A embaixadora Irene Vida Gala tornou-se nos últimos anos uma das principais vozes na luta por mais espaço para mulheres no Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, e assumiu de vez a frente desta mobilização como presidente da Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB).
Desde que tomou posse, a embaixadora fez críticas abertas às indicações do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) às chefias de embaixadas e representações do Brasil em organismos internacionais.
Na lista inicial de 26 nomes, conforme um monitoramento da AMDB, havia 24 homens e duas mulheres, números que Gala diz serem “vergonhosos” e que indicavam uma falta de disposição do ministro Mauro Vieira, que comanda o Itamaraty, em alterar o quadro de desigualdade de gênero na instituição.
“Minhas críticas não foram aos nomes em si, porque todos têm condições de ocupar os postos. Critiquei a opção por homens quando haveria mulheres igualmente habilitadas”, diz Gala à BBC News Brasil.
Na quinta-feira (11/5), o ministro Mauro Vieira estará na comissão de Relações Exteriores do Senado para falar sobre a política externa brasileira.
Também estão previstas as primeiras sabatinas dos novos embaixadores indicados pelo governo Lula. Além de serem submetidos à comissão, os nomes precisam ser aprovados pelo plenário do Senado.
Desde que a primeira lista foi anunciada, mais um homem e uma mulher foram indicados para a chefia de embaixadas e representações internacionais.
Outras quatro mulheres devem assumir embaixadas, segundo fontes do Itamaraty. Os nomes já foram escolhidos e aguardam a chancela dos países onde ficam os postos – procedimento de praxe antes de serem confirmados.
Gala avalia que isso já é um reflexo da mobilização da sua associação.
“A chefia do Itamaraty entendeu o equívoco que havia cometido ao fazer uma indicação absolutamente vergonhosa e está fazendo correções. Reconhecemos este esforço. De todo modo, os números ainda são francamente desfavoráveis às mulheres”, diz a embaixadora, que inclui nesta conta as indicações para o comando dos consulados – de sete homens e uma mulher, até agora -, que não precisam ser aprovadas pelo Senado.
Outro efeito, acredita ela, foi a nomeação da embaixadora Maria Laura da Rocha para a secretaria-geral, segundo cargo mais importante da pasta, e de Maria Luísa Viotti para chefiar a embaixada em Washington, uma das mais importantes. Ambas são as primeiras mulheres nesses postos.
“Isso é fruto de uma luta por visibilidade para mulheres. Basta? De jeito nenhum. Uma mulher não vale por todas as outras. Então, a gente fez um gol ou, se você quiser, dois, mas tomou vários. Não é uma vitória. A gente ainda está perdendo feio esse jogo. Mas a gente não quer virar a partida. A gente quer empatar, ficar em igualdade de condições com nossos colegas.”
Procurado pela BBC News Brasil, o Itamaraty afirmou que “a atual gestão, além das inúmeras medidas tomadas em quatro meses nas áreas de gênero e de diversidade, abriu canal direto de diálogo institucional, que continua à disposição da AMDB”.
O Palácio do Planalto não respondeu ao contato da reportagem.
A AMDB foi criada em janeiro para expor publicamente as demandas das mulheres na carreira diplomática. Isso inclui desde questões cotidianas da profissão à participação das mulheres na condução da política externa brasileira.
Gala diz que houve avanços nesse sentido na diplomacia nacional desde que Maria José de Castro Rebello Mendes se tornou a primeira mulher a ingressar na carreira, há 105 anos. Mas ainda é pouco, diz Gala.
Pelas contas oficiais, as mulheres representam 23% dos diplomatas e cerca de 12% dos cargos de chefia no exterior. À frente das secretarias, o segundo escalão da pasta, são 30%.
Números ainda bem abaixo da proporção feminina na população em geral, de 51,1%, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021.
O que Gala e a AMDB almejam é alcançar essa paridade também no Itamaraty, especialmente nos cargos de liderança, com a criação de metas e prazos.
