Por Polianna Pereira dos Santos e Nicole Gondim Porcaro
Como ocorre em todo ano que precede as eleições, estão em discussão no Congresso Nacional diversas propostas e projetos de reforma política. Nesse contexto, a relatora da Comissão da Reforma Política da Câmara dos Deputados, deputada Renata Abreu (Pode-SP), apresentou um “emendão” à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 125/11, contendo propostas distintas a serem votadas. Entre os pontos que mais afetam a participação da mulher na política estão a substituição da atual previsão das cotas por gênero e o fim do sistema proporcional.
Noticia-se que o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), pretende acelerar a votação da PEC, e que há uma forte tendência atual pela aprovação do modelo que tem sido chamado de “distritão”. A proposta de reforma ampla do sistema eleitoral — de proporcional para distrital — já foi rejeitada diversas vezes no Brasil e é preocupante por gerar um grande impacto em nossa democracia, representando uma mudança principiológica que exige um debate profundo com a sociedade que não está acontecendo. Além disso, parece inadequado em um momento de crise sanitária, política e econômica na proporção atual.
Sistemas eleitorais são conjuntos de regras que definem como o eleitor pode fazer suas escolhas e como os votos são calculados para se transformarem em mandatos (NICOLAU, 2004, p. 10). Variam de acordo com a forma que as candidaturas são apresentadas — em lista aberta ou fechada, por exemplo —, a circunscrição territorial, a distribuição geográfica, a modalidade do voto e a fórmula eleitoral adotada. Eneida Desiree Salgado esclarece que as fórmulas dos sistemas eleitorais podem ser classificadas “a partir de seu princípio fundamental, e assim apresentar aquelas que se baseiam no princípio majoritário, aquelas que se relacionam à representação proporcional e, finalmente, as que buscam a combinação de ambos os princípios” (SALGADO, 2012, P. 49).
No sistema majoritário são eleitos os candidatos que obtiverem o maior número de votos, e os eleitores votam nominalmente em seu candidato. Já no sistema proporcional brasileiro, o eleitor escolhe seu candidato entre aqueles apresentados pelos Partidos Políticos. Nesse modelo, a soma dos votos recebidos pela legenda partidária define o número de cadeiras conquistadas pelo partido na casa legislativa (Câmara Municipal, Assembleia Legislativa ou Câmara dos Deputados), e a quantidade de votos nominais recebidos pelos candidatos definirá a ordem da diplomação.
O princípio proporcional visa promover um reflexo mais fiel da sociedade nos parlamentos, valoriza a pluralidade e procura garantir uma representatividade programática e ideológica, construída coletivamente e não restrita àquele deputado ou vereador eleito. Por isso, sistemas proporcionais tendem a eleger mais mulheres e outros grupos politicamente minoritários que sistemas majoritários.
A proposta da adoção do sistema distrital surge em uma Emenda à PEC 125 (EMC 7)[1] apresentada em junho de 2021, que propõe, em síntese, a divisão dos Estados e dos Municípios em distritos, para os quais seria adotado um modelo de votação majoritária para escolha dos candidatos e candidatas em cada distrito. É dizer, o eleitorado deverá escolher um candidato ou candidata para representar o seu distrito, de forma que quem obtiver maior votação nominal, será considerado eleito ou eleita representante do distrito.
No entanto, o voto distrital, orientado pelo princípio majoritário, tende a enfraquecer a democracia, ao invés de fortalecê-la. Dificulta a renovação na política, favorecendo a permanência (e mesmo a reeleição) de políticos tradicionais e aumentando o sentimento de falta de representatividade. Ainda, pode deixar as campanhas eleitorais mais caras, já que os/as candidatos/as terão que se eleger exclusivamente pelos votos individuais de uma determinada circunscrição eleitoral/distrito. E sabemos que mulheres, negros e indígenas já disputam as eleições com recursos escassos.
