Jarid Arraes
O álcool é um forte componente da cultura brasileira e um aspecto de muitos eventos e interações sociais, por isso as bebidas alcoolicas são frequentemente utilizadas como facilitadoras da comunicação. Algumas marcas de bebidas fazem parte do imaginário popular como símbolos de status, mas a cerveja é a bebida que transita entre todas as classes e tem maior vinculação na publicidade.
As propagandas de cerveja geralmente seguem roteiros bastante repetitivos: em alguma ocasião festiva, vários homens competem entre si e buscam conquistar as mulheres mais lindas como forma de autoafirmação. É difícil acreditar que esses anúncios sejam tão pobres em ideias por falta de criatividade das agências publicitárias – no final das contas, as pessoas esperam esse tipo de abordagem das marcas de cerveja e reproduzem esses axiomas, acreditando que são comportamentos e situações naturais e intrínsecas do ser humano.
É por isso que casos como o da Devassa Negra causam tanta polêmica: desde 2011, a empresa é investigada por haver publicado um anúncio racista, reduzindo as mulheres negras a seus corpos ao relacioná-las a uma nova cerveja. A tentativa de relacionar a mulher negra a uma embalagem de cerveja é o único sentido da propaganda, mas não há qualquer diferença na forma da garrafa da Devassa Negra para uma Devassa Loira: apenas as cores são distintas. O comercial parece muito mais uma opção de coisificação da mulher negra, que há séculos tem seu corpo relacionado a uma distorção perversa de caráter e hipersexualização racista.
Houve muitos comentários críticos e indignados quanto à possibilidade da Devassa pagar uma multa pela peça publicitária. Para essas pessoas, seria hipócrita punir a marca por relacionar a cerveja ao corpo da mulher negra, pois propagandas falando em “loiras geladas” também são extremamente comuns. No entanto, a forma como o machismo atua nesses dois casos é distinta e está separada por algo problemático: a racialização do corpo como ferramenta de objetificação. Ou seja, atribuir uma característica inata a um grupo de mulheres tendo como única justificativa a sua cor.
Enquanto mulheres loiras são usadas na televisão como objetos sexuais e propriedades masculinas, é preciso reconhecer que é o fato de serem loiras e estarem enquadradas no padrão de beleza que transforma essas mulheres em um “produto” amplamente aceito, uma constante na publicidade. As mulheres negras, por outro lado, são deixadas de lado nas propagandas de maneira geral e, quando se fala de aparência física, ainda são excluídas da possibilidade de serem belas. O único momento em que uma mulher negra é elogiada na televisão é quando a exotificação acontece. Dessa forma, fica fácil entender porque a Devassa foi racista: ela precisou relacionar mulheres negras a algo exótico, fora do padrão – no caso a cerveja comum – e justificar essa excentricidade com bases físicas pautadas unicamente na raça.
Em uma coisa os indignados estão fatídicamente certos: a cerveja trata todas as mulheres como mercadorias. Não é porque a modelo loira é considerada deslumbrante que a exploração sexual deixa de acontecer. Enxergar isso como nocivo pode ser algo difícil para a maioria das pessoas, que estão acostumadas ao machismo das propagandas de cerveja e aprenderam a “deixar pra lá”. O que essas pessoas não sabem é que há muito tempo grupos de mulheres criticam tais anúncios e são ignoradas tanto pela sociedade quanto pelos órgãos responsáveis pela regulamentação publicitária. O problema não é e nunca foi somente o caso da Devassa Negra.
A razão pela qual apenas a Devassa Negra está sendo investigada é a hipocrisia de nossa sociedade. No Brasil todos dizem compreender o racismo como algo inaceitável, mesmo que sejam racistas sempre que possível não enfrentar as consequências do ato. Embora o sexismo também seja crime, nossa sociedade ainda não desenvolveu uma mentalidade crítica o bastante para enxergá-lo e isso torna o combate ao machismo muito complicado. Como a Devassa uniu o racismo ao sexismo, a sensação de todos é um tanto dicotômica; é como se pensassem “racismo é errado, mas o que tem de errado em dizer que mulheres negras são gostosas?”. O fato desse tipo de dúvida ser tão frequente revela uma verdade desconfortável: as pessoas não estão preparadas para enxergar o racismo cotidiano, além de acharem natural que mulheres sejam reduzidas ao apelo sexual de seus corpos.
É possível que a Devassa não pague multa alguma; no entanto, é preciso promover mais senso crítico e denúncias. É falando sobre o assunto que suas questões se tornam visíveis e é tal notoriedade que fundamenta a construção de um país menos hipócrita. As propagandas de cerveja precisam ter mais criatividade na venda de seus produtos, precisam mudar o disco e encontrar formas mais interessantes de trabalhar. É certo que há incontáveis alternativas que não envolvem estereótipos racistas, exploração feminina e idiotificação masculina. Mas, infelizmente, essa mudança só pode acontecer quando a população se tornar capaz de enxergar e identificar o problema.
Jarid Arraes é Diretora do FEMICA, colunista na Revista Forum, feminista, ativista pelos Direitos Humanos e estudante de Psicologia.
Fonte: Revista Fórum