Ao final de seis meses convivendo diariamente com presidiárias de Brasília, pesquisadora lança livro com o perfil de 50 detentas. Mais do que uma narrativa sobre o sistema carcerário, a obra traz as tristes histórias por trás das grades“Ela chorava em posição de procedimento. Olhos caídos, queixo no peito, o nariz fungando a parede. O colete preto amoleceu-se com a mãe, atarantou-se com a ordem de algema para trás. Os dedos compridos balançavam uma fralda branca, úmida e amassada pelo choro. “Está com o cartão de vacina?” Sim. Mas dói tanto, d. Jamila. Eu não pensei que ia doer tanto.” Foi assim que Gleice Kelly se despediu da filha Rayane na Penitenciária Feminina de Brasília. A garotinha nasceu no presídio. Aos 6 meses, mãe e filha apartaram-se. A história é uma das 50 reunidas em Cadeia – relatos sobre mulheres, escrito pela pesquisadora Débora Diniz, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e integrante do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), organização não governamental de pesquisa e ação política. Para entrar nesse universo, durante seis meses, a pesquisadora esteve diariamente na penitenciária. Obteve autorização para acompanhar os atendimentos feitos pelo Núcleo de Saúde. Não dizia nada. Só ouvia e anotava. O resultado foi uma coletânea de relatos espontâneos de centenas de mulheres. Como não poderia deixar de ser, o livro tem as histórias dos crimes – alguns brutais, como o da condenada por matar a amante do marido a facadas. A vítima estava grávida. Ela certificou-se de que a criança também não sobreviveria. Mas também há o lado humano de cada uma delas: as fraquezas, as violências sofridas, as desilusões amorosas, o abandono, a descrença em si mesma. Para o leitor, fica a certeza da ineficácia do sistema carcerário brasileiro em todos os níveis. E, antes dela, uma crítica ao Estado e à sociedade, que fecham os olhos para quem vive à margem de tudo: de renda, escola, família, emprego. “Há sistema de recuperação ou ressocialização? O que fazem as unidades de internação ou presídios? Prendem, trancam, mantêm meninas e mulheres apartadas da vida à espera do fim da sentença” O que despertou em você o interesse por conhecer a história das presas da penitenciária feminina? Minha primeira pesquisa no sistema – essa é a expressão usada pelas presas para as instituições prisionais – foi com os manicômios judiciários, instituições a meio caminho entre presídios e hospícios. Dessa experiência, escrevi livro e fiz filme. Foi daí que comecei a visitar o presídio feminino de Brasília para pesquisas acadêmicas tradicionais – fiz um censo das mulheres que ali viviam. Identificamos que uma em cada quatro delas veio de unidades socioeducativas de internação na adolescência. Depois de um tempo coletando números e perfis, entendi que precisava de outra maneira de contar as mesmas histórias: aquele era um jargão acadêmico, que falava para poucas pessoas. Importante, é verdade, mas limitado. Foi assim que resolvi ensaiar outra forma de escuta e escrita. Você tem ideia de quantas histórias ouviu nos seis meses em que frequentou o Núcleo Médico do presídio? Em um turno no Núcleo de Saúde, são atendidas, pelo menos, 10 presas. Em um dia, no mínimo, 20 histórias. Por aí, vemos que a conta é muito maior que as 50 que contei no livro, se lembrarmos que foram seis meses quase diários. Minha curadoria de histórias acendia a antena para a diversidade e a permanência dos relatos. As crackeiras são muitas no presídio, por isso suas histórias de perdição, abstinência, dentes ou filhos aparecem muitas vezes no livro. Da mesma forma, histórias de avós, que caíram em visitas a filhas, ou de Biscoito, a andarilha que terminou o livro, são eventos únicos. Como foram as primeiras sensações de dividir um espaço tão pequeno com condenadas ou acusadas de todos os tipos de crimes? Era o de habitar outro espaço da vida, com outras mulheres e experiências. A sensação era de descoberta, mas também de acanhamento – como aquele mundo poderia ser tão desconhecido para mim, mas também ser a vida de tantas, mas tantas mulheres no Brasil? O encontro perturbava meu conforto de classe, provocava as certezas de minha intelectualidade acadêmica, desafiava-me sobre como ouvir e escrever sobre o que testemunhava, como a sobrevivência daquela multidão de mulheres. No livro, você evidencia, antes da criminosa, o ser humano. Não são raros os relatos de violência – física, psicológica – sofrida por essas mulheres ainda crianças. Você esperava por isso? Os estudos sobre presídios e mulheres em instituições de vigilância mostram que elas sofrem por vários regimes de precarização da vida. A violência é um deles, mas o espanto é o quanto é um evento comum à vida das mulheres presas. O que isso nos mostra? Que o crime é um fato típico, dizem os juristas, para o direito penal, que as julga, mas que a violência, a pobreza ou o racismo são também experiências típicas para a transformação de uma mulher ainda jovem em uma presa para o sistema. Fica a sensação de que, se tivessem sido socorridas pelo Estado e pela sociedade civil, muitas delas poderiam ter tido um futuro