“Nosso mérito não está sendo reconhecido. Somos deixadas de lado. É uma estrutura que compromete a saúde física, moral e mental das diplomatas”, afirma a embaixadora.
Há 39 anos no Itamaraty, Gala é hoje ministra de primeira classe, o patamar mais alto que um diplomata pode alcançar.
Ela fez sua carreira principalmente na África, em países como Zâmbia, Guiné-Bissau, Angola, África do Sul e Gana – no último, foi embaixadora -, e também trabalhou em Portugal, nos Estados Unidos e na Itália.
Hoje, é subchefe do escritório de representação do Itamaraty em São Paulo.
Gala diz que, ao longo desses anos, aspirou por posições de chefia que não alcançou, “porque o lugar estava reservado para um homem”. Porém, reconhece que “passou bem pelos desafios”.
“A questão é que esses desafios foram de tal monta que várias não conseguiram passar. No conjunto, as mulheres ficaram para trás. Por isso, a gente tem os números que tem hoje. Eu saí bem na foto. Quantas não chegaram a tirar a foto? Essa é a pergunta”, diz Gala.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Neste ano, completa 105 anos que a primeira mulher começou a trabalhar no Itamaraty. O que mudou desde então?
Irene Vida Gala – Mudou a posição da mulher na sociedade brasileira. O Itamaraty é um reflexo do que a gente vê fora dos muros da própria chancelaria. Há 105 anos, a mulher não estava no espaço público. Salvo raríssimas exceções, o caso da Maria José, que entrou em 1918, é essa exceção.
Hoje, a mulher ocupa o espaço público e, portanto, isso também se alterou na chancelaria, na organização, reflexão e na execução da política externa brasileira. Uma coisa que gosto muito de lembrar é que a Maria José foi a primeira mulher funcionária pública concursada da história do Brasil. Isso coloca o Itamaraty em uma vanguarda no tocante à questão das mulheres.
BBC News Brasil – Ao mesmo tempo, a senhora diz que as mulheres são invisíveis e inexistentes no Itamaraty ainda hoje. Por quê?
Gala – Nosso mérito não está sendo reconhecido. Então, isso abre chagas, porque nós somos deixadas de lado. Não porque a gente tenha dúvida sobre nosso mérito, mas os colegas simplesmente não nos incluem.
A invisibilidade se dá pela desqualificação da mulher. Os homens não têm o hábito de olhar para as mulheres e as entenderem como interlocutoras nos assuntos de Estado. Mais uma vez, o Itamaraty reflete o Brasil. Se a gente olha a política brasileira, a gente vê como é difícil. As mulheres têm que lutar por seu espaço, porque os colegas não reconhecem esse espaço, simplesmente não veem a mulher como parte do processo. Eles vão chamar outros homens, mas não vão chamar as mulheres.
Temos algumas exceções, e, na atual gestão do Itamaraty, quero fazer um justo reconhecimento ao embaixador André Corrêa do Lago, que escolheu três mulheres para serem chefe dos departamentos submetidos à área dele. Isso é muito legal. Ele não está fazendo uma ação afirmativa. Está apenas reconhecendo o mérito que aquelas colegas têm, porque elas são as pessoas mais habilitadas para tratar daquele assunto. Ele enxerga a mulher.
BBC News Brasil – Alguns tinham a expectativa que uma mulher pudesse ser nomeada pela primeira vez para ser chanceler no governo Lula. Isso não ocorreu. Por quê?
Gala – Tive a oportunidade de tratar desse assunto pessoalmente com o presidente Lula. Ele se mostrou bastante sensível quando mencionei as vantagens que haveria para o Brasil ter uma chanceler, porque a vantagem não é da chanceler, não é do Itamaraty. A vantagem é do Brasil.
