Casos de violência obstétrica são relatados por uma em cada quatro brasileiras
À espera do primeiro filho, a vendedora Sheila Gregorio foi de São João do Meriti (RJ) a um hospital da zona norte do Rio de Janeiro para um exame pré-natal. Diante dos médicos, a bolsa estourou e ela foi encaminhada à internação para dar à luz Humberto Eduardo, hoje com 11 anos. Durante a espera pelo atendimento, se concentrava para driblar a dor e não chorar, com medo da reação das enfermeiras. Quando não resistiu mais, ouviu de uma delas: — Faz força, neguinha. Na hora de colocar para dentro você não chorou, agora tem que colocar para fora. Cumprir a ordem da enfermeira não ajudou. Quanto mais Sheila empurrava, pior era a dor, e nada de Humberto nascer. Porque já estava há quinze horas no hospital e havia começado a vomitar na sala, pediu socorro a um médico que entrava no plantão. — Pedi pelo amor de Deus que tirasse a criança de dentro de mim porque não estava mais aguentando. E que não fizesse mais exame de toque porque eu já estava com 10 centímetros de dilatação. Foi só então que a equipe descobriu que Humberto estava em pé, com os pés no colo do útero de Sheila, o que impossibilitava o nascimento. Após tanto tempo de trabalho de parto, a criança já entrava em sofrimento fetal, e a cesárea foi feita às pressas, antes que a sala de cirurgia pudesse ser preparada. O bebê nasceu saudável, e embora a mãe tenha sofrido com o tratamento da equipe, voltou ao hospital três anos depois para dar à luz Sarah Beathriz. O segundo parto também foi marcado pela violência obstétrica e desencadeou sequelas físicas. — Eles deixaram a placa do bisturi ligada. Eu reclamava de dor e uma mãe que estava no mesmo quarto avisou que a parte de trás das minhas coxas estava toda queimada. Agora, grávida de 7 meses da caçula Sandra Elizabeth, pretende dar à luz no hospital da zona norte do Rio novamente. — Mesmo com tudo o que eu passei, sei que é um hospital que tem uma infraestrutura. Por eu ser uma gestante de alto risco, se for para outro lugar posso ter algum problema e não conseguiriam salvar nem a mim nem ao bebê. O tratamento agressivo e negligente narrado por Sheila é frequente no Brasil. De acordo com uma pesquisa divulgada em 2011 pela Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres sofre violência obstétrica no país. A médica, obstetra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Carla Polido, utiliza a definição proposta pelo médico venezuelano Rogelio Pérez D’Gregorio para explicar o que é violência obstétrica. — A apropriação dos processos do corpo e processos reprodutivos das mulheres, por profissional de saúde, expressada por tratamento desumano, abuso de medicamentos e conversão dos processos naturais em patológicos, trazendo com isso a perda de autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente a qualidade de vida das mulheres. Entre os procedimentos médicos que, de acordo com a especialista, são considerados violentos, estão: violência psicológica, como humilhação de exposição desnecessária de genitália e agressões verbais; manobras para aceleração de saída da criança, como empurrar a barriga da mãe; “pique” no períneo; separação do acompanhante; exames vaginais frequentes, dolorosos e sem explicação; não oferecimento de métodos para controle de dor e abuso da indicação de cesarianas desnecessárias. Para Carla, as agressões ocorrem com frequência e sequer são encaradas como violência porque são rituais médicos muito antigos que não são questionados por novos profisionais. — Há ritos e rituais na assistência obstétrica que repetimos desde a época em que não havia estudos controlados mostrando que essas práticas são prejudiciais. A maioria dos profissionais apenas repete o que aprendeu, sem nenhum questionamento. Muitos não percebem mesmo que estão desrespeitando as gestantes, tão habituados que estão em comandar a situação. “Não pude nem pegar minha filha no colo” As consequências de um atendimento repleto de procedimentos violentos deixa marcas. A autora do blog Corpo Novo, Mente Nova, Bruna Justino, começou a sentir contrações em um domingo, no final de outubro de 2012. Foi a dois hospitais públicos da zona leste de São