Filósofa francesa e professora da Universidade de Lyon, esteve no Rio para dar uma palestra sobre violência e paixão no evento Ciclo Mutações 2014.
“Tenho um filho de 10 anos e adoro fazer longas caminhadas. Faço parte de uma geração que ficou chocada com a guerra na antiga Iugoslávia e com o genocídio em Ruanda. Nos últimos anos, trabalhei em temas relacionados com a violência, acompanhando o julgamento de criminosos de guerra na Iugoslávia” Conte-me algo que não sei. O conceito de crime passional é uma invenção, uma criação judicial, feita para ajudar na defesa de criminosos, camuflando um histórico de violência contra as mulheres. Qual a ligação entre violência e paixão? Aparentemente, são duas coisas que não combinam. São dois conceitos que influenciam decisões judiciais e nossas percepções sobre suas relações. Durante minhas pesquisas, aprendi que existe sempre um aspecto humano na violência. A paixão, estritamente falando, não explica as causas da violência, mas ajuda a entender suas motivações. A violência sem paixão, por exemplo, foi usada pelos oficiais nazistas e muitos outros para justificar seus atos, sob o argumento de que estavam apenas cumprindo ordens. Então a obediência cega às ordens é um mito? Sim, sem dúvida. É uma criação jurídica para ajudar na defesa dessas pessoas. Há sempre um espaço de liberdade para interpretar ordens. Recentemente, um policial aplicou uma gravata em um homem desarmado numa rua de Nova York e não largou, mesmo com a vítima dizendo que não conseguia respirar. O homem, que era asmático, morreu na calçada. Esse seria um exemplo de tal mito? Sim, porque ele poderia ter soltado, ninguém tem ordem de enforcar alguém até a morte. Desde os julgamentos de Nuremberg, o argumento de que se está apenas obedecendo a uma ordem é falho porque é possível, dentro de uma ótica humana, saber que uma ordem é moralmente ilegal. (A filósofa alemã) Hannah Arendt cunhou a expressão “banalização do mal” após o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann por genocídio e crimes contra a Humanidade, descrevendo-o como uma pessoa que apenas cumpria ordens, sem questioná-las. Mas ela se enganou porque engoliu o argumento da defesa. Isso seria um exemplo do mito do crime sem paixão, da indiferença frente aos horrores. O recente assassinato de um jornalista americano por extremistas islâmicos na Síria também não pode ser visto como banalização do mal? Não, porque há uma motivação política e um interesse disfarçado de religião por trás daquele crime. Tudo ali foi planejado, da mise en scène à divulgação pelas redes sociais. Não foi um ato puramente insano, como parece. Ninguém faz um exército com um bando de serial killers. Há uma logística na guerra e nos conflitos. Eles parecem ser dirigidos pelo caos, mas seguem uma organização e um comando humanos. E os crimes passionais, como podem ser analisados seguindo esse raciocínio? São uma versão atualizada dos antigos crimes de honra. Buscam uma desculpa legal para justificar a dominação masculina na sociedade, onde os homens são, de alguma forma, induzidos a mandar porque há todo um sistema os apoiando. A violência quase institucionalizada contra as mulheres na Índia é cultural ou política? Muitas feministas vão dizer que é cultural, mas acredito que seja política, porque reflete não apenas uma dominação masculina, mas um poder enraizado que trata temas como os estupros dessas mulheres como algo corriqueiro. Carlos Albuquerque
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Fonte: O Globo
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