No momento em que o Brasil vinha saindo de uma crise de visibilidade externa durante o período do governo anterior e que Lula queria se inserir no plano internacional com uma proposta de vanguarda, que reconhecia várias agendas, como a de direitos humanos, a luta contra a pobreza, a igualdade, a diversidade. Então, colocar uma mulher como face externa do Brasil, que é a chancelaria, seria indicar para o mundo que de fato havia um governo 100% comprometido.
O presidente ouviu com muito interesse, e a imprensa chegou a dizer, em algumas ocasiões, que ele gostaria de ter uma mulher chanceler. Mas acho que ele foi dissuadido disso com base em argumentos do tipo ‘olhe os currículos’.
BBC News Brasil – Dissuadido por quem?
Gala – Bom, aí deixo para que cada um faça sua avaliação. Não sei dizer. Estou convencida que ele tinha simpatia pela ideia, porque conversei com ele. Vi como reagiu. Lula chegou inclusive a mencionar o nome de algumas mulheres que ele conhecia na carreira. Ele tomou a iniciativa de mencionar isso. Então, acredito que ele foi realmente dissuadido. Tem muita gente no seu entorno. Tendo a acreditar que não foi uma mulher. Terá sido um entorno masculino que o fez ficar preso a um aspecto formal dos currículos.
O que define hoje a qualidade de um eventual chefe da chancelaria é exclusivamente o currículo. E, contra fatos, não há argumentos. Os melhores currículos não eram os de mulheres. O currículo do ministro Mauro Vieira é absolutamente louvável. Eu aplaudo. É realmente fantástico. Nada poderia se equiparar entre as mulheres ao seu currículo. Ele tem todas as condições de ser um excelente chanceler.
Mas, se as mulheres não têm currículo, porque nunca lhes foi permitido construir um e nunca chegaram a uma posição de poder, não se pode pedir das mulheres um currículo. O que me pergunto – e várias de nós nos perguntamos dentro do Itamaraty e também na sociedade – é se apenas o currículo seria suficiente. O que que a gente precisava naquele momento? Mesmo sem ter currículo, não haveria mulheres que poderiam entregar resultados muito positivos? Uma mulher não teria condições e qualidades altamente valiosas?
BBC News Brasil – Como a senhora avalia as indicações feitas até agora pelo governo Lula para os cargos de liderança no Itamaraty?
Gala – Observando as primeiras indicações para embaixadas e organismos internacionais, faltou disposição política de reconhecer o talento de mulheres. No segundo escalão, havia quadros com competência para construir uma secretaria de qualidade e se optou por fazer 30% [das mulheres nos cargos].
Minhas críticas não são aos nomes em si, porque a qualidade dos colegas não está em jogo. Todos eles têm condições de ocupar os postos, e é natural que sejam escolhidos. Critiquei porque as indicações deixavam de contemplar um número mínimo de mulheres e a opção por homens quando haveria mulheres igualmente habilitadas. Faltou disposição de assegurar uma presença feminina relevante nas indicações feitas logo no início da gestão.
O ministro de Estado e a secretária geral têm dito repetidas vezes que a presença feminina no Itamaraty é de 23%. Então, o ministro está usando o critério da proporcionalidade. Portanto, se nós somos 23%, ter 30% está muito bom. Quem tem compromisso com a diversidade não se pauta pela proporcionalidade. Ela representa a manutenção do status quo. Se a gente continuar nesse padrão, dos 23%, nós vamos ficar 50, 60, 80 anos, para alcançar um dia a paridade, que é o que a sociedade brasileira espera.
A legitimação do espaço da mulher no poder foi uma escolha das urnas. Foi um compromisso do presidente Lula, e ele tem demonstrado isso. Os ministérios associados mais diretamente a ele têm demonstrado essa vocação de incluir mulheres. No Itamaraty, falta isso.
BBC News Brasil – Desde então, outra mulher foi indicada para chefiar uma embaixada, e fontes do Itamaraty apontam que mais quatro serão e só aguardam a chancela dos países onde estão estes pontos.
