Promotora de Justiça Valéria Scarance traz novo olhar em livro que cita Lei Maria da Penha e Feminicídio
A promotora de Justiça do Estado de São Paulo Valéria Scarance propõe um novo olhar sobre a violência contra a mulher no livro ‘Lei Maria da Penha: O Processo Penal no Caminho da Efetividade: Abordagem Jurídica e Multidisciplinar. Coordenadora-geral da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), Valéria Scarance transformou um trabalho multidisciplinar em um guia de ajuda a vítimas de agressão. A Copevid trabalha com ações de prevenção e que estimulem as denúncias. “A violência contra a mulher tem um núcleo comum no mundo todo: o silêncio da mulher”, afirma a promotora. Valéria Scarance afirma que uma pesquisa de 2015 indica que 43% das mulheres no Brasil já sofreu ou sofrerá alguma violência ao longo da vida: física, sexual, psicológica, moral. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2014, revela que no Brasil morre uma mulher a cada 90 minutos, só por violência. “A aprovação da lei do Feminicídio foi muito importante. Uma ação afirmativa”, diz. Em março deste ano, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que classifica o feminicídio como crime hediondo. A legislação modificou o Código Penal, incluindo o crime entre os tipos de homicídio qualificado. O texto prevê o aumento da pena em um terço se o assassinato acontecer durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; se for contra adolescente menor de 14 anos ou adulto acima de 60 anos ou, ainda, pessoa com deficiência. A pena é agravada também quando o crime for cometido na presença de descendente ou ascendente da vítima. “O enfrentamento da violência contra a mulher envolve repensar nossos valores e nossa história. Se nós queremos mudar nossa realidade de 7º país no mundo no índice de violência contra a mulher, temos que entender que é um problema de todos nós, afeta a sociedade como um todo”, destaca a promotora. LEIA A ENTREVISTA DA PROMOTORA NA ÍNTEGRA ESTADÃO: Nossa sociedade ainda é muito machista? VALÉRIA SCARANCE: Muito machista, muito conservadora. Ainda se julga o comportamento da vítima, a própria vítima. Aqueles ditados ’em briga de marido e mulher, não se mete a colher’ e ‘não sabe por que bate, mas sabe por que apanha’ são visto com frequência por grande parte da população. Raras vezes as mulheres vítimas de violência encontram apoio em amigos, parentes. Ainda existe muito preconceito. Não há identidade com a vítima. Muitas vezes cria-se uma identidade com o agressor. Como se ele tivesse um amor passional. ESTADÃO: Qual é a origem do livro? VALÉRIA SCARANCE: Ele é fruto da minha tese de doutorado. Foi uma pesquisa multidisciplinar sobre a violência contra a mulher. Ha várias inquietações e questionamento sobre este tema. Por que a vítima se mantém em silêncio? Por que retoma o relacionamento com o agressor? Qual o efeito transformador do processo na vida da vítima, do agressor, da família e da sociedade? A finalidade deste livro é trazer um novo olhar sobre a violência contra a mulher, desmistificando algumas pré-concepções de que a vítima que sofre violência já é vulnerável, de que mulheres de um nível social diferenciado ou com estudo não sofrem violência, que homens com estudo não praticam violência e como atuar diante desta realidade. ESTADÃO: Como foi feita a pesquisa? VALÉRIA SCARANCE: Eu trabalho com violência contra mulher há cinco anos. Neste estudo, usei pesquisas que já haviam sido efetuadas no tema. Pesquisei a legislação do mundo todo para tentar compreender a violência contra a mulher. O que essa pesquisa revela? A violência contra a mulher tem um núcleo comum no mundo todo: o silêncio da mulher, a retratação da mulher, o fato de que ela retoma o relacionamento com o agressor e muitas vezes morre. ESTADÃO: Algum país que seja mais perigoso para a mulher? VALÉRIA SCARANCE: O país que está entre os mais perigosos é o Afeganistão. Existe uma lei em defesa das mulheres, mas a legislação não é eficiente para prevenir a violência. É comum o casamento de crianças, há uma cultura muito forte enraizada. As mulheres não conseguem exercer seu direito de cidadania, muitas vezes. É considerado um dos países mais perigosos para elas viverem. ESTADÃO: Tem algum que seja o melhor? VALÉRIA SCARANCE: Em todos os países, hoje, há situações de violência. A legislação considerada a melhor do mundo é a lei da Espanha, de proteção integral, que inspirou a Lei Maria da Penha. Hoje é considerada a melhor lei do mundo. Os estudos apontam que na Espanha houve um rompimento da situação da violência, uma conscientização. ESTADÃO: Como está o Brasil? VALÉRIA SCARANCE: A aprovação da lei do Feminicídio foi muito importante, em março. Uma ação afirmativa. Mas os números apontados as pesquisas são alarmantes. Entre 1980 a 2010, morreram 92 mil mulheres. Sendo que de 2000 a 2010 foram 43 mil, segundo o mapa da violência de 2012. Uma pesquisa mais recente, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 2014, revela que no Brasil morre uma mulher a cada 90 minutos, são 15 mulheres por dia que morrem nas mãos dos parceiros, só por violência. Uma pesquisa de 2015 indica que 43% das mulheres no Brasil já sofreu ou sofrerá alguma violência ao longo da vida: física, sexual, psicológica, moral. ESTADÃO: Tem pessoas que acham que violência é só estupro? Não acreditam que ser maltratada também é uma agressão? VALÉRIA SCARANCE: Com certeza. A violência física só aparece no estágio final da dominação da mulher. Já ouvi de muitas mulheres que elas só perceberam que são vítimas de violência quando aparece uma marca. Quando o homem deixou uma agressão. O homem dominador vai aos poucos, numa escalada de violência. ESTADÃO: O que leva a mulher a retomar o relacionamento com o parceiro? VALÉRIA SCARANCE: Primeiro o ciclo da violência, que acontece da mesma forma em todos os relacionamentos violentos em todos os lugares do mundo. Leonie Walker, uma americana, fez um estudo e descobriu que a violência ocorre da mesma forma. São três fases: a tensão – uma instabilidade em que ela acredita que pode controlar o homem -, a explosão – o momento da violência – e a lua de mel – ele muda o comportamento, convence a parceira, os amigos, a família que ele mudou. Mas ele volta a praticar a violência. O ciclo se repete, se repete. Com a repetição, intensifica a violência e diminui a possibilidade de reação da mulher. Por que ela não reage? Ela não consegue reagir, independentemente da profissão, do nível social. A violência adoece a mulher, psicologicamente e fisicamente. ESTADÃO: Como combater a violência? VALÉRIA SCARANCE: Uma das formas de se evitar é desnaturalizar o que foi naturalizado pela sociedade. O sexo é biológico, masculino e feminino. Ser mulher e ser homem é algo construído pela sociedade. O homem gosta de futebol, é normal que o homem tenha um relacionamento extraconjugal. Para a mulher é naturalizado que ela queira casar, ter filhos e que ela seja fiel. Essas noções, se não causam, perpetuam. A nossa própria lei, até pouco tempo atrás, menos de uma década, usava as palavras honesta e virgem em alguns crimes. Se avaliava honestidade e a experiência sexual de uma mulher. Nós já evoluímos muitos, mas há muito para mudar. O enfrentamento da violência contra a mulher envolve repensar nossos valores e nossa história. Se nós queremos mudar nossa realidade de 7º país no mundo no índice de violência contra a mulher, temos que entender que é um problema de todos nós, afeta a sociedade como um todo. Julia Affonso
|
|||
Fonte: O Estado de S. Paulo
|