Corpo das atletas esteve sempre em exposição num ambiente predominantemente masculino. Mas, no século 21, elas não estão mais dispostas a aceitar esse padrão
A ginástica artística nas Olimpíadas de 2020 ficará na memória não apenas pela atuação inesquecível de Rebeca Andrade ou pela maturidade de Simone Biles ao tratar de suas questões de saúde mental. No treino de pódio e na fase qualificatória, o time feminino da Alemanha marcou posição e fez história ao guardar no armário os tradicionais collants e substituí-los por macacões até o tornozelo, com o objetivo de combater a sexualização do corpo das mulheres.
Especialistas em história do esporte e gênero ouvidas pela CNN apontam que a discussão sobre liberdade na escolha dos uniformes ganhará ainda mais visibilidade no futuro, acompanhando uma tendência da própria sociedade. Sob essa mesma ótica, as pesquisadoras preveem que a reflexão sobre igualdade de salário e o tratamento de pessoas que se identificam como não-binárias também terá mais relevância nos próximos anos.
As ginastas alemãs ganharam apoio de colegas da modalidade, como Biles, Rebeca e Flávia Saraiva. Mesmo preferindo usar collant, as finalistas olímpicas defenderam a liberdade de cada atleta de escolher o que vestir.
As jovens alemãs já haviam usado os macacões no campeonato europeu, em abril, mas foi ao repeti-los em Tóquio que elas tornaram o debate inevitável. Elas não defendem que todas as atletas usem o mesmo traje, mas sim que cada uma tenha a liberdade de utilizar o que quiser e no momento em que quiser – integrantes da própria equipe já disseram que podem voltar a vestir o collant em dias em que se sentirem à vontade para isso.
“Queremos mostrar que todas as mulheres, qualquer uma, devem decidir o que usar”, disse Elisabeth Seitz, ginasta alemã que participa de sua terceira Olimpíada. Na disputa feminina do skate em Tóquio, por exemplo, houve atletas que usaram calças largas e outras optaram por roupas mais justas, como a brasileira Letícia Bufoni, seguindo aquilo que era mais confortável para cada uma.
O tema já estava em alta porque dois dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio atletas da seleção feminina de handebol de praia da Noruega informaram que foram multadas pela federação europeia da modalidade pelo uso de “roupas inapropriadas”. Elas jogaram com shorts em vez de biquínis durante a Euro de Handebol Feminino 2021. Cada jogadora foi punida com o pagamento de US$ 177 (cerca de R$ 920). Na segunda-feira, 26, a cantora Pink se ofereceu para pagar a multa.
Na areia, nos ginásios e no gramado
Primeira campeã olímpica do vôlei de praia ao lado de Sandra, em Atlanta-96, Jaqueline Silva se acostumou a jogar de biquíni e até gostava. Para ela, o problema não é o traje e, sim, quem objetifica o corpo das mulheres.
Ela relembra que, no final da década de 1980, quando o esporte ainda não era olímpico, a propaganda de um torneio no Japão era apenas o bumbum de uma jogadora. As atletas foram à organização pedir a substituição do anúncio.
“Quando programam esse tipo de coisa, não vale a qualidade do seu trabalho, e, sim, a bunda, o decote, o biquíni, o que não está de acordo”, afirmou a campeã olímpica à CNN. Quando ganhou o ouro em Atenas, Jaque Silva ouviu um pedido para que ela e Sandra, assim como as demais medalhistas, subissem ao pódio de biquíni, o que acabou acontecendo. “Era fora do padrão porque todos os atletas de outros esportes sobem ao pódio de agasalho. Exploraram essa história (o uso do biquíni)”, relembra a ex-jogadora.
Como Jaque Silva, a jogadora de vôlei de praia Carol Solberg se sente bem com o biquíni como uniforme, por conta do calor, mas preferia que cada jogadora usasse o que quisesse. Em uma entrevista à revista “Trip”, em dezembro do ano passado, ela relatou já ter passado por situações incômodas, como registros aproximados de seu bumbum e comentários de que “é ruim para a televisão” não usar o biquíni quando está frio.
