“Quando você baixa um aplicativo no celular, não vê quem criou. Pode ter sido um homem, uma mulher, um africano, um brasileiro”, diz Rebecca Enonchong
Ativista e empresária, Rebecca Enonchong parece estar em toda parte. Tornou-se uma das vozes mais influentes da África, ouvida pelo mainstream, do Fórum Econômico Mundial ao G20, passando pela academia. É CEO de diversas startups e incubadoras, além de fazer parte de conselhos e projetos de inclusão digital com um mesmo objetivo: garantir o desenvolvimento do continente africano e promover a igualdade de gênero, raça e nacionalidade.
Para ela, a tecnologia é a resposta. Atualmente se divide entre Washington e Camarões, onde nasceu. Fundadora da AppsTech, companhia que fez a sua trajetória inversa, começou nos Estados Unidos até chegar a seu país de origem, é presidente da AfriLabs, um conjunto de 320 centros de inovação presente em 51 países africanos, e está na diretoria de entidades que buscam mudar a imagem do mundo da tecnologia.
Enonchong quer mais empresas de tecnologia lideradas e fundadas por mulheres. Também quer financiamentos graúdos como os concedidos àquelas comandadas por homens. Diz ainda que a inteligência artificial perpetuará os preconceitos de gênero e não será eficiente sem a participação feminina — metade da população mundial — na sua construção. Veja os destaques da entrevista que deu ao Valor por ocasião de sua participação de seminário no G20 em Brasília sobre gênero.
Tecnologia é poder
Quando você baixa um aplicativo no seu celular, não vê quem criou. Pode ter sido um homem, uma mulher, um africano, um brasileiro. Tudo que você sabe é que está usando algo que funciona. Esse é o nível de oportunidade econômica. Não tem precedentes, porque a tecnologia não conhece fronteiras. Nos sistemas financeiros, essas fronteiras existem, mas a própria tecnologia não entende ou reconhece essas fronteiras. Este é apenas um exemplo de como se pode aproveitar a tecnologia para criar mais igualdade no desenvolvimento. A tecnologia é esse grande equalizador. A questão surge quando precisamos de financiamento.
Discriminação no financiamento
Porque a tecnologia é anônima, por ser pura, você só vê o resultado final, que é o produto. E você está usando isso. Mas a obtenção de financiamento não é anônima e, de repente, todos esses preconceitos de gênero entram em jogo. Isso é algo que acontece especialmente na África, mas o que encontramos em todo o mundo quando as mulheres têm acesso ao financiamento, ao crédito? De repente você ouve a palavra microcrédito, que nunca é usada para se referir ao financiamento de homens.
É isso que precisamos quebrar. A tecnologia fez um ótimo trabalho com esse anonimato, mas ainda precisamos fazer esforços reais dentro das finanças para garantir que as mulheres tenham oportunidades iguais para obter financiamento real. Não microcrédito, mas o mesmo financiamento que estaria disponível para os nossos homólogos masculinos. Aliás, mesmo quando ainda existem recursos voltados para financiar mulheres, quando olhamos para onde esse dinheiro vai de fato, vemos que acaba nas mãos dos homens. Que treinaram mulheres sobre como administrar dinheiro ou como administrar um negócio ou que construíram uma plataforma para que as mulheres possam interagir umas com as outras. Vai para uma lista de projetos para adequá-las e que deveria ser usado para financiá-las, na verdade.
Gap da disparidade de gênero
Há estatísticas, como as do [Fórum Econômico Mundial], de que serão necessários 131 anos para acabar com a disparidade de gênero, que só perpetuam o problema. Porque é algo que permite desistir do programa, por não ter uma solução para esta geração. Isso é uma questão de percepção que tem de ser quebrada. Não pode levar esse tempo todo. É como se as pessoas não quisessem mulheres como líderes, como se a notícia fosse a de que está tudo bem em não haver mulheres líderes neste momento justamente porque o FEM diz que serão necessários 131 anos para eliminar o gap. Olho especialmente para o continente africano, onde mais de 60% da população é jovem. Existe ali uma oportunidade para mudar essa mentalidade e garantir que temos uma geração que reconhece o valor da mulher para uma sociedade produtiva.
A força do exemplo
Fui jurada do Prêmio África da Royal Academy de Engenharia e Inovação nos últimos seis anos e há inovação que as mulheres fazem para as mulheres. Muitas vezes encontramos exemplos tão simples como absorventes reutilizáveis. Ou, com a IA, inovação em saúde para se obter tratamento ginecológico, no jeito antigo, que não mudou muito. Só uma mulher entenderia como isso é inovador. Faz diferença ter mulheres para dizer: ‘precisamos disso’. E temos de ser capazes de financiar seu criador para que leve essa inovação ao mercado e pronto. É apoiar, é reconhecer que o talento pode vir de todos os lugares. É mostrar que o talento não se limita aos homens brancos no Vale do Silício. Pode vir do Brasil, de Camarões. E, sim, de mulheres. É só criar o lugar para o reconhecimento desses engenheiros inovadores. Temos que mudar a imagem para que nossos jovens, meninas e meninos, reconheçam isso, para que saibam que é normal ver uma mulher em posição de liderança no mundo da tecnologia. É mais um exemplo e menos uma exceção. Para que as meninas se imaginem nesse papel, e para que os meninos também achem normal ter uma mulher nesse papel.
Uma das coisas que precisamos garantir é, dentro dos sistemas educacionais, no currículo, buscar mecanismos para garantir que as mulheres não desistam, para que as mantenhamos envolvidas com a ciência e a engenharia. Temos que garantir que quaisquer que sejam as dificuldades que podem estar enfrentando para entrar nesses campos, tenhamos mecanismos para contorná-las. Isso é importante em todo o mundo.
