No ano com mais mulheres candidatas, fenômeno segue prejudicando o avanço da representatividade política
Em 2024, a conquista do voto feminino no Brasil completou 92 anos. Menos de um século atrás, as mulheres não podiam votar. Há menos de 70 anos, elas não podiam trabalhar legalmente fora de casa — mesmo que mulheres negras, indígenas e pobres já trabalhassem há muito tempo — e, há menos de 50 anos, mulheres não podiam administrar os seus próprios bens.
Somente em 2016, 55 anos após a inauguração do Congresso Nacional, em Brasília, foi construído o primeiro banheiro feminino no plenário do Senado[1]. Até dezembro de 2015, as parlamentares precisavam se deslocar para o toalete do restaurante anexo ao plenário, um exemplo simbólico do afastamento físico das mulheres do ambiente político brasileiro.
Esses dados e fatos históricos nos lembram que a existência dos direitos políticos é tão recente e frágil quanto a própria democracia brasileira. Nenhuma conquista, portanto, é definitiva. Seguindo a toada das crises políticas, os desafios se transformam e ultrapassam a simples formalização de direitos.
Em um ano histórico para a representatividade feminina, com 34,7% das candidaturas sendo de mulheres — o maior número já registrado na história do país[2]—, o InternetLab e Redes Cordiais lançaram a “Cartilha para o enfrentamento da violência política de gênero e raça”, que traz orientações para identificar, apoiar vítimas e denunciar casos.
Destinada a candidatas, políticas e qualquer pessoa interessada no tema, a cartilha visa promover um debate mais profundo sobre a segurança das mulheres na política, mostrando que a violência política é uma realidade que precisa ser combatida por meio de ações coletivas. Ao iluminar essa questão, o documento busca apoiar a construção de um ambiente político mais seguro e inclusivo para mulheres, em especial mulheres negras.
A violência política de gênero e raça em números
De acordo com o relatório Global Gender Gap 2024[3], estudo produzido pelo Fórum Econômico Mundial que analisa a desigualdade de gênero em quatro áreas (política, economia, saúde e educação), a política continua sendo o setor onde o Brasil tem a menor redução na disparidade de gênero. O dado evidencia como a baixa representação das mulheres em cargos políticos ainda é o principal fator que compromete o desempenho global do país em termos de igualdade de gênero.
A constatação não surpreende quando observamos os percentuais de representação feminina em órgãos e instituições do Estado. Apesar de, como mencionado, em 2024, as candidaturas femininas representarem 34,7%, diante de uma população que soma 53% do eleitorado brasileiro, é no mínimo problemático constatar que esse grupo tenha correspondido, no ano de 2022, a apenas 18% das candidaturas eleitas para o Legislativo.[4]
Quando olhamos para marcadores de raça, os dados ficam ainda mais preocupantes, considerando que hoje, ainda de acordo com o TSE, mulheres negras correspondem a apenas 5,7% dos representantes da Câmara de Deputados, embora representem 28% da população brasileira. Com esses números, o Brasil ocupa o 134º lugar no ranking que contabiliza a presença feminina nos parlamentos nacionais de 183 países, sendo a média geral em torno de 25,2% de mulheres eleitas.[5]
Nesse cenário, a violência política de gênero pode ser apontada como um, entre vários fatores, que impedem e desestimulam a maior presença feminina em espaços públicos de decisão. Em 2002, Jeff Fischer[6] definiu a violência política como qualquer ato ou ameaça, seja aleatório ou organizado, que busque intimidar, ferir fisicamente, chantagear ou abusar de uma parte interessada com o objetivo de influenciar, adiar ou de alguma forma interferir em um processo eleitoral.
A partir dessa definição, entende-se que qualquer candidato ou político pode ser alvo de violência política, no entanto, uma análise mais profunda das dinâmicas desse fenômeno revela que essas ações violentas frequentemente seguem padrões específicos, reproduzindo desigualdades sociais presentes nas sociedades onde ocorrem. No caso das mulheres e das pessoas negras, essa violência adquire uma camada adicional, sendo conhecida como violência política de gênero e/ou de raça, baseada no entendimento de que estes grupos são alvo de agressões específicas, derivadas de contextos sociais e históricos, que precisam ser consideradas de maneira mais atenta na formulação de pesquisas, políticas públicas e legislações.
Assim como outros tipos de violência, a violência política de gênero e raça se manifesta de diversas formas, desde agressões físicas, sexuais e psicológicas até restrições simbólicas e econômicas, que intimidam mulheres, especialmente as negras, a atuarem na política institucional, impondo custos adicionais às suas carreiras e, em alguns casos, ameaçando sua integridade física.
