Segunda reportagem sobre violência doméstica mostra casos que resultaram em assassinatosQuando enfim encontramos o endereço de Silvana*, 44, às margens de uma rodovia mineira, ela encerrava o trabalho como carpinteira. Ao ser questionada se falaria sobre violência contra a mulher, ela respondeu: “Espera, que eu tenho que pegar um cigarro porque esse assunto me deixa muito mal”. Segurando o cigarro com as mãos sujas e calejadas de tanto consertar carrocerias de caminhões, ela contou como sua relação de 22 anos com José* acabou em tragédia. Há quatro meses, ela matou o marido com uma facada no peito. “Ele iria me matar aos poucos, ele me humilhou e me agrediu muito. Eu quis pegar no ombro dele, mas acertei o coração do meu único amigo, o companheiro de uma vida”, disse, mostrando no meu ombro o movimento do golpe. Ao acertar o marido para se defender das pauladas que ele desferia, Silvana correu sem saber que José não aguentaria ir atrás dela. “Quando olhei pra trás e vi que ele não veio, pensei: ‘Machuquei ele muito’”. A polícia considerou o caso legítima defesa. Silvana não é a única que chega a esse ponto após sofrer violência doméstica – quando não são elas que morrem. Na segunda reportagem da série “Que amor é esse?”, O TEMPO mostra o que acontece quando nem lei, nem medida protetiva, nem denúncia resolvem: a morte deixa de ser só ameaça. Na primeira vez em que Silvana chamou a polícia, o militar, segundo ela, deu três tapas em José. “Eu achei que ele tinha vindo para apaziguar ou levar ele daqui”. Para a carpinteira, o policial não fez nem uma coisa nem outra. Da segunda vez, Silvana reencontrou o militar. “Você de novo? Foi assim que ele me recebeu. E eu falei: ‘Não, talvez essa seja a última, acho que eu matei meu marido’”, e ela continuou: “Aqueles tapas que você deu nele, ele vingou em mim durante um ano. Depois daquilo, o homem ficou pior”. Silvana mostrou as cartas que escreveu para desabafar sobre o que sentia todas as vezes em que José, quase sempre drogado, a maltratava. “A pior violência é a psicológica. Vivemos todo esse tempo juntos e tivemos seis filhos. Mas, no último ano, ele me humilhou muito. Colocava outras mulheres aqui dentro”. Antes de José morrer, apenas o filho de 5 anos estava com o casal. “Ele me botava pra correr com meu menino na estrada. Meu filho também sofreu muito, hoje chama o irmão de pai”. O mais velho, de 18 anos, que havia saído de casa por não suportar as brigas dos pais, agora voltou. Ele procura alguma imagem de José no celular, mas não acha. Então, Silvana mostra a única fotografia revelada do marido quando criança. “Gosto tanto dela, não me traz dor”. As dependências financeira e psicológica são empecilhos para as mulheres saírem de casa e do ciclo de violência. “Eu coloquei todo o meu dinheiro no nosso negócio, não tinha como ir embora”, disse a carpinteira. Para Silvana, o problema era que o marido achava que os dois competiam. “Ele não aguentava ver que eu trabalhava mais que ele. Queria me fazer de empregada, mas eu o chamava de campeão”. Hoje, quem toca o negócio é Silvana, mas ainda enfrenta o preconceito: “Quando os clientes me veem, falam: ‘Chama o moço, por favor’. Eu digo: ‘A moça não serve?’” “E agora Silvana, quais são os planos?”, pergunto. “Vencer”. “Como?” “Podendo ser eu mesma”. “Talvez você não saiba a importância que tem pra Deus tratar as pessoas como gostaria que tratassem você, exaltar, proteger, agradar, perguntar ‘como vai você?’ (…) Mas Jesus vai ressuscitar meus sonhos, restituir planos e projetos que foram saqueados e mortos por você.” (trecho de carta escrita por Silvana para o marido) “Se a mulher pede socorro, é uma família que está pedindo”, diz vítima Silvana* acredita que uma conversa (referindo-se a um tratamento), que abrangesse toda a família, ajudaria mais a mulher vítima de violência, “em vez de uma lei para manter o marido distante”, disse em alusão às medidas protetivas de afastamento previstas na Lei Maria da Penha. “Se ela pede socorro, é uma família que está pedindo”. E disse mais: “Eles nunca preparam a mulher pra sair de casa. É complicado, ela depende financeiramente, psicologicamente”. A delegada Águeda Bueno, coordenadora da Divisão Especializada em Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência na capital, acredita que é preciso, primeiro, evoluir sem usar instrumentos legais do direto penal, como encarcerar e judicializar. “Porque ele (o agressor) continuará sendo o pai dos filhos dela, realmente precisamos de outras medidas, principalmente de atendimento psicológico. O conflito (judicial) teria que vir quando não tivesse mais jeito”. Na Casa de Diretos Humanos, onde funciona a rede de proteção à vítima, há o Centro Risoleta Neves de Atendimento à Mulher (Cerna), com psicólogas que atendem cerca de 400 pessoas por mês. Mas o serviço não é em esquema de plantão. O acompanhamento psicológico é semanal, sem prazo para término. Joana Suarez |
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Fonte: O Tempo
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