Para questionar a repercussão de casos de feminicídio na mídia, página aponta a responsabilidade dos jornalistas na naturalização do machismo e rebate clichês utilizados em manchetes e matérias
Esquartejadas, queimadas ou estranguladas, mortas com facadas ou tiros; nos portais na internet ou na mídia impressa, com frequência nos deparamos com notícias sobre mortes de mulheres. Grande parte é assassinada por namorados, maridos ou ex-parceiros e as manchetes parecem unânimes em catalogar a causa dos crimes como “ciúme”. Mas nem todo mundo aceita essas manchetes e títulos. Para algumas pessoas, o ciúme não é a verdadeira causa desses assassinatos, hoje tipificados como feminicídios segundo a lei sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em março de 2015. Vanessa Rodrigues, jornalista e diretora da ONG Casa de Lua, é uma delas. Cansada de ver, dia após dia, os eufemismos e desinformações que rondam o jornalismo quando o problema é feminicídio, ela decidiu se reunir com outras mulheres para criar a página “Não foi ciúme”, onde reúnem matérias e notícias que insistem no erro e fazem uma espécie de correção e argumentação para que as pessoas entendam a causa real desses assassinatos: o machismo. Com poucas semanas de existência, a página já tem mais de 7 mil curtidas e milhares de compartilhamentos. “Em geral, a recepção das pessoas tem sido bastante positiva, no que se pode considerar positivo em um ambiente que trata de assuntos tão duros e difíceis. No dia em que lançamos, a página passou o dia inteiro recebendo curtidas. Fechamos esse dia com mais de 3 mil curtidas, o que indica uma aceitação bastante expressiva, principalmente para um primeiro dia”, conta Vanessa Rodrigues. Mas, apesar do interesse e participação de tantas pessoas, nem sempre o retorno é de compreensão e compartilhamento. Quando a página comentou o absurdo do caso de Fabíola, uma mulher que foi exposta e agredida em público pelo marido, a reação hostil do público foi imensa; as moderadoras tiveram que passar o dia inteiro apagando comentários com xingamentos e ameaças, tudo porque os comentaristas não admitiam que uma mulher considerada “vadia” pudesse ser defendida – como se ela não possuísse direitos e merecesse, de fato, ser agredida ou até mesmo morta. Na última terça-feira (12), a página “Não foi ciúme” uniu forças com a Revista AzMina, uma publicação feminista independente, para lançar a hashtag #assédionotrabalho junto com uma campanha para que mulheres compartilhem na internet casos em que sofreram assédio sexual no ambiente de trabalho. Muitas relataram como esses assédios foram hostis, constrangedores e impactantes para elas, de uma maneira profundamente negativa. A cada publicação, a iniciativa tenta mostrar às pessoas o quão nocivo é o machismo, que mata mulheres todos os dias de maneiras terríveis. Em entrevista à Fórum, Vanessa Rodrigues fala mais sobre a página e o tema. Leia na íntegra: Fórum – Qual é a proposta da página e como surgiu a ideia de criá-la? Vanessa Rodrigues – Lendo cotidianamente a cobertura da mídia nos casos de violência e crime contra a mulher, comentei em meu status do Facebook que queria produzir algo nessa linha e várias companheiras feministas se interessaram em participar. A princípio, a ideia era lançar uma página no Tumblr que reunisse relatos de feminícidio e violência contra a mulher publicados na mídia, fazendo análises de como a mídia conta esses relatos: o enfoque, a linguagem, a narrativa. Em 25 de novembro, Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher, lançamos a comunidade no Facebook do “Não foi ciúme” e o perfil no Twitter@naofoiciume, que já cumprem esse propósito. E há uma semana lançamos um blog no Medium para textos mais longos sobre o assunto. Atualmente, somos oito mulheres administrando a página. Fórum – Na sua formação como jornalista, foram abordadas questões de gênero e direitos humanos? Rodrigues – Me formei há muitos anos, na UERJ, uma universidade pública do Rio de Janeiro. Na época, vivíamos o fortalecimento e consolidação das ONGs no Brasil e assuntos como violação de direitos humanos já estavam em pauta. Foi a época das chacinas da Candelária e de Acari. Havia também a campanha contra a fome, liderada por Betinho. Além disso, havia a conjuntura política, com o impeachment do Collor na pauta diária, por exemplo. Discutíamos bastante a cobertura da mídia sobre esses assuntos. No entanto, não me lembro de falarmos especificamente sobre gênero na sala de aula. Qualquer movimento nesse sentido vinha por parte de jornalistas mulheres feministas, que realizavam trabalhos de fortalecimento e empoderamento de mulheres em sua atuação profissional, já ligadas a alguma ONG feminista. Mas, em minha faculdade, os temas de gênero ainda não eram pauta. Atualmente, percebo mudanças interessantes nas faculdades de jornalismo, pelo que ouço e vejo de estudantes e de professores. Sinto que as estudantes mulheres estão pressionando nesse sentido, incluindo a formação de coletivos feministas dentro das universidades. E há professores, principalmente professoras, realizando trabalhos realmente magníficos com seus alunos e alunas. Ressalto o trabalho que Bianca Santana, feminista negra, vem realizando na faculdade de Comunicação da Cásper Líbero, por exemplo. Ou Maristela Bizarro, feminista LGBT, na FMU-FIAM. Esperemos que essa mudança implique em transformações nas redações também, com os quadros sendo renovados, por exemplo. Além disso, há a mídia independente, que precisamos fortalecer. Fórum – Há algum padrão na forma como a mídia repercute casos de feminicidio