No mês em que a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) completa sete anos de vigência, uma pesquisa de opinião inédita revelou que a violência doméstica e os assassinatos de mulheres pelos parceiros ou ex estão no cotidiano da maior parte da população e, por isso, entre as principais preocupações da sociedade.
Para o juiz Álvaro Kalix Ferro, representante do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) na Coordenação da Campanha Compromisso e Atitude e presidente do Fonavid (Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), o caminho para enfrentar este problema já está traçado pela Lei Maria da Penha, uma das legislações “mais completas e avançadas do mundo”, na sua avaliação. O desafio é promover no Estado a especialização que a Lei exige, inclusive no Poder Judiciário. “Ainda há necessidade de criação de Juizados Especiais de Violência contra a Mulher em muitas comarcas do País. Outros tantos juizados estão abarrotados de serviço e precisam ser multiplicados, fatos já levantados em recente pesquisa do próprio CNJ. Afora isso, a sobrecarga enseja a necessidade de maior número de juízes e de servidores, além de melhor aparelhamento estrutural, físico. A especialização e a capacitação também são desafios a serem enfrentados”, enumera. Confira a entrevista. A pesquisa revelou que, para 86% dos entrevistados, as mulheres passaram a denunciar mais os casos de violência doméstica após a Lei Maria da Penha. Esse dado representa uma conquista destes 7 anos de existência da Lei? A Lei Maria da Penha é uma das três mais completas e avançadas do mundo e traz em seu bojo uma série de regras e mecanismos importantes na busca de se coibir a violência contra a mulher no âmbito familiar e doméstico. A criação dos Juizados Especializados, sem dúvida, fez com que fosse afastada a ideia de impunidade que havia. A especialização desses Juizados e demais órgãos, quais sejam, Segurança Pública, Ministério Público, Defensoria Pública etc., faz com que haja maior crença no Sistema de Justiça e em seus resultados.
A pesquisa revela que vergonha e medo de ser assassinada são percebidas como as principais razões para a mulher não se separar do agressor. Como o Estado e os serviços podem responder a essas duas causas de modo a contribuir para derrubar essas barreiras? A especialização e a criação de redes de atendimento são primordiais. É preciso que a mulher se sinta protegida e acolhida pelos mecanismos decorrentes da Lei Maria da Penha quando delata o agressor. Esse medo pode ser inicialmente vencido com a concessão de medidas protetivas e com a fiscalização efetiva, concreta, dessas medidas concedidas às vítimas de violência ou impostas ao agressor. Mas não se pode olvidar que esse medo é fruto de uma violência arraigada no dia-a-dia dessa mulher, o que torna essencial o trabalho dos sistemas de Saúde e Assistencial, não só a atuação especializada do sistema de Justiça. De igual modo, a vergonha, sentimento que assola parte dessas mulheres, tem que ser enfrentada de forma especializada, tanto no sistema de Justiça, quanto nos de Saúde e Assistência Social, a fim de que a mulher possa compreender a necessidade dessa denúncia como meio de conter e cessar a violência que sofre. Não só isso, mas também – e principalmente – a fim de que possa viver a plenitude de sua individualidade enquanto pessoa e sujeito de direitos iguais. Vencidos estes aspectos, é importante frisar que recente pesquisa DataSenado constatou que cerca de 37% das mulheres continuam com os seus parceiros agressores, apesar da violência sofrida. Então, afora o processo criminal que enseja, é preciso também trabalhar essas questões com a mulher, seus filhos e com o próprio agressor (art. 30 da LMP), de modo que, havendo continuidade do relacionamento, haja compreensão da visão de gênero e o fim da violência. A Pesquisa sobre Violência e Assassinatos de Mulheres apontou ainda que metade da população brasileira ainda considera que o modo como a Justiça pune esses casos não é eficiente para reduzir essa violência. O sr. poderia comentar essa percepção? O sistema de Justiça vem se aperfeiçoando, como já mencionei antes, na busca da especialização. Não há dúvida de que há muito a ser feito. Acontece que, quando se fala no modo como a Justiça pune esses casos de violência, não se pode esquecer que a Justiça age nos termos e limites da Constituição Federal e das leis vigentes. Outro aspecto importante a se dizer é que quando falha um dos componentes do sistema de Justiça, a pecha de ineficiência acaba recaindo, por vezes e indevidamente, sobre o Poder Judiciário, mesmo que não tenha qualquer correlação com essa falha, seja ela real ou apenas imaginária dentro daquele contexto em apreço. Outro fator relevante é que, em pesquisas desta natureza, há uma tendência de se imaginar que o recrudescimento da legislação ou de penas seria solução total para a criminalidade. Então, é possível que também haja correlação entre essa resposta, de senso comum, de que o endurecer das penas é o caminho quanto à violência contra a mulher, quando a questão é muito mais