Deixar nossos preconceitos de lado
É importante educar meninas e meninos. E um ponto muito interessante da tecnologia, quando falamos de Stem [acrônimo da língua inglesa para o sistema de aprendizado que engloba “ciência, tecnologia, engenharia e matemática”], está no “m”, de matemática. Faço parte do conselho de uma organização chamada Imagine Worldwide, que tem um projeto de aprendizagem através de tablets em áreas muito desfavorecidas na África. É um aprendizado adaptado para esses tablets. Assim, cada criança aprende sozinha, segue seu próprio nível. Quando você olha os dados da sala de aula, meninas e meninos não têm os mesmos resultados matemáticos. Por alguma razão, com o passar dos anos, as notas de matemática das meninas ficam abaixo das dos meninos. No tablet os resultados são os mesmos, quando não há julgamento externo. A tecnologia cria igualdade. E esse é o poder da tecnologia.
Quando a tecnologia é usada corretamente, é incrível como pode promover a igualdade. Por isso, também temos que ter certeza, especialmente quando falamos de inteligência artificial, que não estamos qualificando com nossos preconceitos. Como podemos garantir isso enquanto estamos construindo tudo isso, enquanto ensinamos essas máquinas? Esse aprendizado tem que garantir que não estejam aprendendo os mesmos preconceitos que existem no mundo real. Vejo isso como uma oportunidade real para nivelarmos o campo de jogo, para que possamos limitar preconceitos tão presentes no nosso dia a dia.
Inteligência artificial
Temos que fazer parte do mundo da IA para que ela não seja construída por pessoas que incluem seus próprios preconceitos. Temos que garantir que as mulheres estejam sentadas à mesa, construindo essas ferramentas. Para que não fiquemos para trás novamente. É uma oportunidade fantástica para promover a igualdade. Seja ela de gênero, raça ou nacionalidade. Esta será uma grande oportunidade para o mundo inteiro, na medida em que construímos a IA, em que se torna mais presente e os governos reconheçam a sua importância e seus os perigos, os riscos associados.
Isso é uma chance real no âmbito do G20 de enviar essa mensagem às mulheres. Temos que fazer parte da solução. Não somos um projeto. Sabe quando as pessoas sentam em volta da mesa e tentam consertar alguma coisa? E essa coisa não está lá? É muito importante que a mensagem para o G20 seja desse reconhecimento, que possamos ver isso, a importância da IA, sua oportunidade e os riscos. Que se certifique de que as mulheres façam parte da construção da solução. E que você não está sentado construindo uma solução para mulheres. Mas que é algo construído por mulheres. E as mulheres irão construí-lo para o mundo.
Mas isso ainda é um problema. Vi no Twitter (X) o anúncio de uma conferência sobre IA. Não havia uma única mulher. Eram seis homens. Conheço tantas mulheres talentosas que estão envolvidas em IA. É fundamental garantirmos que essas vozes sejam ouvidas e incluídas na construção de soluções. Do contrário, acabaremos na mesma, perpetuaremos os mesmos preconceitos que temos na vida real. Você não pode desenvolvê-la com metade da população não incluída na solução, porque você nunca será capaz de desenvolvê-la adequadamente. É muito importante que isso seja uma mensagem crítica do G20.
A importância da diversidade
Estudos mostram que equipes diversas são naturalmente mais produtivas. Às vezes fico frustrada porque as pessoas dizem: ‘Bem, você sabe, não se trata de diversidade, é uma questão de competência…’. É quase como se você dissesse que não há mulheres competentes para preencher esses cargos. Sou totalmente a favor dos mais competentes…
Nossa geração está se certificando de que muitas dessas suposições sobre competência, talento, capacidade, o que devemos fazer para mudar esses preconceitos? Muito disso tem a ver com a exposição e com o fato de que você quer ver exemplos e não exceções, exemplos de mulheres fazendo grandes coisas, e não ‘ah, encontramos uma mulher’. E quanto mais exemplos tivermos, mais veremos mulheres em escala, e não exceções aqui e ali. Isso faz parte da jornada feminista da nossa geração. Nessa geração há muitas dessas suposições sobre competência, talento, capacidade. O que devemos fazer para mudar esses preconceitos?
Ações práticas
Um dos programas do qual sou cofundadora é uma rede de centros de tecnologia e inovação em todo o continente africano. E o que fizemos foi criar um programa de matching de financiamento. Investidores que fazem parte da rede “anjos” investem em uma startup que esteja em um dos centros de inovação membros. E este programa irá duplicar ou triplicar esse investimento. Na segunda fase, acabamos de lançar um piloto em 15 países diferentes, vai ser um fundo para mulheres, de modo que só mulheres poderão ser escolhidas para o matching. Estamos trabalhando nisso agora, levantando recursos para isso. De modo que precisamos fazer algumas coisas para aumentar a capacidade das mulheres de obter financiamento.
Temos problemas com financiamento de mulheres. Mas isso não é exclusivo da África. A estatística de mulheres negras sendo financiadas em todo o mundo é sombria. É zero ponto zero. É como se fosse um erro de arredondamento. A certa altura, apenas alguns anos atrás, você conseguia encaixar na capa de uma única revista todas as mulheres que arrecadaram mais de US$ 1 milhão. E eram menos de 20 mulheres. Não foi só na África. Eram mulheres negras. E acho que é isso que precisa de ser mudado e corrigido. É incrivelmente difícil.
Fonte: Valor econômico