Outro prejuízo do distritão é a fórmula de divisão das vagas que termina por desprezar/ignorar a maioria dos votos dados pela população. Ao contrário do que ocorre no sistema proporcional, os votos creditados às candidaturas que não são eleitas no sistema distrital não têm influência no resultado, ou seja, não contam para nenhum partido ou coligação. Trata-se, então, de um modelo que tende a favorecer um perfil de representantes — majoritariamente homens brancos, com recursos —, o que pode ocasionar a super-representação de uma única tendência, ao mesmo tempo em que gera maior personalização das candidaturas.
A proposta, portanto, tende a agravar a crise de representação, dificultando ainda mais o acesso de grupos politicamente minoritários, ou, citando Richard Santos, grupos minorizados, aos espaços de poder.
A proposta de substituição das cotas
A relatora da comissão, Renata Abreu, anunciou a pretensão de modificar a legislação eleitoral para retirar do texto a obrigatoriedade do cumprimento mínimo de 30% de candidaturas para um dos gêneros nas eleições, instituindo em contrapartida uma cota de 15% das cadeiras do Legislativo nas três esferas — federal, estadual e municipal — para mulheres.
Essa medida é considerada um retrocesso pelos movimentos que reivindicam maior participação feminina na política, e gerou uma reação que levou à criação da Frente pelo Avanço dos Direitos Políticos das Mulheres (FADPM). Formada por mais de 140 associações da sociedade civil, instituições de pesquisa e instâncias partidárias, com o fim de defender os direitos políticos das mulheres brasileiras e fazer avançar na luta pela equidade de gênero e raça/etnia, publicaram o “Manifesto sobre a Reforma da Legislação Eleitoral e a Participação Feminina na Política Brasileira”.
O manifesto afirma que “qualquer proposta que pretenda legislar sobre reserva de vagas não pode estar abaixo de 30%, porcentagem que há muito é considerada como o mínimo para que as mulheres possam de fato estar inseridas nas diversas ações e funções que o mandato parlamentar requer”. Além disso, 15% já é o percentual atual de mulheres nas casas legislativas brasileiras, sendo inconcebível a redução no parâmetro para políticas públicas de inclusão das mulheres.
Na mesma linha, a Nota técnica 1, elaborada pelo Fórum Fluminense Mais Mulheres na Política[2] apresentou dados estatísticos extraídos do resultado das eleições de 2018 e 2020 que mostram que, com exceção do Nordeste, todas as demais regiões já possuem mais de 15% de mulheres eleitas na Câmara dos Deputados. Além disso, constatou que o percentual também é superado nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais, alertando para o risco de a adoção da reserva de cadeiras no percentual de 15% em substituição à cota de gênero na lista de candidatos gerar um “saldo negativo de 910 assentos para as mulheres nas Câmaras de Vereadores em relação ao que já foi conquistado nas eleições de 2020”, estando a perda concentrada “principalmente nos municípios com até 15 mil habitantes e com mais de 1,35 milhões de pessoas”.
Vale pontuar que há várias propostas legislativas já apresentadas que avançam em metas de cotas e caminhos factíveis para o horizonte da paridade que necessitam ser incorporados ao debate. Apenas entre as propostas de emenda à PEC 125/2011, poderíamos citar a emenda nº 1, que prevê cota para pessoas negras (EMC 1)[3], a emenda nº 4, que prevê paridade nas cotas de gênero (EMC 4)[4], a emenda nº 8, que além de prever reserva de cadeiras no percentual mínimo inicial de 20%, mantém o percentual mínimo de candidaturas por gênero nas listas dos partidos e a reserva de recursos (EMC 8)[5], e a emenda nº 9 que prevê a alternância de homens e mulheres na ordem das vagas conquistadas por cada partido (EMC 9)[6].
Em um momento de crise e instabilidade política como o atual, se faz essencial a defesa da Constituição e sua racionalidade, devendo-se buscar reformas que aperfeiçoem o sistema posto, ao invés de substituí-lo. Qualquer reforma deve ser orientada pelo princípio democrático, garantindo a necessária participação das minorias no debate público e nas instituições políticas, além da igualdade na disputa eleitoral. Por esse motivo, defendemos a manutenção do sistema proporcional de lista aberta, somado ao compromisso de ampliar, ou ao menos manter o patamar mínimo de candidaturas hoje regulamentado.
Fonte: ConJur