Em situações extremas como guerras e calamidades, a vulnerabilidade das mulheres e crianças aumenta e, com isso, a violência de gênero também se aprofunda
Por: Carmela Zigoni
A tragédia do Rio Grande do Sul trouxe para o debate público um tema difícil, porém urgente, a saber, abusos e violências contra mulheres e meninas que emergem em situações de calamidade. As denúncias de casos ocorridos nas últimas semanas indignaram a opinião pública, gerando também muita desinformação sobre o problema. Infelizmente, este é um fenômeno largamente documentado na literatura especializada: em situações extremas como guerras e calamidades, a vulnerabilidade das mulheres e crianças aumenta e, com isso, a violência de gênero também se aprofunda.
O Ministério das Mulheres está criando medidas de proteção, e anunciou um protocolo de abordagem de gênero para os resgates e abrigos, além da priorização no serviço Ligue 180 para as denúncias no contexto dessa crise. Será importante, inclusive, que essa medida seja avaliada nacionalmente. Tendo em vista o prognóstico de que situações extremas ligadas às emergências climáticas se tornarão cada vez mais frequentes no Brasil, é recomendável que esse protocolo seja adaptado e estendido a outros contextos.
As políticas públicas de combate à violência contra as mulheres são concebidas e colocadas em prática a partir de abordagem intersetorial, na articulação de diversas políticas públicas, como as de saúde, assistência social e justiça. Além disso, devem ser desenvolvidas e financiadas no marco do pacto federativo, com responsabilidades compartilhadas entre o governo federal, estados e municípios. Cabe ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) realizar o controle social de tais ações.
Essas diretrizes não foram consideradas no governo Bolsonaro, e na gestão de Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH). No PPA 2020-2023 que elaboraram, o Programa 2016: Enfrentamento a Violência e Promoção da Autonomia foi extinto, e as mulheres passaram a ser mais um público entre outros (idosos, PCDs, crianças e adolescentes, quilombolas e indígenas) do Programa 5034: Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa de direitos humanos para todos.
Esse olhar genérico da gestão pública em relação às mulheres – não mais vistas na sua especificidade, diversidade, no contexto de desigualdades sociais –, se materializou na baixa execução dos recursos ou cortes orçamentários nos quatro anos de governo. No auge da pandemia de Covid-19, em 2020, quando as mulheres estavam mais expostas à violência doméstica, o Ministério deixou de executar 70% do recurso disponível. Naquele momento, estava decretada a calamidade pública e, em função disso, as regras para licitações e contratos foram flexibilizadas visando acelerar a execução financeira do orçamento.
Em 2023, o governo Lula, de forma participativa, realizou a elaboração do novo PPA 2024-2027, trazendo de volta as mulheres para o campo prioritário. Foram criados três programas específicos: “Igualdade de decisão e poder para as mulheres” (Programa 5661), “Mulher viver sem violência” (Programa 5662) e “Autonomia econômica das mulheres” (Programa 5663). Além disso, outros órgãos como o Ministério da Justiça, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) criaram ações orçamentárias específicas para mulheres.
O governo de Jair Bolsonaro previu somente R$ 13,6 milhões no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023 para o enfrentamento da violência contra as mulheres, ou seja, o pior orçamento de todos os anos para a pauta. Os recursos foram incrementados pelo novo governo e chegaram a R$ 152 milhões, o que equivale a onze vezes mais do que o originalmente previsto pela gestão anterior. A execução financeira foi de R$ 83,7 milhões e o empenho foi de R$ 146,6 milhões, respectivamente, representando 55% e 96% dos recursos autorizados.
Para 2024, foram alocados R$ 370,5 milhões, distribuídos nos três novos programas, prevendo o acolhimento em situações de violência, ações de promoção de autonomia – sem a qual as mulheres não conseguem romper com o ciclo de violência doméstica –, e participação nos espaços de poder. Além disso, o fomento e aprimoramento dos mecanismos de participação e controle social são imprescindíveis: as medidas do Ministério das Mulheres no Rio Grande do Sul, por exemplo, estão sendo construídas tanto pelo diálogo entre governo federal, estado e municípios, como em diálogo com as mulheres afetadas e movimentos feministas.
O caminho ainda é longo para que todas as políticas públicas considerem os impactos na equidade de gênero e raça, mas alguns importantes passos foram dados no novo PPA. A tragédia climática do Rio Grande do Sul revelou que o planejamento das políticas públicas é fundamental para evitar catástrofes. E a proteção de mulheres e crianças precisa integrar este planejamento, uma vez que existe a previsibilidade de possíveis ocorrências.
As mulheres brasileiras são urbanas e rurais, indígenas, quilombolas e ribeirinhas. São atravessadas por especificidades que impactam de forma diferente os direitos das mulheres negras, com deficiência, lésbicas, trans, jovens e idosas. Algumas são impactadas, ainda, por políticas públicas que violam direitos socioambientais, a exemplo das mulheres afetadas por tragédias climáticas.
Fonte: Le Monde Diplomatique