* Profa. Dra. Viviane Melo de Mendonça
“É o tempo do medo. Medo da mulher à violência do homem e medo do homem à mulher sem medo”, disse o escritor Eduardo Galeano. Estas frases ressoavam em mim enquanto lia a publicação dos resultados da pesquisa mundial realizada pela OMS em 2013 sobre a violência contra a mulher.
Os resultados desta pesquisa apontaram para uma realidade triste: 1/3 das mulheres em todo o mundo sofrem de violência física ou sexual; a violência sexual é o tipo mais comum das violências contra a mulher e afeta 30% das mulheres em todo o mundo; e 38% das mulheres assassinadas no mundo foram mortas por seus parceiros íntimos. O relatório da pesquisa considera a violência contra a mulher, portanto, uma epidemia global.
As raízes desta violência estão na discriminação ainda persistente contra as mulheres. Esta discriminação é um dos resultados de como normas e padrões de gênero se constituem sócio-historicamente e engendram desigualdades nas relações de poder entre homens e mulheres. Cria-se, hierarquicamente, o lugar do homem e o lugar da mulher, um binarismo perverso que constitui desigualdades, iniquidades e aprisiona subjetividades. Na sua origem, a violência contra as mulheres decorre do modo como produzimos estas relações de gênero e de como as reforçamos em nossos discursos, jogos, piadas e brincadeiras, para os quais devemos estar atentos, afinal, tornamo-nos cúmplices desta violência quando assim fazemos.
Como disse Galeano, é um tempo de medo, medo da mulher à violência do homem. Um medo que está arraigado em nossas experiências, às vezes de modo quase imperceptível porque já “naturalizado” pela condição social imposta às mulheres. O medo que nos acostumou ao medo de sairmos sozinhas à noite em nossa cidade, por exemplo. Não é aquele medo de sermos assaltadas, mas um medo maior, o de sermos violentadas. Um medo que muitas mulheres também sentem em suas próprias casas: o medo da violência de seus próprios parceiros. Medo na rua, medo no lar. Um medo tão intenso, naturalizado, arraigado, que pensamos tantas vezes que a culpa é nossa, e silenciamos, fingimos não ter medo.
Como um medo se transforma em luta para vivermos sem medo? Contarei a história de Maria, uma mulher brasileira. Seu ex-marido tentou assassiná-la duas vezes em 1983. A primeira tentativa foi com um tiro em suas costas enquanto dormia, na segunda ele tentou eletrocutá-la no banho. Maria perdeu o movimento das pernas, ficou paraplégica. O ex-marido não foi punido pelos crimes.
Maria foi à luta, e de sua luta temos hoje uma lei com seu nome: Lei Maria da Penha, que regulamenta os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil e que altera o tratamento dado anteriormente pelo Poder Judiciário aos agressores de mulheres no âmbito familiar. Com a Lei Maria da Penha, o silêncio do medo começou a ser quebrado, e o número de denúncias de violência contra mulher no Brasil aumentou seis vezes desde 2006, quando ela foi criada.
Neste ano, mais um medo se transformou em luta, e da luta, mais uma conquista para as mulheres. Foi sancionada pela Presidência da República a PLC 03/2013, de autoria da deputada federal Iara Bernardi. A Lei obriga o SUS prestar atendimento emergencial e multidisciplinar às mulheres vítimas de violência sexual, a realização de diagnóstico e tratamento de lesões, exames para detectar doenças sexualmente transmissíveis e contracepção de emergência. Parece óbvio, mas este direito não estava garantido.
Mas o que se deseja é que estas leis não sejam mais necessárias. Portanto, a luta não acaba por ai. Movimentos sociais, coletivos feministas e de mulheres estão lutando para a superação das desigualdades de gênero e da violência contra a mulher. Ou seja, entender como as normas e padrões de gênero se constituem, e a serviço de quem estão assim constituídos, é uma tarefa política de todos. E se somos alvo de resistência, preconceito ou piadas por conta destas lutas, é porque o tempo, como disse Galeano, ainda é de medo, também o medo de muitos homens à mulher sem medo.
* Profa. Dra. Viviane Melo de Mendonça é docente do Departamento de Ciências Humanas e Educação (DCHE) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), câmpus Sorocaba.
Fonte: Cruzeiro do Sul