Há 30 anos, a indiana Sampat Pal Devi perambula pela região mais populosa da Índia para combater, no corpo a corpo, a violência contra a mulher
No sistema de castas da Índia, Dalit é a mais baixa. A discriminação de castas é proibida desde 1947. Culturalmente, ela permanece no país, principalmente nas áreas rurais. Sampat Pal Devi, a bela mulher de 54 anos da foto ao lado, é dalit. Como tal, não poderia falar alto, sentar-se com pessoas de outras castas, desobedecer ao marido ou aos sogros. Sampat é diferente. Ela fala num tom de voz elevado com todos – inclusive comigo. E carrega um cajado para o caso de ter de enfrentar fisicamente os homens (até policiais). Sampat combate a violência contra a mulher na Índia, país eleito pela Fundação Reuters como o quarto pior para elas viverem. É seguida por mais de 40 mil mulheres, todas vestidas de sári rosa. Elas formam a Gangue Rosa e já foram tema de dois documentários. Convidada para o Congresso Mulheres Reais Que Transformam, Sampat falou a ÉPOCA por telefone.
ÉPOCA – O que é a Gangue Rosa?
Sampat Pal Devi –Somos um grupo que combate a violência contra a mulher nas aldeias no Estado de Uttar Pradesh (norte da Índia). Tenho 54 anos, faço isso desde os 20. Em fevereiro de 2005, passei a usar o sári rosa (traje feminino tradicional da Índia, feito de uma peça única) para mostrar que nossa luta é pelas mulheres. Todas as mulheres, quando entram na Gangue Rosa, pagam 300 rúpias (R$ 12) e recebem um sári rosa e um cajado rosa. Hoje temos mais de 40 mil seguidores (entre eles alguns homens).
ÉPOCA – Por que a senhora usa o cajado?
Sampat – Para me defender e bater em quem quiser agredir a mim ou a outras mulheres.
ÉPOCA – Como o grupo da senhora atua?
Sampat –Desde cedo, tem fila na porta da minha casa de meninas e mulheres que sofreram agressões. Elas vêm até mim direto. Nem passam mais pela polícia. Até porque muitas mulheres que procuraram autoridades não conseguiram ajuda. Ouço a história delas e, dependendo da gravidade do caso, tomo um tipo de atitude. Às vezes, converso com os acusados por telefone ou pessoalmente. Outras vezes, procuro a polícia, digo o que está acontecendo e peço que eles interfiram.
ÉPOCA – Eles ouvem a senhora?
Sampat –Hoje, ouvem muito. No começo, não. Eu ficava lá esperando até conseguir contar, e eles me ignoravam, achavam que era louca. Fui ficando conhecida. Hoje, me tratam com muito respeito na polícia e nos vilarejos também. Quando é caso de violência contra a mulher, os próprios policiais pedem que as vítimas venham até mim. Minha casa virou uma corte de julgamento de casos contra as mulheres.
ÉPOCA – Segundo a ONU, oito mulheres se suicidam por dia na Índia e há 3 milhões de prostitutas no país, 40% delas crianças. Por que é um país tão difícil para as mulheres?
Sampat –Isso vem de muito tempo. A mulher na Índia é vista como um fardo, uma pessoa de menor valor. Quando descobrem que o feto é de uma menina, em muitas regiões as famílias ainda optam pelo aborto ou matam a criança quando nasce. As famílias casam as meninas ainda bebês. Em minha região, esse problema diminuiu muito, mas ainda ocorre em vários lugares. É por isso que há mais homens que mulheres aqui. As famílias encaram a menina não como um membro da família, mas como da família do marido. Foi proibido, mas muita gente participa do pagamento de dote (sistema em que a família da noiva paga uma compensação à do noivo). Os mais pobres são os que mais sofrem com isso. Mesmo quando a mulher trabalha na mesma atividade do homem, ela ainda ganha menos.
ÉPOCA – Que tipo de violência contra a mulher é mais comum?
Sampat –Todo tipo. A mulher sofre muita violência doméstica, não só do marido, mas de toda a família dele. As meninas vão viver com os sogros com 12 anos e apanham. Os casos de estupro são muito comuns. É muito perigoso sair na rua à noite, porque, quando os homens bebem, pegam quem encontram pela frente. Principalmente os homens muito ricos. Quando ficam bêbados, eles acham que podem tudo.
ÉPOCA – A senhora vê uma forma de essa mentalidade mudar?
Sampat –Sim. Isso mudará quando as mulheres tiverem estudo. Minha luta é para que as mulheres não sejam maltratadas e estudem. Vou falar com as famílias das meninas que vêm me pedir ajuda, para que a violência acabe e para que a menina volte à escola. Não vou embora enquanto não se comprometem. Se não cumprem, volto com a minha gente. As famílias têm de entender que, ao receber educação, a menina pode ajudar os pais, não precisa ir embora para um marido. Quando entenderem isso, os bebês estarão a salvo, as meninas deixarão de ser um fardo. Aqui na minha aldeia (Banda), isso já está mudando. Não temos infanticídio. E as mulheres continuam a ir à escola, mesmo depois do casamento.
