PLC prevê que medidas protetivas possam ser expedidas pelo próprio delegado de polícia, sem precisar esperar chegar até o juiz. O projeto será votado até fim do mês no Senado
Por Nana Soares, especial para a Ponte Jornalismo Prestes a completar dez anos de existência, uma das leis mais conhecidas do país pode sofrer alterações substanciais. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado deve votar hoje (29/06) o PLC 07/2016, que altera a lei Maria da Penha. O projeto prevê, entre outras coisas, que o atendimento das mulheres vítimas de violência seja realizado por profissionais do sexo feminino e que as medidas protetivas possam ser expedidas pelo próprio delegado de polícia, sem precisar esperar chegar até o juiz. A tramitação, no entanto, é polêmica, pois este último ponto é fortemente criticado pelos movimentos de mulheres e por diversas associações de profissionais do Direito. O projeto recebe majoritariamente duas críticas: uma possível inconstitucionalidade do artigo 12-B, que é o que confere ao delegado o poder de expedir as medidas protetivas, e a falta de participação popular em sua concepção. “A lei Maria da Penha foi criada a partir de um consórcio de ONGs e de muita discussão. É claro que propostas de alteração são naturais, mas elas têm que vir na mesma proposta que a lei foi construída, senão perdemos a origem horizontal e democrática que ela tem e abrimos espaço para outros interesses” diz Ana Rita de Souza Prata, coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo. Essa também é a visão de Leila Linhares, da ONG Cepia, uma das organizações que participaram da elaboração da Lei Maria da Penha. “O projeto [da PLC 07/2016] tramitou por um lobby dos delegados de polícia, apoiado por aquela que chamamos de “bancada da bala” de forma silenciosa, em meio às confusões pelas quais o Brasil passa, sem nenhum discussão com o movimento de mulheres, em uma posição corporativista”, diz a advogada e ativista. Oconsórcio de ONGs que participou da elaboração da Lei Maria da Penha já emitiu uma nota pública contrária ao artigo 12-B, alegando que ele fere a proposta original da Lei. Criador do projeto de lei 36/2015, do qual deriva o PLC 07/2016, o deputado Sérgio Vidigal (PDT-ES), defende que há decisões que precisam ser tomadas rapidamente. “Minha proposta saiu das estatísticas, do dia-a-dia”, diz ele. “Talvez a Lei Maria da Penha não tenha atentado para esse detalhe, que não é só fazer uma lei que vai resolver o problema. A proposta desse projeto não é invisibilizar as mulheres, é dar a elas condição para denunciar”, completa o deputado, que se diz satisfeito com a tramitação do projeto. “Eu fico triste é que a gente só se movimente depois que acontece alguma coisa, não trabalhamos na prevenção”. Retomada do diálogoEm abril, o Instituto Maria da Penha (IMP), fundado pela farmacêutica que dá nome à lei 11.340/2006, havia pedido urgência na aprovação do projeto, mas voltou atrás em seu posicionamento e, no dia 14 de junho, emitiu uma nota pública defendendo que o PLC seja mais discutido dadas as profundas mudanças que pode trazer na redação da lei. O Instituto diz que há alterações legislativas que precisam ser feitas, mas que “a Lei Maria da Penha necessita de um esforço conjunto de governantes, instituições públicas e sociedade civil” e recomenda que o diálogo com o consórcio de ONGs seja retomado. O projeto passou por audiência pública no dia 21, após solicitação da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), procuradora da Mulher no Senado. Na audiência, juristas e representantes do movimento de mulheres reforçaram que o projeto precisa ser discutido no ritmo que as mulheres merecem, especialmente por conter pontos controversos. No entanto, ele já havia recebido um parecer favorável do relator Aloysio Nunes (PSDB-SP) e agora segue para a votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Se aprovado, deve seguir para votação no plenário. Na avaliação de Thiago Pierobom, coordenador do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, o