e violência doméstica? Rodrigues – Além do exagero no uso dos verbos no condicional, evitando dar à notícia um tom mais assertivo, a mídia insiste em tratar a violência doméstica e feminicídio como “crime passional”. Isso romantiza o crime e a violência, sugerindo que teria sido cometido por amor. Além disso, muitas vezes, os títulos e o corpo das matérias exageram no uso da palavra “suposto”. Entendemos que isso pode ser orientação jurídica, em casos em que o réu não foi julgado e condenado pelo crime. Mas também ficamos com a sensação de que há uma certa preguiça da imprensa na produção do conteúdo, o que acaba minimizando o crime ou, mesmo, colocando em dúvida a acusação e a denúncia feita pela vítima. Já vimos um título de matéria, por exemplo, que dizia: “Polícia apura suposta denúncia de estupro em campus de Universidade”. Ora, se houve denúncia, ela não é suposta. Nós divulgamos a matéria com essa crítica e ainda sugerimos um novo título, como: “Política investiga denúncia de estupro em campus de Universidade”. Mais assertivo, sem o uso do “suposto”, completamente desnecessário e dispensável, e que continuaria protegendo os envolvidos. Coincidentemente, durante o dia, o título da matéria foi trocado por outro com uma redação bastante similar à nossa sugestão. Fórum – Por que falar que um caso de feminicidio ou violência doméstica foi motivado por ciúme é algo nocivo? De que forma essas notícias deveriam ser repercutidas? Rodrigues – Acreditamos que relacionar o ciúme como razão para o feminicidio minimiza e romantiza o crime. Por isso, inclusive, o nome da página, que pode ser interpretado como um símbolo das “justificativas românticas” para crimes dessa natureza. Queremos que as histórias sejam contadas sem eufemismos ou adjetivos que romantizem a violência ou agressão. Não é por amor. Não é por ciúme. Não é passional. O que motiva um crime de feminicidio ou a violência doméstica, bem como o assédio ou estupro, é o machismo. É um sistema que estimula e justifica esse tipo de violência. O machismo mata e, muitas vezes, sai impune. Sem contar as vezes em que a mulher é responsabilizada pela violência sofrida. Fórum – Na sua opinião, o ciúme tem de fato algum papel nesses casos? Rodrigues – Somos educados numa sociedade que valoriza o ciúmes como demonstração máxima do amor. Quanto mais ciúmes, mais amor. Mas, não podemos perder de vista que ciúmes também pode ser violência. A maneira como a pessoa extravasa seu ciúmes pode significar invasão no espaço da outra pessoa, na vida da outra pessoa, nas relações pessoais, nos afetos, no corpo, nos desejos. E essa invasão faz pessoas acreditarem que são donos de outras pessoas: do seu corpo, dos seus sentimentos. E, como donos, ou donas, na tentativa de manter esse “amor” para si, vale tudo, né? Por isso, muitos e muitas acham que podem agredir por ciúmes, porque estariam motivados pelo amor ou pela vontade de proteger, de cuidar, de manter a pessoa perto de si. Quando se usa o ciúme, que é confundido com amor, como justificativa para violência, ela é minimizada, romantizada e, quase sempre, perdoada. Essa violência é vista como algo bom, no final das contas. Claro que sentir ciúmes é humano. Mas, isso jamais pode ser justificativa para violência e assassinato. Alegar isso não pode ser usado como razão para se agredir ou matar alguém. Como vivemos numa sociedade patriarcal, que coloca as mulheres em posição subalterna frente aos homens, nós mulheres somos as que mais sofremos inseridas nessa lógica, com o ciúme, muitas vezes, potencializando a ideia de que os homens podem dispor de nossas vidas e de nossos corpos. Fórum – De que formas podemos promover conscientização a respeito dessas questões? Você acredita que é possível provocar mudanças na mídia com mais cobranças? Rodrigues – Além de compartilhar conteúdos de páginas como a nossa, acreditamos que seja fundamental que as pessoas exercitem suas críticas também. Que leiam as noticias depurando e decupando a narrativa, as entrelinhas, e comentem em seus espaços virtuais: perfis em redes sociais, blogs, etc. Que sejamos comentaristas virtuais de maneira realmente positiva e propositiva! Acredito que o leitor pode contribuir na formação de uma mídia mais consciente, pressionando por novas narrativas, indicando que não é esse o tipo de cobertura que esperamos sobre os casos de violência contra a mulher, feminicídio e violação de direitos humanos, em geral. Fórum – Como é a experiência de moderar uma página como essa? Rodrigues – O tema que tratamos é muito pesado e, muitas vezes, nos abate. Estar mergulhadas nesses relatos, procurando casos, analisando, sabendo dos detalhes da violência, suas implicações e desdobramentos (ou a falta deles) é mesmo bem difícil, muitas vezes. Mas, entendemos que é importante reunir os relatos, que é importante ressaltar o número assustador de casos de violência contra a mulher e a maneira como os crimes são, muitas vezes, premeditados e planejados por seus criminosos, com a consciência, claro, que o que publicamos não representa o universo de violência e crimes contra a mulher, já que a maioria dos casos é anônima. Nesse sentido, estamos bem felizes com a repercussão da página e com a criação do blog no Medium, temos a expectativa de neste ano continuarmos atuantes nas análises de narrativas e fatos da mídia como mais um elemento de pressão nessas mudanças que tanto buscamos. Coluna “Questão de Gênero, de Jarid Arraes, da Revista Forum |
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Fonte: Revista Fórum
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