ÉPOCA – A senhora já teve de bater em muita gente?
Sampat –Não foi em muita gente. Foram uns cinco ou seis casos de maridos. E um policial, que tive de amarrar num tronco para conseguir bater.
ÉPOCA – A senhora bateu num policial? Por quê?
Sampat – Ele não dava importância ao que eu falava, aos casos que levava para ele. Faz muitos anos que sou processada por causa disso.
ÉPOCA – A senhora não acha seus métodos muito violentos?
Sampat –Não existe outro jeito de se impor aqui. Se você é mulher, não adianta ficar esperando que façam por você. Precisa tomar nas mãos e fazer. Mostrar do que é capaz. Se for tímida, morre. Hoje, as pessoas ouvem o que digo, mas porque mostrei que sou capaz de atacar. No começo, eu não tinha tanto respeito.
“Se você é mulher, não adianta ficar esperando. Hoje, as pessoas ouvem o que digo, mas só porque mostrei que sou capaz de atacar”
ÉPOCA – Que caso a senhora achou mais marcante?
Sampat –Foi a primeira vez em que defendi outra mulher. Eu tinha uns 15 anos. Uma conhecida veio se esconder em minha casa. Ela tinha sido espancada pelo marido e estava muito mal. Fiquei muito impressionada. Fui falar com ele. Ele caçoou de mim. Fiquei tão nervosa que peguei um pedaço de pau e comecei a bater nele. Não parava mais. Naquela hora, me veio essa sensação de que eu não queria mais que nenhum homem abusasse de nenhuma mulher. Senti que era aquilo que faria, protegeria as mulheres.
ÉPOCA – A senhora faz ideia de quantas mulheres já ajudou?
Sampat –Nenhuma ideia. Você pode tentar fazer a conta. Tive meus cinco filhos antes dos 20 anos e, depois, passei a fazer disso o meu dia a dia. Todos os dias, atendo pelo menos dez mulheres. Às vezes, tenho de viajar porque preciso ir pessoalmente resolver um assunto mais grave e, quando chego à aldeia, outras pessoas vêm me pedir ajuda. Faço isso há 30 anos.
ÉPOCA – A senhora já apanhou?
Sampat –Nunca apanhei. Nem na casa de meu marido. Quando me casei, tinha 12 anos. Cozinhava para toda a família do meu marido. Mas não podia comer com eles. Me faziam esperar todo mundo terminar e ficar para comer o que sobrasse, por último. Nunca aceitei. Reclamava alto, dizia que, se tinha casado, era da família também. Se brigassem comigo, falava mais alto ainda. Na Índia, mulher não deve ficar reclamando, falando alto. As pessoas têm medo de mim. Tem sido assim desde que comecei com esse trabalho, há 30 anos. Já bati, mas nunca apanhei.
ÉPOCA – A senhora estudou?
Sampat – Não. Minha família me prometeu para meu marido quando eu era criança. Nunca fui à escola. Aprendi a ler sozinha em casa. Escola é o que existe de mais importante. Por isso abri a minha.
ÉPOCA – Como é sua escola? Como a mantém?
Sampat –Temos crianças (meninos e meninas) de 5 anos até os 16. Mas não tem regra fixa. Quando encontro pessoas de 15 anos sem saber ler, levo para minha escola. Temos perto de 500 alunos. Alguns pagam mensalidade. E aceitamos doações.
ÉPOCA – A senhora é dalit?
Sampat –Sou da classe baixa, pobre e não gosto dessa sua pergunta. Sou uma pessoa que trabalha para a humanidade. Essa classificação é preconceituosa. Sua pergunta é preconceituosa.
ÉPOCA – Desculpe. Como é sua família?
Sampat –Tenho cinco filhos, quatro meninas e um menino. Só a caçula não é casada. Ela estuda medicina.
ÉPOCA – A senhora teve de pagar dote para suas filhas se casarem?
Sampat –Não. Não passei por isso. Acho que todo mundo tem medo de mim para me pedir dote (Sampat fala quase rindo, mas se contém).
ÉPOCA – A senhora ainda é casada?
Sampat –Sou casada, meu marido trabalha em nossa propridade rural. (O documentário inglês The Pink Sari mostra que ela se separou do primeiro marido, pai de seus filhos, e vive com outro homem há muitos anos.)
ÉPOCA – A senhora tem um sonho?
Sampat –Quero que todas as mulheres tenham valor igual. Que todas percebam que podem ser uma Sampat e lutar para mudar o que está errado.
ÉPOCA – Que ação de seu grupo lhe deu maior alegria?
Sampat – A maior alegria é lutar pelas mulheres e ser muito honesta. É muito bom poder viver do jeito que você acredita. Não há mais nada que eu queira.
ÉPOCA – O que a senhora sabe sobre o Brasil?
Sampat –As pessoas são muito gentis. Me trataram muito bem no Consulado, quando fui fazer a documentação. Fiquei até pensando: “Nossa, será que tenho tanto valor para ser tratada assim?”.