Gala – Sobre esses nomes, se dizem que haverá… Cabe aguardar e observar, se oportuno, para fazer uma análise. Caso se confirmem, já serão um reflexo da denúncia que começamos a fazer a partir das primeiras indicações. Mandamos cartas para os senadores da comissão de Relações Exteriores para dizer que eles tinham que zelar pelarepresentatividade. Foi uma atitude bastante inusitada, e isso em certa medida pode ter surpreendido a chefia do Itamaraty.
Reconhecemos que está havendo um esforço para corrigir os números absolutamente vergonhosos da primeira lista. Diante da legítima reclamação, perceberam o equívoco. De todo modo, os números ainda são francamente desfavoráveis às mulheres.
BBC News Brasil – Ao mesmo tempo, mulheres foram indicadas para a secretaria-geral e a embaixada em Washington pela primeira vez. O que isso representa?
Gala – Isso é fruto de uma luta por visibilidade para mulheres e representa um gol nosso. Ou, se você quiser, dois gols. Pela primeira vez, a gente tem uma mulher na secretária geral, o que é muito bom, na medida em que não foi possível ter uma chanceler. Uma mulher está indo para embaixada em Washington. Isso basta? De jeito nenhum. Uma mulher não vale por todas as outras.
Então, a gente fez um gol, mas tomou vários. Não é uma vitória. Se a gente concluir esse primeiro ano de governo com uma série de nomes de mulheres em posições importantes, obtendo um justo e legítimo reconhecimento, e tiver uma clara indicação de que há um compromisso com a diversidade, de que há metas, prazos, então, a gente vai ter uma vitória. No momento, a gente ainda está perdendo feio esse jogo. Mas a gente não quer virar a partida. A gente quer empatar, ficar em igualdade de condições com nossos colegas.
O fato de estarmos denunciando números que são vergonhosos faz com que o ministério e a chefia sejam levados a falar do assunto. Onde é que estamos? Onde estão os talentos femininos? O que a gente espera é que haja paridade. A sociedade quer isso. Só que o Itamaraty está muito relutante. É um desgaste muito grande para todas nós ter que lutar por cada centímetro do espaço que a gente precisa conquistar.
É importante entender qual é o ethos do Itamaraty, que é uma instituição historicamente encapsulada dentro de si própria. A Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, que eu presido, é a a primeira instituição que vem para fora dos muros do Itamaraty e diz que o que está acontecendo lá dentro, manter a diplomacia na mão de alguns homens, não é bom para o Brasil.
BBC News Brasil – O ministro Mauro Vieira afirmou que houve avanços no Itamaraty, mas que não é possível atingir a paridade agora diante de um percentual de 23% de mulheres na diplomacia.
Gala – Ele mostra desconhecer o debate sobre diversidade. Ao falar do assunto, o ministro usou o critério da proporcionalidade, mas em nenhum momento ele disse que não havia mulheres competentes para ocupar 50% dos cargos. Ele fugiu da questão ao ficar restrito a uma questão de representatividade numérica. Isso é uma falta de convergência com o discurso atual contemporâneo em torno da questão.
O ministro e a secretaria-geral têm insistido que é preciso que haja mulheres entrando na carreira. A base tem que ser corrigida, mas você não pode esperar a base se recuperar. É a mesma coisa com as cotas nas universidades. Muita gente defende que tem que melhorar a escola básica. Mas, enquanto não há essa melhora, a gente tem que adotar medidas afirmativas para que essas pessoas possam entrar na faculdade. Sou uma ativa militante pela entrada de mais mulheres na carreira diplomática, umas das que mais tm atuado nesse sentido ao longo dos últimos anos. Mas isso de maneira nenhuma cumpre tudo o que é preciso fazer.
Temos mulheres para ocupar chefias em número maior do que a sua proporcionalidade. Nós temos uma contribuição a dar como mulheres na formulação e execução da política externa, que hoje está sendo deixada de lado. Essa nossa qualidade, esse aporte diferenciado, está sendo absolutamente descartado. Isso a gente não pode aceitar.
