Com um caso de estupro a cada 21 minutos, a Índia é um dos piores países do mundo para uma mulher viver. Preconceito machista, impunidade e convenções sociais arcaicas estão por trás dos crimes contra as mulheres
Uma mulher em busca de notícias sobre o marido é estuprada por três policiais dentro de uma delegacia. Adolescentes são enforcadas depois de sofrerem abuso sexual. Uma jovem é violentada, obrigada a beber ácido e estrangulada até a morte por vários homens. As chocantes descrições dos crimes cometidos contra mulheres na Índia são uma constante no noticiário sobre o país. E os abusos não se limitam às indianas. Turistas também são vítimas. “Até o ano passado, algumas dessas atrocidades tinham amparo legal, o que é um absurdo”, diz Venkatesh Balan, diretor de uma ONG que apoia vítimas de abusos. Os casos demonstram a degradação das mulheres em um país em que elas são consideradas menos dignas de respeito do que os homens. Alguns livros hindus deixam claro o diminuto papel feminino na sociedade indiana. O Manusmriti, ou Leis de Manu, promove a desigualdade ao afirmar que uma mulher não está apta a ser independente em nenhum momento de sua vida. Quando criança, deve viver sob a custódia do pai, quando adulta, sob a custódia do marido, e quando viúva, sob os cuidados do filho homem. O pavoroso estupro coletivo de uma universitária de 23 anos que voltava de uma sessão de cinema em Nova Délhi mostrou que qualquer mulher pode ser vítima de violência, até mesmo as que têm a oportunidade de buscar melhores condições de vida. Para outras, a situação pode ser ainda pior, como as adolescentes enforcadas, que eram dalits, ou seja, ocupavam o nível mais baixo do sistema de castas indiano. Mulheres dalits sofrem discriminação de casta, de classe e de gênero. O caso da estudante atacada na capital levou milhares de pessoas a expressarem sua indignação nas ruas do país, cobrando ações mais firmes das autoridades. Como resultado, as leis se tornaram mais severas, e passaram a prever pena de morte para alguns casos específicos. O que não se mostrou suficiente para intimidar os criminosos. A Índia é considerada pela ONU como o pior país para uma mulher viver, no grupo das vinte nações mais ricas do mundo. Números do Escritório Nacional de Registros de Crimes da Índia apontam para a média é de um estupro a cada 21 minutos. Em 2012, foram 244.270 casos de violência contra a mulher – tentativas de abuso, agressões e assassinatos. Cálculos dos economistas Siwan Anderson e Debraj Ray feitos para a rede BBC indicam que mais de dois milhões de indianas morrem a cada ano: cerca de 12% ao nascer, 25% na infância, 18% em idade reprodutiva e 45% já adultas. Segundo a ONU, o país tem umas maiores taxas de infanticídio do mundo e a maioria dos bebês assassinados após o parto são mulheres. Outro dado chocante levantado pelos economistas é o de cerca de 100.000 mulheres mortas por queimaduras a cada ano. De acordo com o levantamento, boa parte delas é de famílias que não conseguiram pagar os dotes matrimoniais prometidos. Em represália, a família do noivo queima as mulheres. Apesar dos números alarmantes, muitas vítimas não recorrem às autoridades, principalmente em casos de abuso sexual, por medo de represálias – até da própria família. “As vítimas devem ser incentivadas a reportar os crimes com a expectativa de que serão tratadas com cuidado”, escreveu a jornalista Gayatri Rangachari Shah em artigo publicado pela CNN. “A ideia da mulher como uma propriedade pessoal, que leva a um sentimento masculino de direito de posse, precisa ser erradicada”. Uma das maiores democracias e economias do planeta, a Índia ainda se mostra arcaica quando se trata de medidas consideradas para combater os crimes sexuais. Iniciativas como proibir cortinas nas janelas dos ônibus ou aumentar o número de policiais mulheres foram anunciadas depois de um estupro coletivo em Nova Délhi. Mais recentemente, o presidente Pranab Mukherjee prometeu incentivar a construção de banheiros dentro das casas – sim, ao sair para usar os banheiros externos, ainda comuns no país, muitas mulheres ficam expostas a agressores. O problema exigirá ainda mais atenção porque, mesmo com as limitações, a mulher está ocupando novos lugares na Índia. “Antes, as mulheres eram vistas apenas nas casas, nos campos, mas agora elas estão em toda parte, são vistas muito mais nos espaços públicos. Então os crimes também estão ocorrendo em mais esferas”, acrescentou Roop Rekha Verma, representante de uma organização de defesa das mulheres, em entrevista à rede britânica BBC. “A Índia está emergindo, e o grau em que mulheres e garotas veem prejudicada sua capacidade de participar plenamente em sua sociedade e economia será um empecilho à modernização do país”, ressaltou em artigo Rachel Vogelstein, do Council on Foreign Relations. A