PLC 07/2016 não foi criado com o objetivo de enfraquecer a lei Maria da Penha, mas pode acabar tendo esse resultado se aprovado com o artigo 12-B, que foi incluído posteriormente. “Inicialmente se falava muito pouco do projeto, foi a partir do momento que se incluiu a emenda 12-B, de última hora, que ele ganhou destaque. Ao que tudo indica a ‘bancada da bala’ já tinha um lobby, porque ele foi aprovado rapidamente e o projeto já chegou no Senado com prioridade de tramitação. Foi aí que começaram a prestar atenção no projeto, a pedir audiência pública. Uma série de órgãos emitiram notas técnicas contra o artigo, mas a sensação que passa é que o lobby já está todo fechado para a aprovação”, diz Thiago. InconstitucionalidadeO artigo 12-B é polêmico porque confere à autoridade policial o poder de conceder medidas cautelares para proteger a mulher vítima de violência (como afastar o agressor de casa e impedir o contato entre as partes). Hoje, isso só acontece após autorização do juiz, que tem até 48horas para decidir sobre as medidas preventivas de urgência. Os críticos entendem que a mudança é problemática porque não seria necessário o aval do judiciário para privar pessoas de garantias fundamentais, tais como o de circular livremente. Já os defensores do artigo alegam que a lentidão em conceder as medidas protetivas justifica a mudança. “Deferir medidas protetivas de urgência trata-se da restrição de direitos fundamentais e toda restrição de direitos tem de ser deliberada por quem tem poder para isso segundo a Constituição, que é o juiz. Dar poder jurisdicional a um policial é inconstitucional e enfraquece a lei”, diz Thiago Pierobom. Na audiência desta terça, as representantes do Fórum Nacional de Delegados de Polícia e da Associação dos Delegados de Polícia Federal defenderam a constitucionalidade do artigo 12-B e argumentaram que dar esse poder aos delegados não se trata de corporativismo, mas de uma maneira mais eficaz de combater a violência contra as mulheres. As normas técnicas contrárias ao artigo 12-B se apegam a este mesmo aspecto e julgam que se um artigo da lei Maria da Penha for julgado como inconstitucional, ela pode ser perder legitimidade perante a sociedade. “É um discurso que aparenta proteger as mulheres, mas na prática não é isso que vai acontecer”, diz Pierobom. O idealizador do PL, Sérgio Vidigal, apela para que não se perca de vista a realidade. “Nós conhecemos a lentidão do judiciário nesse país, as vezes a mulher é obrigada a voltar para casa depois da denúncia e a perseguição se volta contra ela”, diz ele. “Seria muito bom se o Judiciário pudesse fazer isso [deferir as medidas protetivas], se pudesse deixar alguém de plantão na delegacia da mulher, mas não sei se temos contigente para isso. O fato é que são necessárias medidas urgentes. A proposta é para proteger a mulher vítima de violência até o judiciário fazer a homologação das medidas ou não”, defende Vidigal. O deputado lembra que o parecer do CCJ já se deu em favor da aprovação, não julgando haver qualquer inconstitucionalidade na proposta. Pelo o que observa em seu dia-a-dia na Defensoria Pública de São Paulo, Ana Rita de Souza Prata concorda que nem sempre as medidas protetivas são deferidas em 48h, mas ela acredita que os gargalos da aplicação da Lei Maria da Penha são outros, como o descumprimento da competência híbrida das varas de violência doméstica, a falta de investimento nas políticas de prevenção e nos cursos de reeducação dos agressores. “Medidas protetivas podem e devem ser concedidas, mas dentro do processo legal adequado e aplicadas por um juiz. Essa alteração enfraquece a lei porque diminui seu objetivo principal, que é combater as causas da violência contra a mulher e prevení-la”. A defensora enfatiza também que a lei dá autonomia para a mulher buscar a melhor saída para romper o ciclo de violência e que nem sempre essa saída se dá pelo sistema policial. “Ela nem sempre quer que o agressor seja punido e isso tem que ser respeitado. Esse projeto vem com uma proposta de