Um tema que vem sendo tratado de modo muito discreto no Senado Federal é o Projeto de Lei Complementar (PLP) 112/2021, referente ao novo Código Eleitoral. Trata-se de uma proposta legislativa ambiciosa que tem como objetivo unificar as normas eleitorais em um documento só, mas que possui também outros propósitos um tanto quanto indeclaráveis por parte dos parlamentares. Durante o seu debate na Câmara dos Deputados, o enfraquecimento dos poderes do TSE no que se refere à sua função consultiva, além da expressiva mudança no regime de financiamento de partidos e sua transparência tiveram uma atenção especial.
Não foi pouca a resistência pública contra esse PLP diante da pressa da Câmara para aprová-lo com tempo de aplicá-lo nas eleições de 2022. Contudo, o Senado decidiu – acertadamente naquele momento – analisar melhor o conteúdo dos mais de 900 artigos que o projeto possui.
Mas como os caminhos no Congresso Nacional não são óbvios aos olhos da sociedade, o PLP 112/2021 teve novo andamento no Senado em março desse ano, dessa vez impulsionado pelo relator Senador Marcelo Castro (Progressistas-PI). No relatório apresentado na Comissão de Constituição e Justiça, nota-se o trabalho do relator na análise do projeto e nas emendas propostas por outros parlamentares, ao mesmo tempo em que se percebe a estratégia de inserir entre os artigos alguns interesses inconfessáveis dos partidos. É aqui que se situa a ofensiva contra a cota de candidaturas femininas.
No relatório apresentado pelo relator, decidiu-se voltar à fórmula utilizada em 1995 para introduzir a política de cotas de candidaturas sem, contudo, obrigar efetivamente os partidos ao seu cumprimento. Nesse molde, retira-se o que hoje está vigente – que é a obrigatória apresentação de ao menos 30% de nomes de mulheres nas listas de candidaturas dos partidos – para substituir por uma mera “reserva” de 30% do espaço dessas listas para as mulheres. Nessa lógica, se não há mulheres suficientes para preencher essa “reserva”, as vagas remanescentes ficam vazias, sem prejudicar os homens indicados, mas em claro prejuízo à representatividade feminina.
Tal regra já não funcionou em 1995. Tanto que em 1997 ela foi alterada para a regra atualmente aplicável. Pois em pleno 2024, por alguma razão, o relator do PLP 112/2021 entende que voltar à regra comprovadamente ineficaz pode ser positivo. Como justificativa, o relator entende que o cumprimento das cotas tal como são aplicadas hoje gera o que ele denomina de “candidaturas desnecessárias” de mulheres, uma vez que as capacidades do partido deveriam se concentrar nas mulheres efetivamente viáveis para serem eleitas. Isso, segundo o relator, possibilitaria o melhor investimento no financiamento público dessas candidaturas (sem indicar claramente como, uma vez que são os partidos os que comandam para onde vai o dinheiro) e “ajudaria” as mulheres nas eleições.
Há razões para questionar a justificativa do relator, a começar pela baixíssima representação feminina na política no Brasil, que destoa totalmente do que vem sendo debatido e buscado nas Américas e no mundo, que é a paridade.
Segundo dados das eleições gerais de 2022 do TSE, embora as mulheres sejam 53% do eleitorado, elas corresponderam só a 33% das candidaturas apresentadas, um recorde nosso, mas que pouco passa do mínimo estabelecido pelas cotas. Desse percentual, 17% foram eleitas, o que deixa o Brasil da vanguarda do atraso na presença de mulheres, na 135° posição de um total de 190 países, conforme dados do Inter-Parliamentary Union. Países como Egito (80°); Paquistão (100°) e Arábia Saudita (120°) já estão na frente.
Se olhamos para os dados municipais, a situação piora, uma vez que há, hoje, 3515 municípios sem nenhuma mulher eleita, de um total de 5568.
Mas olhemos para as cotas. Mesmo após mais de 20 anos de vigência das cotas, esta política desde sempre foi boicotada pelos partidos, que não se preocupam em investir em lideranças políticas mulheres, mas tentam somente suprir a cota com a indicação de qualquer mulher nas listas. Isso não só abriu espaço para o atalho no cumprimento das cotas, mas também possibilitou o surgimento das fraudes, uma vez que, não raras vezes, mulheres são indicadas como candidatas e nem sabem que o são, descobrindo isso somente após as eleições.
Nesse ponto, a única punição imposta foi criada pela jurisprudência do TSE e que, a despeito da sua virtude, por vezes também prejudica mulheres eleitas e que não tinham participado da fraude, já que eram cassadas todas as candidaturas eleitas por uma lista fraudulenta. Quem realmente pratica a fraude, no caso, o dirigente partidário, fica ileso. Aliás, a versão do PLP 112 aprovada na Câmara previa essa punição, algo que foi retirado pelo relator no Senado, novamente com a justificativa de “ajudar” mulheres, sem indicar outra sanção para tais casos.
Portanto, em uma manobra só e longe dos holofotes da imprensa e da opinião pública, o relator livrou os partidos da obrigação do cumprimento das cotas de candidaturas, investindo na impunidade das agremiações que cometem fraude nessa política. Não é por acaso que isso uniu os líderes partidários à revelia das bancadas femininas do Congresso Nacional.
O alerta disso veio por uma nota técnica do Observatório de Violência Política Contra a Mulher. A despeito de alguns avanços que o PLP traz no que se refere à gênero (como a maior proteção de mulheres no que tange à violência política), o retrocesso das cotas é muito maior. Aqui, prevaleceu a máxima de dar as mãos às mulheres, mas elas acabam perdendo o braço.
É preciso um compromisso sério dos partidos para tirar o Brasil dessa constrangedora posição na representação feminina na política. É impensável pensar em uma democracia real sem mulheres. É necessário insurgir-se contra essa mudança no PLP 112/2021, pois é o passaporte para um passado longínquo e que não deve voltar. O presente e o futuro só existem com mulheres na política e qualquer movimento que não atenda a isso deve ser publicamente exposto e resistido.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
Fonte: Estadão