Congresso Nacional viveu em 2019 um aumento das vozes femininas na política, como resultado da primeira eleição em que houve repasse de 30% do Fundo Eleitoral para candidaturas de mulheres. De 10% em 2018, elas passaram a ocupar 15% das cadeiras nas duas Casas Legislativas (Câmara e Senado). Apesar de ainda ser um número pequeno, considerando que mulheres são 52% do eleitorado brasileiro, esse aumento já rendeu frutos: em 2019 o Congresso viu um boom de projetos de lei que visam garantir a maior participação das mulheres na política, segundo levantamento do Elas no Congresso, plataforma de monitoramento legislativo da Revista AzMina.
Foram 19 projetos propostos, sendo que nos anos anteriores eles não haviam passado de sete por ano. E a maior parte (68%) deles são de autoria de deputadas e senadoras.
Para Drica Guzzi, do Movimento Vote Nelas, esse aumento também tem a ver com um boom de informação sobre a participação feminina na política que incentivou o debate. “Tivemos mais dados, mais núcleos de pesquisa acadêmicos e independentes fazendo pesquisas e alimentando essa educação política e o feminismo”, explica.
“Quando pedimos mais mulheres na política, estamos pedindo menos homens”
Elas no Congresso analisou a produção legislativa de 2011 a 2019 sobre vários temas: violência contra a mulher, Lei Maria da Penha e direitos reprodutivos e sexuais, por exemplo. A maior parte deles tem como autores deputados e senadores homens. Mas quando o tema é mais mulheres na política, o quadro é outro. Mais da metade dos projetos são iniciativa de mulheres.
E mais: organizações que atuam pelos direitos das mulheres analisaram os 18 projetos de 2019 sobre o tema (consideramos apenas os PLs com autoria identificada e excluímos o que foi retirado pelo própria autora). Enquanto apenas seis deles foram criados ou co-criados por homens, mulheres participaram da autoria de 12 projetos (alguns têm autores de ambos os gêneros). Entre os projetos propostos por homens, 33% são desfavoráveis ao avanço dos direitos das mulheres, já entre os de autoras mulheres, somente 25% deles foram considerados como retrocessos.
A explicação desse contraste pode estar no medo da perda de espaço por parte dos congressistas homens. “Quando a gente pede mais mulheres na política, a gente está pedindo menos homens. O número de cadeiras não vai mudar. Há cadeiras que estão garantidas lá há gerações”, explica Hannah Maruci, doutoranda e mestre em ciência política e articuladora do movimento Mais Mulheres na Política.
A deputada Dorinha Rezende (DEM-TO) coordenadora da bancada feminina na Câmara, ilustra isso com um exemplo. Em 2015, a Câmara dos Deputados rejeitou a criação de cotas para mulheres nos legislativos federal, estaduais e municipais. O projeto previa a reserva de cadeiras, que subiria de 10% a 15% em três legislaturas. Faltaram 15 votos para a aprovação da reforma política.
“Pressionados, os deputados chegaram a fazer gravações apoiando a medida, mas imaginando que a gente não tinha chance. Depois do dia da votação, a gente escutava no plenário: ‘Quase que elas conseguiram, se eu soubesse que teria esse risco eu não teria apoiado”, conta.
Desde 2011, partidos como Cidadania, MDB, PCdoB, PDT, Podemos, PR, PSOL, PT e Rede só apresentaram projetos favoráveis sobre o tema. Já PP, PPS, PROS, PSD e PSDB só apresentaram projetos desfavoráveis.
As divergências da bancada feminina
Se está claro que são as mulheres que querem maior participação feminina na política, os caminhos para isso não são um consenso nem mesmo entre a bancada feminina. Primeiro, há uma divergência entre as cotas de candidatura e a reserva de cadeiras nas casas legislativas. As primeiras estabelecem um percentual mínimo de candidatas que os partidos devem lançar e apoiar para a disputa de cargos, enquanto a segunda estabelece a reserva de um mínimo de vagas para mulheres eleitas.
A reserva de cadeiras é o que propõe um dos projetos de lei do movimento Mais Mulheres na Política, uma iniciativa criada pelo Ministério Público e organizações da sociedade civil. A ideia é reservar para mulheres 50% das cadeiras das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas Estaduais e Câmara dos Deputados, sendo metade delas para mulheres negras.
“Não existe uma decisão final sobre isso, mas uma medida urgente é passar a garantir cadeiras e não ‘apenas’ candidaturas. Quer dizer, deixar de garantir apenas a corrida e passa a garantir o resultado. Observando, dessa vez, a variável raça para que mulheres negras sejam incluídas nesse processo de maneira efetiva”, afirma Laura Astrolabio, advogada especialista em Direito Público e integrante do movimento Mulheres Negras Decidem, que participou da construção dos PLs.