valorizar o aspecto punitivista da lei, que já vem sendo repensado pelo próprio movimento de mulheres e pelos órgãos de Justiça”, diz. “Por exemplo, a lei não exige que para ter acesso a uma medida protetiva seja necessário registrar um boletim de ocorrência, mas o judiciário ainda exige, nós estamos trabalhando nisso. A nova redação restringe essa autonomia da mulher e tira alternativas de escolha”. EfetivaçãoA Lei Maria da Penha é um marco legal na proteção das mulheres no país, mas os desafios para colocá-la em prática são um obstáculo para que ela ganhe a confiança das brasileiras. Uma pesquisa do DataSenado apontou que uma em cada cinco mulheres já foi agredida pelo ex ou atual companheiro. A mesma pesquisa registrou que, em 2015, 56% das mulheres afirmaram se sentir mais protegidas por causa da lei, uma queda de 8 pontos percentuais em relação a 2013. E na visão dos críticos do PL 07/2016, os gargalos na aplicação da Maria da Penha não melhorariam com a aprovação do projeto. “Um dos maiores problemas que enfrentamos é a intimação, a polícia muitas vezes diz que não tem contigente. Muitas vezes é necessário agendar a visita para acompanhar a mulher que vai até sua casa buscar seus pertences, por exemplo. Se a força policial não consegue cumprir as obrigações de agora, eu me pergunto de onde vai surgir o contingente para realizar esse trabalho a mais que passa a ser de obrigação dela”, diz a coordenadora auxiliar do NUDEM. Sérgio Vidigal, o autor do projeto, acredita que há braços para realizar o trabalho, mas que é necessário preparar os profissionais. “Há muitas delegacias da mulher, nós temos que dar meios delas enfrentarem essa realidade”, diz. “Creio que não precisaremos realizar novos concursos públicos caso as alterações da PL sejam aprovadas, precisa haver uma integração maior para usar a estrutura que nós já temos”. O parecer do relator Aloysio Nunes ressalta que práticas como os Núcleos Especiais Criminais (Necrim) podem servir de exemplo no combate à violência, com delegacias especializadas em conciliação. Consta no documento: “Nos Necrim, o Delegado de Polícia é transformado em uma gente pacificador social, apto a solucionar crimes de menor potencial ofensivo, auxiliando o Poder Judiciário na solução dos conflitos penais. (…) É seguro afirmar que o conjunto da obra aqui realizada promoverá a necessária evolução do sistema de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher”. Para Thiago Pierobom, coordenador do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, dar mais uma função para a polícia, que já não dá conta da demanda atual, prejudica sua força de trabalho e deixa a resolução mais lenta e não mais rápida. “Fora que as maiores reclamações dos movimentos de mulheres são da polícia, não faz sentido dar mais autoridade a ela. Citar delegacias de conciliação como boa prática para combate a violência contra a mulher deixa claro que ninguém tem a menor noção do assunto. A última coisa que se quer é conciliação”, afirma. Antes da lei Maria da Penha, os casos de violência contra a mulher de fato eram considerados crimes de menor potencial ofensivo e, por isso, eram encaminhados aos Juizados Especiais Criminais (Jecrim). Os agressores então podiam ser condenados a prestar serviços comunitários ou a dar cestas básicas. “Agora, a Lei Maria da Penha está sendo usada como desculpa para fortalecer uma classe policial, especialmente a dos delegados, essa é a verdadeira motivação do projeto de lei”, critica Pierobom. “Não acho que o artigo 12-B foi criado com o objetivo de enfraquecer a lei, mas tem esse reflexo”. É o que também pensa Ana Rita de Souza Prata: “Os adeptos são pessoas que acreditam que a criminalização e o punitivismo são a solução para um problema de origem cultural. Não são pessoas próximas do movimento de mulheres e de estudiosos de gênero, tanto que não percebem que a medida não vai trazer qualquer resultado efetivo”. |
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Fonte: Ponte
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