BBC News Brasil – A senhora afirmou que esse cenário delineado de desigualdade em postos de liderança é um “caso explícito de assédio moral” contra mulheres diplomatas. Por quê?
Gala – Defendo que se trata de um assédio moral por três aspectos. O primeiro é que isso desqualifica uma profissional. No assédio moral, o chefe ou os colegas desqualificam o valor de alguém. Quando a seleção de nomes para ocupar o segundo escalão do Itamaraty, chefias de embaixadas e missões importantes não recai sobre mulheres que têm competência e talento, o que se está fazendo é desqualificar a profissional.
O segundo componente é que o assédio faz as pessoas se sentirem mal, ficarem doentes. O que nós vemos é um quadro que hoje deixa profundamente abaladas as mulheres na carreira diplomática. Cumprimos todos os mesmos requisitos, sem exceção, que nossos colegas homens. E, hoje, nós somos preteridas. O assédio pode ter um impacto coletivo, como nesse caso. É nítido que isso afeta o conjunto das mulheres diplomatas brasileiras. Produz uma doença em cada uma de nós associada à nossa autodesqualificação, nossa frustração. A invisibilidade nos torna cidadãs menores dentro da carreira. É uma estrutura que compromete a saúde física, moral e mental das diplomatas.
O terceiro componente do assédio é a intencionalidade do gestor ou do chefe, no caso, quando a gente está falando de uma estrutura hierárquica. A intencionalidade existe, porque (as indicações) são um ato discricionário do ministro, se não há nenhum tipo de procedimento republicano para a seleção.
BBC News Brasil – O Itamaraty é machista?
Gala – Não gosto de colocar nesses termos, porque simplifica uma coisa que é mais sofisticada. Machismo é um termo antiquado. Isso já passou, porque a absoluta maioria dos colegas, se têm que negociar com a gente, reconhece a capacidade do nosso trabalho. Não estão nos maltratando individualmente. Cada vez mais, temos colegas homens que defendem plenamente essa incorporação da presença feminina.
O que há, na verdade, é uma competição por espaços de poder. No Itamaraty, eles são ocupados por homens. Para as mulheres entrarem, os homens vão ter que sair. É simples assim. Há um clubismo. São estruturas de poder historicamente construídas em torno de núcleos masculinos. Há um espírito de corpo masculino que se preserva e que não mostra nenhuma disposição de abrir espaço para as mulheres e que continua usando as suas estruturas de legitimação entre os homens. Esse bloco ascende junto.
Os homens que estão nesses grupos e que estão sentindo a pressão que está vindo da sociedade, da imprensa, dos parlamentares por haver mulheres. Eles estão se sentindo acossados no lugar que, de direito, sempre foi deles. A própria secretária-geral e a embaixadora Viotti são um pouco o rompimento disso e produz inclusive uma reação.
Então, enquanto as mulheres não forem capazes de romper esses blocos, nós vamos ter dificuldade em alcançar a paridade. Por isso, a gente precisa de ações afirmativas para romper esses nichos de poder masculino.
BBC News Brasil – Estamos falando de cotas?
Gala – Não gosto de falar de cotas. Hoje em dia, a gente fala de metas. O que a gente quer são medidas afirmativas no sentido de definição de metas, prazos, mecanismos de supervisão do alcance destas metas. Uma coisa que é muito importante sobre a diversidade é que não é só sobre gênero. A gente precisa de uma diversidade com relação aos negros, indígenas, da comunidade LGBT. Temos que olhar a questão das mulheres sob uma perspectiva muito mais ampla. A gente luta por um Itamaraty mais diverso.
BBC News Brasil – A senhora já chegou a tratar desse assunto com o ministro?
Gala – Não tive a oportunidade. Ele nos honrou muito com sua presença na criação da nossa associação. Ficamos realmente agradecidas. Mas nossa associação buscou um diálogo privilegiado com o ministro e com a chefia do Itamaraty, mas não tivemos resposta positiva.