impunidadePolicial indiano em uma delegacia O estupro especialmente hediondo de uma universitária de 23 anos que voltava do cinema com um amigo e foi atacada por seis homens dentro de um ônibus na capital Nova Délhi chocou a população indiana. Todos os criminosos se revezaram no ataque sexual e no espancamento da vítima, em violências que incluíram uma barra de ferro e provocaram ruptura intestinal. A estudante de fisioterapia não resistiu aos ferimentos. A indignação com as autoridades forçou mudanças na legislação, que foi reforçada e passou a prever a pena de morte para casos brutais – sentença que foi aplicada contra os agressores da universitária. No entanto, o endurecimento das leis não se mostrou suficiente para intimidar os criminosos. Entre 2010 e 2012, as condenações por estupro no país caíram de 17,1% para 14,3%. De acordo com o último relatório do Escritório Nacional de Registros de Crimes, dos mais 200.000 casos de estupro em 2012, menos de 15% foram a julgamento. Destes, apenas 26% resultaram em condenações. Outro dado alarmante é que em mais de 94% dos casos de estupro as vítimas eram conhecidas dos agressores, que geralmente são familiares, vizinhos, amigos da família. Com isso, em muitos casos, a própria família da vítima protege os agressores da Justiça, testemunhando em favor deles. Roop Rekha Verma, representante de uma organização de defesa das mulheres, afirmou à rede BBC que as leis mais rígidas podem até ter tornado as mulheres mais vulneráveis, diante do temor de condenações. Sua ONG está baseada em Lucknow, capital do estado de Uttar Pradesh, norte do país, onde casos de mulheres enforcadas depois de serem estupradas têm sido registrados. O preconceito machistaJovem indiana em vila no estado de Uttar Pradesh O machismo comportamental é manifestado na Índia pela má vontade de policiais em ouvir as vítimas de abuso, de juízes e promotores em julgar com rigor os abusos sexuais contra mulheres, e também em situações comuns em muitos lares onde os homens fazem as refeições antes das mulheres, por exemplo. Em janeiro, uma política indiana declarou que “estupros também ocorrem por causa das roupas que as mulheres usam, do seu comportamento e da sua presença em lugares inapropriados”. Nos casamentos também é fácil ver a distinção que a sociedade faz entre homens e mulheres – elas muitas vezes não têm chance de opinar sobre seus destinos em uniões arranjadas pelas famílias. Na Índia ainda resiste uma crença de que ter uma filha é algo ruim. Isso acontece porque, quando uma mulher se casa, a família tem de pagar um dote (em dinheiro ou em presentes caros) à família do noivo. Visto como uma forma de ascensão social, o casamento é algo mercantil e as mulheres fazem parte da negociação como moeda de troca. Os dotes persistem também nos centros urbanos e muitas vezes são exorbitantes, com os pais das mulheres presenteando as famílias dos noivos com carros importados e até imóveis. A Índia ocupa a posição 132 no ranking de desigualdade de gêneros elaborado pela ONU, atrás de países como o Paquistão. As questões religiosasDevotos acendem velas no Templo Dourado de Amritsar, ao noroeste da Índia As duas maiores religiões do país, o hinduísmo (com mais de 80% da população) e o islamismo (mais de 13%), são patriarcais e priorizam os homens em seus ritos e dogmas. Profundamente religiosa, a sociedade indiana foi fortemente influenciada pelo preconceito machista das religiões. A influência foi tanta que se enraizou nas famílias e chegou até nas instituições políticas e jurídicas da Índia. Até o ano passado, por exemplo, perseguir uma mulher não era considerado um ato criminoso. Com isso, ex-namorados e ex-maridos tinham liberdade total para perseguirem e constrangerem suas ex-companheiras. Textos que influenciaram códigos legais, como as Leis de Manu, afirmam que uma mulher não está apta a ser independente em nenhum momento de sua vida. Quando criança, deve viver sob a custódia do pai, quando adulta, sob a custódia do marido, e quando viúva, sob os cuidados do filho homem. O sistema de castasMenino indiano participa de uma procissão no “Chandan Yatra Festival” em Puri, na Índia Mesmo oficialmente rejeitado pela Constituição, o sistema de castas ainda é presente na sociedade indiana, principalmente nas áreas menos desenvolvidas e na zona rural. Esse rígido sistema propicia uma forte segregação social, com as castas consideradas mais nobres subjugando as pessoas consideradas inferiores. Com isso, os homens de castas superiores se sentem livres para abusaram das mulheres ‘inferiores’. No final de maio, dias adolescentes dalits (a casta mais baixa de todas) foram estupradas e enforcadas em um pequeno município do estado de Uttar Pradesh. |
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Fonte: Veja
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