“O que tem de mudar são essas pessoas que têm esse olhar. A gente não. A gente tem que ter o direito de usar o que quiser. Estar com frio e não poder botar uma calça porque vai tirar a audiência do jogo, pelo amor de Deus, não existe”, disse ela à publicação, cujo conteúdo a jogadora respostou nas redes sociais após a polêmica da seleção de handebol de areia da Noruega.
No vôlei de quadra, as jogadoras usaram por muito tempo uma calcinha com uma modelagem maior – chamada de cueca ou sunga. Na seleção, em 1998, houve uma tentativa de usar uma peça única, um macaquinho colocado ao corpo. Esse modelo foi usado, por exemplo, durante alguns anos pela equipe feminina de basquete, mas, no vôlei, as jogadoras não se adaptaram à roupa porque limitava os movimentos. Em reportagens da época, algumas criticaram o apelo ao corpo. Apelidaram o macaquinho de uniforme do “É o Tchan”.
Após o breve teste do vestuário, a seleção voltou ao uniforme antigo. Nos Jogos Olímpicos de Sydney, as atletas ainda usaram esse modelo. Hoje senadora, Leila Barros foi um dos destaques da seleção feminina de vôlei bronze nos Jogos de Atlanta e Sydney e uma das principais incentivadoras da mudança para o short, principalmente depois que houve a troca do uniforme para o macaquinho. Argumentava que se os homens poderiam jogar de short, as mulheres tinham o mesmo direito.
“O macaquinho expôs todo o contorno da mulher. Ficou muito estranho. Mostrava o tamanho do peito, se a atleta tinha cintura ou não, além de expor o corpo ainda era desconfortável”, disse ela, que se incomodava com o rótulo de musa e, por isso, chegou a cortar o cabelo bem curto.
Depois das reclamações, Leila contou que as atletas passaram a ser mais ouvidas. “É importante sempre se posicionar que, por trás do uniforme, do corpo, tem um atleta que se dedica e que tem uma performance”, afirma.
A mudança ocorreu já no ciclo olímpico para Atenas, em 2004, quando foi desenvolvido o uniforme atual, com short. Em 2003, o estilista Alexandre Herchcovitch criou modelos de roupas não só para o vôlei, mas para outras modalidades. “A verdade é que o uniforme de vôlei é mais adequado e confortável hoje do que na minha época. Isso faz parte de um processo de mudança de gerações”, opinou Virna, medalhista de bronze em Atlanta e em Sydney, à CNN.
Essa mudança de gerações tem turbinado a reflexão sobre sexualidade e exposição dos corpos. E e é por isso que a discussão tende a aumentar. “O esporte não está isolado da sociedade, ele está inserido nela. Os movimentos feministas, como o ‘Nenhuma a menos’, ‘Me too’, a ‘Primavera feminista’, o ‘Não é não’, empoderaram as mulheres”, explicou Silvana Goellner, pesquisadora há 20 anos das questões do corpo, gênero e sexualidade no esporte e professora aposentada da UFRGS.
Além da liberdade de usar o traje que quiser, a luta das mulheres inclui a busca por igualdade de tratamento e de remuneração. Eleita seis vezes a melhor jogadora de futebol do mundo, Marta é uma das principais porta-vozes dessa batalha no esporte brasileiro. Em Tóquio, ela repetiu o que fez na Copa do Mundo de 2019, e usa um par de chuteiras pretas apenas com um símbolo da igualdade de gênero em rosa e azul na lateral, da campanha “Go Equal”. Marta comemora alguns gols apontando para o calçado para relembrar que essa luta ainda está longe do fim. Em suas redes sociais, há diversas postagens em que prega a igualdade.
Uma história de exclusão
Na Grécia Antiga, as mulheres sequer podiam assistir à prática dos esportes pelos homens. Nas primeiras Olimpíadas da Era Moderna, em 1896, elas foram alijadas do evento. Um dos idealizadores dos Jogos, Barão Pierre de Coubertin (1863-1937) era contrário à participação de atletas do sexo feminino porque elas seriam “sempre imitações imperfeitas”, como escreveu em um artigo, e porque competir era algo inerente apenas ao universo masculino.