Houve a iniciativa de promover diálogos sobre equidade de gênero, raça, pessoas com deficiência. O ministério convidou todo mundo para participar do diálogo de gênero. Vejo isso como uma forma de esvaziar nossa representação. Se nós somos uma associação legalmente constituída, que representa 2/3 das mulheres do Itamaraty, o fato de não querer tratar de gênero conosco e de levar a questão para uma ampla assembleia, é uma tentativa de nos esvaziar. Mas a gente entende. É uma demonstração de que há uma dificuldade de conviver com um grupo que representa 2/3 das mulheres diplomatas.
BBC News Brasil – Por que a associação foi criada?
Gala – Ela foi criada após dez anos de existência de um grupo informal de mulheres que se reunia por meio de plataformas digitais para discutir temas que eram de interesse dessas mulheres, desde ter uma sala de amamentação no Itamaraty – que não tinha até recentemente – até questões como assédio ou sermos transferidas dentro dos prazos escolares. Porque, se eu sou mãe solo e eu tenho que levar meu filho, não posso sair no meio do ano escolar.
As mulheres desse grupo tentaram conversar com a administração, houve alguns avanços, que foram interrompidos no último governo. Quando chega o presidente Lula, há uma possibilidade de um diálogo amplo, transparente e construtivo. As diplomatas entenderam que era o momento delas se constituírem como associação e apresentarem legitimamente em público suas pautas, que incluem questões do dia a dia até questões mais amplas que dizem respeito à concepção e condução da política externa e na construção de uma política externa feminista.
BBC News Brasil – A senhora sempre foi muito vocal em relação a esse tema. Podemos dizer que hoje é uma liderança dessa mobilização por mais espaço para mulheres no Itamaraty?
Gala – Não tenho dúvida disso. Deram esse mandato a mim e à diretoria. O Itamaraty ainda é uma instituição muito orientada por uma hierarquia. A associação queria se pautar publicamente, mas entregar a presidência a uma colega de nível hierárquico inferior a embaixadora poderia coloca-la em uma condição de muita vulnerabilidade para construir uma carreira. Então, pediram que eu, sendo uma embaixadora antiga, assumisse essa posição.
É um embate difícil. Preferia que não fosse. Preferia que nosso diálogo fosse construtivo. Até o momento, a gente não tem encontrado espaço para construir esse diálogo positivo. Preferia estar discutindo políticas e prazos para a maior presença das mulheres em cargos em que elas têm condições de ocupar. Infelizmente, a gente não está nesse momento ainda, por isso nossa opção de fazer denúncias, porque não nos tem sido dado espaço para negociar.
BBC News Brasil – A senhora tem algum receio de sofrer algum tipo de retaliação?
Gala – Durante o governo Bolsonaro, passei quatro anos denunciando as idiossincrasias de uma política externa e de uma gestão que entendia ser contra os interesses do Brasil. Passei quatro anos me expondo publicamente e, felizmente, não sofri nenhuma represália. Não acho que vai ser agora, em pleno regime de liberdades amplas, que vou sofrer. Estou muito confortável, tenho o apoio de grande parte das minhas colegas e sei que estamos do lado certo da história.
BBC News Brasil – O que a levou a assumir a frente desta mobilização?
Gala – Sempre fui uma pessoa que escolheu uma carreira um pouco diferente. Muitos colegas fazem uma carreira centrada na Europa e na América Latina. Eu fui para a África. Construí minha carreira com base em estruturas de mérito exclusivamente. Eu não tinha na África um espaço de poder onde você se associa a outras pessoas e pega emprestado seu prestígio. Então, isso me deu condições de ter, vamos dizer assim, um protagonismo temático.
Também é um pouco a natureza da minha personalidade. Tem pessoas que são mais receosas, outras são menos. Sou do time das menos receosas. No início da minha carreira, fui trabalhar, por exemplo, em um país em guerra. As pessoas falavam para mim “você é mulher sozinha”. Eu falei “qual o problema?”. Tive um chefe que disse que gostaria de me mandar para trabalhar num consulado de fronteira. Eu perguntei por quê. Ele disse “porque você carrega a faca na bota”.