diferente? Sim, sua pergunta toca no centro do problema. Eu, talvez, não falasse em “socorridas”, mas, se seus direitos tivessem sido garantidos desde quando crianças, muitas delas não seriam agora bandidas e banidas da vida em liberdade. Quando falo em direitos, lembro que, para protegê-los, é preciso que essas mulheres sejam reconhecidas pelo Estado como sujeitos de direito e proteções. Ao final, estamos falando de um amplo regime de desigualdade da sociedade brasileira – o presídio é só um de seus braços reguladores. Se pudesse resumir o perfil das mulheres presas, qual seria ele? É aquele que já sabemos antes das pesquisas. Anunciá-lo serve para nos assegurar que há algo de muito errado em curso: são mulheres jovens, pretas e pardas, com filhos e pouca escolaridade, trabalhadoras cujo crime foi o comércio ilegal das drogas. Em grande parte dos casos relatados no livro, as detentas são dependentes químicas e com várias passagens por instituições antes de atingir a maioridade. Na vida adulta, continuaram no crime. Isso é uma prova de que o sistema de recuperação de presos no país está falido? A verdade é que a pergunta deve ser outra: há sistema de recuperação ou ressocialização? O que fazem as unidades de internação ou presídios? Prendem, trancam, mantêm meninas e mulheres apartadas da vida à espera do fim da sentença. A droga é uma parte dessa conversa, ou seja, pensar sobre o que fazer no sistema prisional é também, abertamente, conversar sobre a política de criminalização das drogas no país. Pelos relatos, é possível dizer por que instituições para crianças e adolescentes em conflito com a lei e os presídios não cumprem o papel de punir e ressocializar ao mesmo tempo? Essa é uma das formas de entender o que chamei de itinerário punitivo da história de muitas dessas mulheres – muito cedo, são pegas pelo sistema penal e se mantêm neles por uma longa parte da vida. Mas há outra forma de entender a trajetória de reformatórios e presídios: elas vão e voltam para o mesmo espaço de risco que as levou às instituições punitivas, a quebrada da droga se mantém a mesma, dizem elas. Não se resolve os determinantes ou os regimes de precarização da vida punindo uma mulher e devolvendo-a à sociedade sem o recurso de políticas sociais amplas e refletidas. Impossível ler e não se emocionar com a dor das detentas mães no ato de entrega do filho para adoção ou para familiares. Como foram esses momentos para você? Foram momentos muito sensíveis, mas não só para mim: para a própria mulher, para a criança miúda, para os jalecos brancos e os coletes pretos. Para todas nós, aquela era uma cena de profundo desamparo, pois gritavam os sem sentidos da prisão e como aquele era um modelo de castigo ainda mais perverso para as mulheres. Por isso, costuma-se dizer, na literatura acadêmica, que há uma adicional de pena para as mulheres no sistema: a elas há ainda a dor da separação dos filhos, pois, socialmente, as relações de cuidado e de dependência são de sua responsabilidade. Em algum momento, você chorou no presídio ou sozinha em casa, ou teve medo, ou pensou em abandonar o projeto diante das histórias ouvidas no presídio? Nem choro, nem medo, nem cansaço. Como eu disse, aquele foi um encontro que me provocou acanhamento: uma profunda reflexão sobre meus privilégios sociais, pela injustiça de cada um deles, para, ao final, inquietar-me sobre a metafísica do acaso da existência. Por que elas e não outras mulheres? Mas, a cada perturbação intelectual e afetiva dessa magnitude, o resultado era sempre o mesmo: ter ainda mais vontade de ali retornar para ouvir novas histórias. Minha força não é o afeto que me imobilizaria, mas o afeto que me transformaria em testemunho do vivido e ouvido. Por isso, o livro é tão importante para mim. Por lei, todo preso tem direito a tratamento físico e psicológico, ao trabalho, ao estudo, como forma de ser reintegrado à sociedade após o fim da pena. Qual é a realidade? Isso que chamam direitos dos presos é um vasto campo de proteções legais, porém largamente negligenciado e desconsiderado no Brasil. Há um paradoxo nesse desrespeito: quanto menos cuidado for o preso ou a presa, ele ou ela estará menos preparado(a) para retornar à vida social depois da prisão. Não é por acaso que dizem que o presídio piora os indivíduos, em vez de ressocializá-los. Falar em direitos aos presos não é gritar privilégios para quem infringiu a lei – é cuidar de todos nós, eles e os que vivem aqui fora. Depois de ouvir o relato dessas mulheres, você acredita que a recuperação delas e o retorno à sociedade como pessoas de bem é possível na atual realidade do sistema carcerário e do acolhimento externo? Acredito sempre na transformação humana. O que desacredito é na prisão como instituição transformadora. São duas coisas diferentes – aquelas mulheres têm a potência para se reescreverem, precisam de garantias legais e sociais. Não é na prisão que elas terão suas necessidades protegidas. Adriana Bernardes/ Correio Braziliense
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Fonte: Agência Patrícia Galvão
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