morrer, aos 96 anos, no ano passado, toda vez que algo de ruim acontecia, Noelina, a mãe, repetia uma frase que virou mantra para Letícia: “Passa o batom e levanta a cabeça.” Saltos altíssimos, vestido justo, Letícia, será, aos 67 anos, a primeira mulher nos 80 anos de instituição a assumir a presidência do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Rio. Não é certo ainda se comandará as próximas eleições. Vice do atual mandato, ela completará o biênio previsto para o cargo daqui a oito meses, quando ocorrem novas eleições. Ela lembra que seu concurso para juíza, há 30 anos, foi o primeiro a ter uma “enxurrada de mulheres”. Novos tempos, nem sempre bem aceitos. Em um juri em Itaguaí, em que já atuava como magistrada, com toga e tudo, um réu perguntou onde estava a juíza. – Ele disse que não admitia ser julgado por uma mulher. Eu disse que não haveria jeito. Tivemos que amansá-lo. |
Fonte: O Globo
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