No entanto, nem a questão das cotas de gênero para as candidaturas está superada. No ano passado, duas propostas resultaram em divergências dentro da bancada feminina na Câmara. Os projetos de lei 2996/2019 e PL 4130/2019 diziam instituir a cota, mas na prática acabavam com ela. Eles mantinham a previsão de no máximo 70% de candidaturas de um mesmo sexo, mas permitiam que as vagas restantes, se não forem preenchidas com candidatos de sexo diverso, ficassem vazias. Ou seja: no fim os homens poderiam ser mais de 70%.
A autora dos PLs, deputada Renata Abreu (PODE-SP), afirmava que a obrigação de preenchimento dos 30% das candidaturas causava uma “guerra de sexos”. Segundo ela, como os partidos não conseguiam preencher o percentual, precisavam retirar a candidatura de homens ou “obrigar” mulheres a serem candidatas.” A maioria da bancada feminina foi contra a proposta e os dois projetos acabaram sendo retirados de tramitação pela deputada.
O que acontece, segundo a deputada Dorinha, é que há congressistas que não querem ter sua imagem vinculada à eleição por cotas. “Muitas das mulheres eleitas que não apoiam as cotas caem em uma armadilha que é dizer que não precisam de favor ou não querem ser tratadas de maneira diferenciada porque chegaram lá por seu próprio mérito, mas essa visão reforça falsas dicotomias, como se tivéssemos condições iguais”, explica. “A mulher não pode ter vergonha de defender cota, entendendo que ela reflete uma desigualdade na relação de poder.”
Combate à fraude ou à cota?
As divergências sobre a política de cotas cresceram também devido às denúncias sobre as chamadas “candidatas-laranja“, que seriam candidatas de fachada – entram nas eleições sem a verdadeira intenção de concorrer, ou são inscritas sem seu conhecimento, para burlar a lei de cotas e para que os recursos do fundo de campanha sejam repassados a candidatos homens.
No ano passado, uma pesquisa de professoras de universidades nos Estados Unidos e no Reino Unido apontou que 35% de todas as candidaturas de mulheres para a Câmara dos Deputados na eleição de 2018 no Brasil não chegaram a alcançar 320 votos. Seriam candidaturas de mulheres que sequer chegaram a fazer campanha.
Esses casos serviram de justificativa para projetos que visam impedir ou punir as fraudes das cotas, mas que representam retrocessos para as mulheres, segundo as organizações parceiras do Elas no Congresso que avaliaram as propostas.
É o caso do PL 1256/2019, de autoria do senador Angelo Coronel (PSD/BA), que pretendia alterar a Lei Geral das Eleições, “para revogar os percentuais mínimo e máximo de candidaturas de cada sexo a serem registradas pelo partido ou coligação”. Em sua justificativa, o senador afirmava que “contrariamente ao pretendido, a medida não tem alcançado efeito prático: a participação de mulheres nas últimas eleições não se mostrou diferente do patamar histórico”. Ele ainda dizia que mulheres estavam sendo “compelidas a participar do processo eleitoral apenas para assegurar o percentual exigido”. O projeto de lei foi rejeitado no Senado.
Vale destacar que seus argumentos são falsos: o número de mulheres eleitas em 2018 aumentou 52,6% em relação a 2014.
Para combater as fraudes, outros projetos têm como objetivo fortalecer os mecanismos de responsabilização pelo descumprimento da cota de gênero nas candidaturas, mas desconsideram eventuais efeitos negativos que podem recair sobre candidaturas de mulheres. “Quando se caça uma chapa, as mulheres são caçadas também. Ela quer se eleger, recebe promessas do partido, e quando vai denunciar que sua candidatura parece ser de fachada, o passivo é a cassação da chapa inteira, e ela também responder por isso”, explica Hannah.
Onde estão as mulheres negras?
Ainda que o debate sobre a participação de mulheres na política tenha se aquecido, a interseccionalidade com raça ainda é pouco debatida no Congresso. Desde 2011, foram identificados quatro projetos que não tratam especificamente da candidatura e eleição de mulheres, mas de candidatos negros e negras. “Isso se dá pela forma equivocada de olhar para a categoria mulher como se fosse uma categoria universal, quando não é. Somos diversas, com necessidades diferentes e somos tratadas de forma diferente quando vivemos num país estruturalmente racista. A mulher negra carrega a opressão de gênero e a opressão de raça”, afirma Laura.
A advogada explica que isso acontece também na política. “Na construção da política pública existente, que é a garantia de cotas para mulheres nas candidaturas, não existiu a observação da variável raça. Não é a toa que das 77 parlamentares mulheres que temos na Câmara dos Deputados, apenas 13 são negras, mesmo que mulheres negras representem o maior grupo demográfico brasileiro, 28% da população.”
Fonte: Revista AzMina