Acho que desde muito cedo fui construindo uma persona no Itamaraty de alguma independência, de alguma capacidade de construir meu próprio caminho. Hoje, a minha independência é o prestígio da minha carreira, e isso me permite usar esse lastro para poder defender uma causa profundamente legítima.
BBC News Brasil – Quais obstáculos a senhora enfrentou por ser mulher?
Gala – Quando entrei na carreira, nós mulheres não tínhamos exemplos femininos, mulheres em quem a gente se espelhasse. Construímos nossa carreira meio que mimetizando os homens para assegurar nossos espaços. Hoje, vejo que o processo foi especialmente dolorido, porque a gente teve que perder um pouco da nossa identidade.
Ninguém nunca me disse que não ocupei tal posto porque sou mulher, mas eu não fui para postos para os quais eu estava totalmente habilitada porque não fazia parte dos grupos de poder. Aspirei por posições de chefia que não alcancei. As mulheres são preteridas porque tm que entrar alguém do time do clubinho dos homens. Então, fui preterida porque o lugar estava reservado para um homem. Mesmo agora, houve mulheres – e não quero citar nomes – que foram preteridas para assegurar o espaço dos homens.
Fiz minha carreira com muita coragem e nunca me deixei intimidar pelos homens. E homens foram meus aliados. Aliás, eu acho que a grande maioria das colegas diplomatas vai dizer que homens participaram das carreiras delas e deram contribuições positivas. Na minha turma, éramos dez mulheres. Seis chegaram a ministras de primeira classe, o máximo da carreira. Não sei se há turmas de homens que chegaram a ter 60%. Então, fomos uma turma de mulheres que nos apropriamos de um novo espaço e nos solidarizamos, construímos juntas. Quebramos juntas um teto de vidro. Construímos uma nova história no Itamaraty.
Então, eu passei bem pelos desafios. A questão é que esses desafios foram de tal monta que várias não conseguiram passar. O fato é que, no conjunto, a gente vê que as mulheres ficaram para trás. E é por isso que a gente tem os números que a gente tem hoje. Eu saí bem na foto. Quantas não chegaram a tirar a foto? Essa é a pergunta.
BBC News Brasil – A senhora acredita que, ainda na sua carreira, verá a paridade de gênero ser alcançada no Itamaraty?
Gala – Acho que sim. Por que a paridade, como eu disse, não é em todas as áreas e funções. A paridade é sobretudo para ocupar espaços de liderança. A liderança é a medida da paridade, porque funciona como fator definidor de políticas. Quando digo que a mulher tem uma contribuição a dar, a mulher líder vai construir políticas diferenciadas em vários segmentos. Não se trata de ter 50% de mulheres na carreira. Isso talvez demore mais tempo do que a minha sobrevida na carreira diplomática. Mas a paridade na liderança, nas posições de destaque, acho perfeitamente possível de se fazer em um período de tempo pequeno.
O ministro tem todas as condições de produzir uma sucessora na medida em que ele garanta espaços de representação política relevante para mulheres. Ele está contribuindo para que mulheres possam aspirar à apresentação de belos currículos. Se a questão é currículo, as mulheres vão ter belos currículos. Então, meu desejo é que o ministro tome para si a disposição de fazer uma chanceler e prepare mulheres para ocupar essa posição.
É claro que vai depender de quem for o novo presidente da República. Ainda falta muito tempo, mas o ministro tem condições de dizer “eu fiz minha parte, deixei uma lista de mulheres perfeitamente aptas a serem indicadas”, seja pelo currículo, seja pela sua liderança reconhecida, seja pelas oportunidades que tiveram, inclusive, de se mostrar politicamente. Então, acho que o próximo chanceler será uma mulher, e espero que seja fruto de uma ação propositiva do ministro.