Pouca gente sabe, mas a Lei Maria da Penha foi criada para prevenir e punir não só a violência conjugal contra mulheres heterossexuais, mas também violências contra lésbicas ou bissexuais. Seu artigo 2º diz: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.”
Já o artigo 3º, parágrafo 1º, diz: “O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Isso significa que a LMP se refere às violências, negligências, explorações, crueldades, opressões e discriminações que acontecem contra as mulheres nas relações domésticas e familiares.
Para a Lei Maria da Penha, relações domésticas são aquelas do “espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas” (art. 5º). A noção que a Lei traz de família também é mais ampla: “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” (art. 5º). Para nós, lésbicas e bissexuais, isso significa que ser agredida, discriminada, explorada por alguém da família (parente de sangue ou não) ou da convivência doméstica (como um tio, uma prima, pai, mãe, um irmão ou irmã, o namorado da sua irmã, o melhor amigo do seu irmão que frequenta sempre sua casa) é crime e deve ser denunciado! Da mesma forma, se uma avó, tia ou empregada doméstica sofre violência por alguém da casa/família, também pode denunciar. Ou seja, a Lei Maria da Penha não é só para casais, e sim para todas as mulheres em situação de violência dentro da família ou em casa.
Mas mesmo que a LMP seja mais conhecida em referência à violência conjugal, quase ninguém sabe: relações homoafetivas entre mulheres lésbicas ou bissexuais também estão asseguradas pela Lei, como fica exposto no art. 5º: “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial […] em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único: As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”.
Então, apesar do texto falar ”o agressor” no masculino – até porque a maior parte da violência contra mulheres é cometida por homens, e o português faz esse uso machista do masculino como se fosse genérico –, a LMP também prevê punição à violência que ocorre entre casais de mulheres [1] (lésbicas, bissexuais ou mulheres que fazem sexo com mulheres – MSM), sejam casais atuais ou já rompidos, que morem ou não na mesma casa (“independentemente de coabitação”). Por isso, se uma mulher lésbica ou bissexual é ameaçada, perseguida, humilhada, agredida por uma ex-namorada, ex-esposa, ex-companheira, ex-ficante, ex-amante, ela (a ofendida) pode denunciar essas violências.
Mulheres lésbicas e bissexuais, bem como mulheres travestis e transexuais (heterossexuais ou não), são as sujeitas de direito e fato dessa lei. Mais gente precisa saber disso. O objetivo dessa cartilha é divulgar essa informação e comentar as formas de violência contra mulheres lésbicas e bissexuais dentro do ambiente familiar e doméstico. Antes da Lei Maria da Penha, nem todas as formas abaixo eram reconhecidas como violência:
– violência física, que é “qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal” > murro, soco, pontapé, apertar o braço com força, bater com objetos, puxar o cabelo, morder, queimar etc. Nenhuma mulher lésbica ou bissexual pode sofrer esse tipo de violência; se acontece dentro de casa ou na família, ou ainda por uma namorada ou ex, deve ser denunciada.
– violência psicológica, que é “qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação” de uma mulher > se uma lésbica ou bissexual é ameaçada, perseguida, controlada, desvalorizada, humilhada, constrangida, por exemplo: a família ou (ex)namorada/ficante/esposa a persegue ou vai sempre deixar e buscar no trabalho ou na escola como forma de vigiá-la; lê seus e-mails e mensagens de celular; a humilha e xinga; critica tudo que ela faz; a envergonha sistematicamente em frente às amigas; faz intriga para que ela se afaste das pessoas que ama; impede-a de ir a algum lugar; ameaça contar no trabalho ou escola que ela é lésbica; se o irmão ou pai dizem que vão dar em cima da namorada dela, ou dão; ciúmes e chantagem; tudo isso é violência psicológica, é crime.
– violência patrimonial, “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”: se os presentes e cartas que sua namorada deu são rasgados, queimados; se você é impedida de usar seu computador, o computador da casa ou o telefone para que não converse com outras mulheres, essa proibição, vinda da (ex)namorada ou família, é violência e deve ser denunciada. A Lei, que não é perfeita, considera que animais domésticos são “propriedade” (uma concepção bastante especista [2]; logo, se alguém machuca sua cachorrinha(o), seu papagaio, sua gatinha(o), sua tartaruga – seja como forma de punir ou castigar sua orientação, escolha, opção ou preferência afetiva e sexual, seja como forma de ameaçar e demonstrar ciúmes –, isso é violência patrimonial doméstica e intrafamiliar contra lésbicas/bissexuais.
– violência moral, que é “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”: se alguém fofoca ou fala mal sobre uma lésbica ou bissexual, ou inventa e espalhas inverdades a respeito dela com intuito de prejudicá-la moral e socialmente, isso é violência moral, e pode ser denunciada com amparo da Lei Maria da Penha se acontecer em ambientes domésticos ou intrafamiliares, ou se for cometida fora desses espaços por alguém de convivência doméstica ou familiar.
