Ministra de Assuntos Sociais, Saúde e Direitos da Mulher da França defende cotas nas empresas e diz que o acesso a salários decentes e iguais aos dos homens é a questão feminina mais urgente
Marisol Touraine não foge da briga. Num país que adora polêmicas e protestos, ela tem quase tantas frentes de batalha quanto os temas tratados por seu enorme ministério. Seus assuntos sempre mexem com a emoção e a vida cotidiana dos franceses, são daqueles rotulados como “sensíveis politicamente”. Por exemplo, a reforma da saúde contra a qual se perfilaram os médicos, a maioria homens. “Recebi ataques sexistas”, conta. Não se abalou. Filha do sociólogo Alain Touraine, o primeiro a conceituar a importância política dos movimentos gays e de mulheres, ela está acostumada ao debate de ideias. É considerada corajosa e determinada na defesa de projetos do governo, alguns que tocam na relação entre homens e mulheres no trabalho, na política, na cama e até diante da morte. “É função do Estado defender os mais frágeis”, diz. Semana passada, visitou o Brasil e deu esta entrevista enquanto os taxistas paravam o Rio por causa do Uber, protesto que já testemunhara em Paris. A senhora está liderando uma reforma na Saúde, que enfrenta enorme rejeição dos médicos, a maioria homens. O fato de a ministra da Saúde ser mulher joga um papel nisso? Estou apresentando uma lei de modernização do sistema de saúde francês. A população envelhece, temos de acompanhar os doentes crônicos em casa, dificuldades que o Brasil também tem. Fazemos isso num momento de aperto orçamentário, mas não queremos diminuir direitos. Defendo a igualdade no acesso à saúde, assumido em boa parte pelo Estado. Mudanças nunca são aceitas facilmente, mas, se eu fosse um homem, teria sido mais simples. Alguns dos meus interlocutores não esperavam me encontrar tão firme nas minhas convicções. Fui alvo de ataques, alguns deles machistas. O seu ministério trata de saúde e também de direitos da mulher. Qual é a questão mais urgente para a mulher? O acesso ao trabalho em condições de igualdade. A prioridade é permitir às mulheres ter salários decentes e iguais aos dos homens. Paga-se a vida inteira pela desigualdade profissional: se os salários forem mais baixos, as carreiras serão piores e as pensões, menores, quando se chegar à aposentadoria. A diferença salarial na França é, em média, 20%, mas, nas profissões de nível médio, os salários dos homens podem ser bem maiores do que o das mulheres. Também é a favor das cotas para mulheres nas empresas? Sou. É a maneira de permitir às mulheres chegarem a postos de responsabilidade. Tem de haver 40% de mulheres nos conselhos das empresas. Me perguntam: estas mulheres serão, todas elas, competentes? Eu pergunto: vocês nunca viram homens incompetentes em cargos de responsabilidade? Começou uma campanha contra o assédio sexual no transporte público. Havia necessidade disso? O assédio nos transportes é cotidiano, é insuportável, 100% das mulheres são alvo. É banal, mas não é aceitável. O metrô em Paris não é seguro. Não falo de agressão, mas simplesmente do fato de não poder tomar o metrô sem ser confrontada a certas atitudes e interpelações. Receber assovios na rua não é normal. Por que a senhora é contra casais gays ou héteros recorrerem à gestação no ventre de uma outra mulher? A França é completamente hostil à gestação em barriga de terceiros, é proibido e punido por lei. Trata-se de transformar o corpo da mulher em mercadoria, pagar uma mulher para gestar um bebê no seu lugar. A gravidez não é neutra, nem do ponto de vista psicológico nem físico. A dificuldade é que há crianças nascidas da gestação em barrigas de terceiros, e o debate é saber como podemos reconhecer essas crianças sem validar a “barriga de aluguel”. Elas não podem pagar toda a vida pela maneira como nasceram, não podemos criar fantasmas na República. Elas precisam ter documentos e existência civil. A Corte Europeia de Direitos Humanos não nos impõe o reconhecimento da gestação por terceiros, e a França continuará a proibi-la. Mas obriga o reconhecimento das crianças, exatamente o que o governo defende. Os deputados franceses criaram multa para os clientes de prostitutas, lei que dividiu feministas, prostitutas e médicos. Por que a senhora é a favor? O objetivo é a abolição da prostituição. Com frequência damos uma imagem de glamour, as call-girls botando anúncios na internet para ganhar um pouco mais de dinheiro. A realidade é mais sórdida e humilhante. As prostitutas estavam divididas, algumas dizem que é seu ganha-pão. Associações de médicos dizem que isso vai dificultar o acompanhamento da saúde delas. É uma preocupação que tenho também, mas a novidade dessa lei é a punição dos clientes. Trata-se de responsabilizar a sociedade: a prostituição só existe porque há clientes, portanto, é uma maneira de dizer-lhes que comprar o corpo de uma mulher não é neutro nem banal. Outro projeto de lei em debate é sobre o fim da vida. A senhora não gostou do texto final. Neste momento, existe um caso doloroso na França: um jovem está em estado vegetativo depois de um acidente, o que levou a família a se dividir entre parar o tratamento ou mantê-lo vivo. Este caso mostra que a sociedade francesa se interroga muito sobre a obstinação terapêutica, o direito de exprimir de que maneira queremos viver até o fim. O presidente quis responder a esta preocupação: está sendo votada uma lei que permite aos doentes exigir a suspensão dos tratamentos e pedir para ser sedado até a morte chegar. Isto provoca debates, mas é uma maneira de melhor levar em conta as vontades individuais dos doentes. Alguns queriam que fôssemos mais longe, reconhecendo a eutanásia e o suicídio assistido, como na Suíça. São questões que existem, mas a sociedade precisa ter tempo para evoluir lentamente. A senhora foi próxima politicamente de Dominique Strauss Khan. Depois de tudo o que aconteceu, qual o seu sentimento em relação a ele? Para ele, certamente foi um infortúnio. Ele se colocou, ele mesmo, fora do caminho político. Está atualmente em outras atividades. O Partido Socialista enfrenta o desamor da nova geração e de grande parte dos franceses. A senhora acha que os jovens ainda podem se interessar pela política? Acredita na sobrevivência dos partidos atuais? Ao contrário do que dizemos, os jovens não são egoístas, eles se engajam na sociedade, mas os partidos políticos não os fazem mais sonhar. Eles se engajam em associações, movimentos humanitários, ações coletivas e cooperativas. Os jovens compartilham o carro, o apartamento, as férias, coisas que a nossa geração não fazia. Estão preocupados com o planeta, conhecem e se preocupam com o mundo mais do que a geração anterior. Os partidos políticos aparecem como vestígios de um período dominado por expressões ideológicas e políticas. Fazer esta constatação é uma coisa, inventar o partido de amanhã é uma outra. Helena Celestino
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Fonte: O Globo
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