“No final do século XIX, há a organização do que chamamos de esporte moderno, com a separação do público, dos atletas, a composição das regras. Era um período de expansão imperialista em que existia a convicção de que o homem europeu era mais desenvolvido. A ideia das Jogos era excluir as mulheres e celebrar o melhor exemplar dos homens europeus”, explicou Giovana Capucim e Silva, do Núcleo Interdisciplinar de Apoio à Pesquisa sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da USP.
A participação feminina nas Olimpíadas só começou em 1900, no tênis e no golfe. Em 1904, elas participaram em apenas um esporte: do tiro com arco. No judô e no boxe, por exemplo, as mulheres só passaram a competir nos Jogos Olímpicos a partir de 1992 e 2012, respectivamente. O aumento da presença das mulheres nas modalidades olímpicas foi gradativo, mas, até hoje, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, elas são minoria (48,8% dos cerca de 11 mil atletas).
“O esporte foi pensado pelos homens e para os homens. Quando as mulheres entram no esporte é nessa lógica de serem atrativas para os homens”, afirma a pesquisadora da UFRGS.
Inicialmente, as mulheres foram excluídas da maioria dos esportes oficialmente porque apontava-se que as atividades físicas poderiam atrapalhar a capacidade delas de serem mães. No Brasil, um decreto que vigorou de 1941 a 1979 proibiu mulheres de praticarem esportes “inadequados a sua natureza”. A ditadura militar chegou a listar que modalidades seriam essas – de futebol e rúgbi até artes marciais.
A partir da década 1950, ganha força a visão de que a mulher é também uma forte consumidora, e a publicidade da indústria de cosméticos e de outros produtos catapulta ainda mais um padrão de aparência e o ideal das “musas”. Desde que entraram no esporte, mulheres foram atreladas à beleza. A objetificação do corpo da mulher aumentou, principalmente, a partir dos anos de 1970, com a propagação da cultura fitness.
“A partir daí, fica muito forte esse processo de sexualização das mulheres e começa a aparecer com muita força a ideia de shorts curtos, por exemplo. A técnica esportiva fica em segundo plano. O importante não é se a mulher joga bem, mas o que o corpo dela traz de atrativo. Não existe a preocupação de um uniforme funcional. O objetivo deles não é promover a performance do atleta, mas evidenciar o corpo”, analisa a pesquisadora da USP.
As pesquisadoras chamam atenção para o quanto a sociedade se sente à vontade para opinar sobre o corpo da mulher. Goleira da seleção feminina de futebol, Bárbara foi chamada de “porca” por um jornalista na TV holandesa. Após vencer em sua estreia nos Jogos Olímpicos, a jogadora de vôlei de praia Rebecca foi alvo de críticas em suas redes sociais por conta de seu corpo.
“É como se a sociedade se sentisse à vontade para falar do corpo da mulher, como se tivesse uma licença para criticá-lo”, afirmou Lívia Gonçalves Magalhães, professora de História da UFF e pesquisadora do Laboratório de Estudos de Gênero e Subjetividades.
O padrão que a sociedade instituiu para as mulheres já criou situações inescrupulosas. Até os Jogos Olímpicos do México, em 1968, existia uma política de verificação de gênero. Mulheres que se destacavam por serem mais fortes ou que não seguiam o padrão passavam por uma inspeção genital para que fosse verificado se eram homens fingindo ser mulheres.
A discussão sobre sexualidade, gênero e os uniformes deve ganhar ainda novos elementos nos próximos anos. Um levantamento do site OutSports calculou que há pelo menos 160 atletas assumidamente membros da comunidade LGBTQIA+ competindo em Tóquio. O número é bem maior do que os dois últimos Jogos somados (79).
Entre os esportistas que se identificam como não-binários está Alana Smith, que participou da disputa feminina do skate, e Rebeca Quinn, atleta que integra a seleção feminina de futebol do Canadá. Não-binária, por definição, é a pessoa que não se identifica nem com o gênero masculino, nem com o gênero feminino. “Há atletas se colocando como não binários. E aí, que uniformes eles vão usar? O Comitê Olímpico Internacional vai ter que encarar que são os atletas que não se identificam com essa forma marcada de homem e mulher. Essa vai ser uma discussão do futuro”, prevê Lívia.
Fonte: CNN