Paulo (SP) e os médicos mandaram-na de volta para casa, por falta de vagas na UTI neonatal e porque ela tinha apenas dois centímetros de dilatação. Na noite de terça-feira, Bruna perdeu o tampão, muco que mantém o útero bloqueado, e voltou ao segundo hospital. — Fizeram 18 exames de toque. Os médicos só colocavam luva se minha família pedisse, e um dos que me examinou estava com um pirulito na boca. Foi mandada de volta para casa novamente e depois de tentar outro hospital, ainda com três centímetros de dilatação, sua bolsa estourou com mecônio. Correu para a maternidade e ainda aguardou mais 6 horas até que Alice nascesse, na sexta-feira de 2 de novembro, por cesárea. — Eles eram agressivos e falavam que quanto mais eu gritasse, menos iam me atender. Riam da minha cara, faziam piada. A enfermeira disse que as mães que gritam são as mais frescas. Uma mulher me tirou de dentro do chuveiro pelos cabelos porque não podia molhá-los. Depois, me fizeram assinar um documento com o dedo dizendo que estava ciente que poderia sofrer choques elétricos pelo bisturi. Quando a cesárea aconteceu, Bruna não viu a filha. A bebê foi levada direto para a UTI e a mãe só se lembra que a criança não chorou. Na manhã seguinte, visitou Alice na UTI neonatal e recebeu a notícia de que a bebê estava com pneumonia. Foi perto da hora do almoço que ouviu os pêsames de uma funcionária do hospital. — Todo mundo já sabia, menos eu. Bruna e o marido foram chamados em uma sala reservada para receber a notícia. — A pediatra falou a frase que até hoje eu escuto. “Você é muito nova, era seu primeiro filho, e infelizmente…”. Quando ela falou infelizmente eu levantei, empurrei-a e vi a minha filha já morta. Não pude nem pegá-la no colo pela primeira vez. Depois de velar a filha recém-nascida, Bruna voltou ao hospital porque os pontos da cesárea vertiam líquido. — Fui internada e falaram que era uma infecção gravíssima. Depois de drenagens e uma curetagem, um anestesista admitiu que os médicos haviam deixado restos da placenta no útero de Bruna. O ano que se seguiu à morte de Alice foi marcado por uma internação em hospital psiquiátrico e tratamentos psicológicos para que Bruna se recuperasse do sofrimento. Hoje, ela atualiza um blog com histórias de superação para dar força a outras pessoas que passam por momentos tão difíceis quanto o seu. E sabe que muito de seu sofrimento foi causado pelo atendimento que recebeu nos hospitais. — A culpa é muito grande. A culpa por não ter feito nada. Consequências da violência Embora casos como o de Bruna sejam ainda mais trágicos e dolorosos, qualquer situação de violência obstétrica deixa sequelas. A psicanalista e diretora do Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal Gerar, Vera Iaconelli, explica que a violência obstétrica está inserida na cadeia da violência contra a mulher. E, de acordo com a especialista, toda agressão costuma deixar marcas. — Tudo que é um evento traumático precisa de escuta e elaboração, senão a vítima pode desenvolver sintomas. Se já tiver uma estrutura psicótica, o trauma pode desencadear um surto. O mais difícil, segundo ela, é que a vítima se dê conta de que sofreu abusos. — Quando uma pessoa é assaltada, todos reconhecem o ato como violência e isso ajuda a vítima a lidar com a situação. No caso da obstétrica, a falta de conhecimento de que é uma violência faz com que fique mais difícil para a mulher reconhecer as consequências, e ela também é mais problemática por isso. Culpa, depressão e bloqueio sexual são alguns dos problemas comuns em mulheres que passaram por atendimentos desumanos em hospitais. A violência obstétrica também pode afetar a relação entre mãe e filho. — Como a mãe vai cuidar de um bebê se tem que lidar com uma cena de violência? Ela fica com dificuldades de reconhecer o bebê como um ganho. Mesmo assim, as mães vítimas da violência obstétrica demonstram força na recuperação. Sheila, a mãe que vai dar à luz pela terceira vez em um hospital marcado pelo descaso no atendimento, consegue ver beleza em parir. — Filho é benção. A gente não deve só pensar na parte ruim, deve ver a parte boa também. |
Fonte: Portal R7
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