complexa. Então, quer me parecer que essa resposta possa estar adstrita a todo o contexto do sistema legal e também do sistema de Justiça. A pesquisa revelou que a maioria acha que os crimes contra as mulheres nunca ou quase nunca são punidos. A que o senhor atribuiria essa percepção da população? Historicamente, a violência contra a mulher, especialmente cometida no meio familiar e doméstico, não recebia a importância devida e culturalmente chegava a ser aceita, com a utilização de bordões do tipo: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Embora essa cultura venha em processo de mudança, até em virtude da própria Lei Maria da Penha, que enrijeceu o tratamento em face do agressor e criou mecanismos de proteção, a sensação de que esses crimes não são punidos decorre em parte desse tempo em que a lei e a sociedade viam essa violência de outra forma. Leva ainda algum tempo para assimilação dessas mudanças. Outro fato a se relevar é que estamos em um momento diferente no cenário nacional, de cobrança popular quanto a todas as instituições. Penso que parte dessa percepção decorre um pouco deste momento em que vivemos. Agora, é fato que a Lei Maria da Penha afastou, por exemplo, a aplicabilidade das regras previstas na Lei nº 9099/1995, dos Juizados Especiais Criminais, tais quais transação penal, suspensão condicional do processo, dentre outros mecanismos despenalizadores. Então, nos casos em que haja denúncia, isto é, ação penal, esta terá a sua tramitação até que seja julgada. Sendo constatada a responsabilidade do agressor, ele sofre a reprimenda prevista para a espécie de delito praticado. Veja-se, por oportuno, que esta mesma pesquisa revela que 57% dos entrevistados acreditam que a punição dos assassinos das parceiras é maior hoje do que no passado. Porém, talvez estejamos carecendo, tanto o Poder Judiciário, quanto os demais órgãos ligados ao enfrentamento da violência contra a mulher, de uma melhor e maior massificação das informações sobre os crimes cometidos, a tramitação desses casos e suas consequências penais, cíveis e/ou administrativas. Campanhas informativas são essenciais, a meu ver, para melhorar essa percepção da população. Como o sr. acaba de mencionar, a pesquisa apontou que 57% dos entrevistados acreditam que a punição dos assassinos das parceiras é maior hoje do que no passado. Como esse dado se relaciona com os dados anteriores? Na verdade, não tenho em mãos dados estatísticos que possam revelar se a percepção popular de que a punição de assassinatos de mulheres realmente ocorre com maior frequência atualmente do que antes. Não podemos esquecer que, para casos tais, a própria população é quem julga o agressor, em Plenário do Tribunal do Júri, conforme previsão constitucional. Uma coisa, porém, é certa: o diálogo da imprensa e dos órgãos de enfrentamento a essa violência com a população trouxe maior conhecimento acerca dos casos e de seus desfechos. A ampla cobertura e acompanhamento dos casos de assassinatos de mulheres, sejam eles tidos como emblemáticos ou não, parece-me tenha sido essencial para esta conclusão, esta percepção popular. Que desafios a Justiça ainda enfrenta na concretização da Lei Maria da Penha? Ainda há necessidade de criação de Juizados Especiais de Violência contra Mulher em muitas comarcas do País. Outros tantos juizados estão abarrotados de serviço e precisam ser multiplicados, fatos já levantados em recente pesquisa do próprio CNJ. Afora isso, a sobrecarga enseja a necessidade de maior número de juízes e de servidores, além de melhor aparelhamento estrutural, físico. A especialização e capacitação, também, são desafios a serem enfrentados, tanto que o Colégio de Presidentes de Tribunais de Justiça decidiu, na mais recente reunião desse órgão que congrega todos os presidentes de Tribunais de Justiça dos Estados e DF, dar prioridade a essa temática, como antes mencionado. Por fim, penso que um dos grandes desafios de todos os que trabalham no enfrentamento da violência contra a mulher reside na urgente e necessária formação e efetiva participação na rede de atendimento. A pesquisa revela que 7 em cada 10 brasileiros acreditam que a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos. Também que metade da população considera que as mulheres se sentem mais inseguras dentro de casa. Como o sr. avalia essa percepção da população sobre a violência doméstica contra a mulher? Neste aspecto, essa percepção se coaduna com a realidade. As pesquisas e o trabalho do dia-a-dia revelam que a maior parte da violência contra as mulheres está dentro dos seus próprios lares, especialmente praticada por maridos, companheiros, namorados, ou aqueles com quem já tiveram essa espécie de relacionamento. Daí a maior complexidade dessa violência, pois ocorre dentro do lugar onde deveria imperar a igualdade e harmonia. É por isso que todos os mecanismos de proteção e empoderamento da mulher devem funcionar bem para enfrentamento desse problema.
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Fonte: Portal Compromisso e Atitude
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