– violência sexual, que é qualquer conduta que force uma mulher “a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que ainduza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”: se uma namorada obriga a outra a ver filme pornô, se uma das ficantes não quer usar camisinha na hora da transa; se uma lésbica ou bissexual sofre ou já sofreu violência sexual dentro da família, como “estupros corretivos”, pode e deve denunciar. “Estupro corretivo” é quando um ou mais homens, geralmente da família, estupram uma mulher que eles acham que é ou parece lésbica (independente de ela ser ou não) porque acham que isso vai “corrigir” a orientação afetivo-sexual dela, para que ela “deixe de ser lésbica” e “aprenda a ser mulher de verdade”. É assustador o número de casos de estupros corretivos que acontecem dentro de igrejas, por líderes religiosos, para “corrigir” mulheres entendidas como pecadoras e impuras unicamente por serem lésbicas!
Os estupros corretivos não acontecem unicamente em países que têm legislações conservadoras sobre direitos das mulheres, nem só em comunidades pobres ou de interior (pensar isso é muito preconceituoso!); mas acontecem em todas as classes sociais, e envolvem pessoas de todas as escolaridades e rendas. É muito difícil denunciar um estupro, porque a sociedade patriarcal nos faz acreditar que somos culpadas, que fizemos algo para merecer aquilo (as roupas que usamos, os horários em que estávamos na rua, estarmos bêbadas ou dormindo…). Se é um estupro cometido por um conhecido, dentro da casa ou da família (pai, irmão, tio, padrasto, primo, enteado…), a dificuldade ganha outros contornos, porque pode ser ampliada pela dependência social, afetiva, socioeconômica.
Para enfrentar essas violências que também atingem mulheres lésbicas ou bissexuais, conhecer a Lei Maria da Penha não basta. Temos que conhecer as redes de atendimento às mulheres em situação de violência (CRAS/CREAS, ONGs que defendem os direitos humanos das mulheres, coletivos feministas e de mulheres, associações de bairro, grupos de estudo e pesquisa em estudos feministas ou de gênero, núcleos de promotoras legais populares, programas hospitalares, Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher – DEAM…), pois assim teremos mais força para denunciar e restabelecer nossa vida livres da violência lesbofóbica. Além disso, temos que exigir que o Estado e os municípios capacitem agentes e profissionais de justiça, segurança pública, saúde, educação, trabalho e outras esferas sociais, para que elas e eles conheçam e apliquem a Lei Maria da Penha de forma abrangente, entendendo que os direitos sexuais de mulheres lésbicas e bissexuais são direitos humanos [3].
Lei Maria da Penha pode ser um instrumento poderoso de defesa de nossos direitos sexuais e humanos, mas ela não funciona sozinha; temos que nos manter informadas e informar ao maior número possível de mulheres, lésbicas ou não, sobre essa legislação. Espalhe por aí!
[1] Apesar de ter havido alguns casos de jurisprudência envolvendo casais de homens gays, a Lei Maria da Penha não foi feita para homens gays. Ela foi usada nesses dois casos (RJ e RS) porque os juízes que julgaram os casos entenderam fazer sentido. Mas o texto da Lei deixa bem nítido: a LMP é uma legislação protetiva com relação às mulheres.
[2] Especismo é achar que a espécie humana é superior às outras, e que por isso pode dominá-las e explorá-las (para alimentação, vestuário ou “diversão”). Alice Walker, escritora negra feminista e bissexual, escreveu que “os animais não vieram ao planeta para servir aos humanos, assim como as mulheres não vieram para servir aos homens e as pessoas negras não vieram para servir às brancas”.
[3] Além do direito de exprimir livremente a identidade de gênero (travesti, transexual ou cissexual) e a viver livremente a orientação afetivo-sexual (homo, hetero, bissexual e outras), entre os direitos sexuais também estão: direito de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações nem imposições, e com respeito pleno pelo corpo da parceira; direito de escolher @ parceir@ sexual; direito de viver plenamente a sexualidade sem medo, vergonha, culpa e falsas crenças; direito de ter relação sexual independente da reprodução. Fonte: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direitos sexuais, direitos reprodutivos e métodos anticoncepcionais. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. (Série F. Comunicação e Educação em Saúde) (Série Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos ; caderno nº 2)
Título original: LEI MARIA DA PENHA (LMP) EM CASOS DE LESBOFOBIA: Você sabia que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) não é só para casais, e muito menos só para casais heterossexuais?
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Texto de tatiana nascimento, Bruna Araujo e Melissa Navarro, integrantes da Coturno de Vênus – Associação Lésbica Feminista de Brasília. Revisão de Taísa Nascimento dos Santos.
Brasília, DF, 2011.