Em 2020, o InternetLab, a Revista AzMina e o Núcleo Jornalismo realizaram uma pesquisa em que monitoraram as redes sociais de 175 candidatos e candidatas durante as eleições daquele ano. O estudo mostrou que, enquanto as mulheres eram atacadas principalmente por sua identidade — seja por serem mulheres, negras, idosas ou trans —, os homens, em sua maioria, eram criticados por sua atuação como políticos e gestores públicos, com exceção de idosos e pessoas LGBTQIA+, que também foram alvos de ódio e agressões devido a essas características.
O enfrentamento jurídico à violência política de gênero e raça
No Brasil, a legislação específica para combater essa prática só surgiu recentemente, com a promulgação da Lei 14.192/2021, que estabelece regras para prevenir e punir atos de violência política direcionados às mulheres. Entretanto, o país já havia ratificado tratados internacionais que previam o compromisso de proteger os direitos políticos das mulheres, como a Convenção de Belém do Pará (1994) e a CEDAW (1979), antes mesmo da criação dessa lei.
A Lei 14.192/2021 foi um marco importante ao formalizar a violência política contra a mulher no ordenamento jurídico brasileiro. Proposta inicialmente em 2015 e aprovada em 2021, a legislação define claramente a violência política de gênero e criminaliza ações que impeçam ou dificultem a atuação de mulheres na política. A lei não se limita ao período eleitoral, mas abrange qualquer situação que envolva o exercício dos direitos políticos e funções públicas. Além disso, ela trouxe inovações ao prever sanções para propaganda política que deprecie mulheres em razão de seu sexo, raça ou etnia, e ao incluir novos crimes no Código Eleitoral.
Uma das principais inovações da lei foi a criação do artigo 326-B do Código Eleitoral, que estabelece pena de reclusão para quem assediar, humilhar ou ameaçar candidatas ou mulheres eleitas com base em discriminação por sexo, raça, cor ou etnia. A lei também prevê o aumento das penas quando os crimes forem cometidos contra mulheres gestantes, idosas ou com deficiência. Contudo, a escolha do termo “sexo” em vez de “gênero” limita a proteção oferecida, excluindo mulheres trans e outras identidades de gênero que não se enquadram no sexo feminino.
Apesar desses avanços, a aplicação prática da lei tem enfrentado diversos desafios. Levantamento realizado pelo Instituto Alziras aponta que das 175 representações de violência política de gênero e raça monitoradas pelo Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero do Ministério Público Federal, apenas 12 resultaram em ação penal eleitoral entre 2021 e 2023. Até janeiro deste ano, não houve nenhuma ação penal concluída.[7] Outro obstáculo relevante são os malabarismos legislativos que favorecem a impunidade partidária.
Em 2019, foi promulgada a Lei 13.831/2019, estabelecendo que os partidos que não tivessem realizado a destinação do percentual mínimo dos recursos do Fundo Partidário a programas de promoção e difusão da participação política de mulheres nos anos precedentes não poderiam ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outro tipo de sanção imposta pela Justiça Eleitoral.
Após três anos, uma nova norma nesse mesmo sentido foi aprovada, agora na forma da Emenda Constitucional 117, de 2022, que impediu a aplicação de sanções a partidos políticos que não cumpriram as cotas de financiamento para mulheres e pessoas negras em campanhas anteriores.
Em agosto de 2024, o que foi visto por muitos como um movimento de “autoanistia”, por parte dos partidos políticos, repetiu-se a partir da promulgação da Emenda Constitucional 9/2023. A medida visava, essencialmente, prorrogar os efeitos da Emenda Constitucional 117/2022, estendendo sua validade também aos partidos que descumpriram as cotas de raça e gênero nas eleições de 2022.
A resistência em aplicar as cotas de gênero e as anistias sucessivas que favorecem os partidos políticos, independente do espectro político em que se situam, demonstram como o compromisso com a igualdade de gênero na política ainda enfrenta barreiras dentro do próprio sistema legislativo. Essas anistias podem ser interpretadas, também, como uma forma de violência política de gênero, ao reforçar os históricos impedimentos de acesso de mulheres a cargos eletivos.
Embora a Lei 14.192/2021 seja um passo importante, ela não é suficiente para reverter décadas de sub-representação de gênero, especialmente quando enfrenta tentativas de desmantelamento por parte dos próprios legisladores.
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Fonte : Agência Patrícia Galvão