Diferença de atuação no Brasil e na UE mostra até onde as ‘big techs’ estão dispostas a esticar a corda para seguirem atuando num ambiente sem regras
“A internet é uma terra sem lei.” Essa expressão pode variar de país a país, mas certamente o sentimento que ela traduz é o mesmo. Não à toa, democracias do mundo inteiro estão se debruçando sobre essa questão para encontrar soluções democráticas para problemas como desinformação e disseminação de discursos de ódio, garantindo a proteção de direitos fundamentais, como privacidade e liberdade de expressão.
A internet nasceu sob a filosofia de que o ambiente virtual deveria ser neutro, sendo o usuário o único responsável pelos conteúdos propagados. Mas, a partir do momento em que plataformas digitais passam a ocupar espaço significativo na vida de bilhões de pessoas, com poder total sobre seus algoritmos e, portanto, sobre o alcance desses mesmos conteúdos, essa premissa já não é mais válida.
Um estudo do Massachusetts Institute of Technology (MIT) demonstrou que há um claro conflito entre o modelo de negócio das plataformas e o combate à desinformação: informações falsas têm probabilidade de compartilhamento 70% maior, pois geram um maior “engajamento” e, assim, um maior lucro.
Essas são apenas algumas das razões pelas quais parlamentares do mundo inteiro buscam respostas para enfrentar esta epidemia de desinformação. Em diversos países e cada vez mais, ações coordenadas de fake news vêm influenciando processos democráticos e políticas de saúde pública, como foi o caso das notícias falsas relacionadas às vacinas contra a covid-19, para citar apenas alguns exemplos.
Para combater este fenômeno, a cooperação entre os dois lados do Atlântico é fundamental. Nesse quesito pelo menos, os desafios culturais, sociais e políticos do Brasil e dos países sul-americanos não são tão diferentes dos que enfrentam Portugal, Espanha e demais países da União Europeia (UE). A discussão iniciada pela UE com o Regulamento dos Serviços Digitais (DSA) e o Regulamento dos Mercados Digitais (DMA) é um bom ponto de partida para as ações regulatórias que podem e devem ser adotadas pelo Brasil. É importante ressaltar, ainda, a discussão em curso sobre o Regulamento para a Liberdade dos Meios de Comunicação Social (EMFA), que tem o objetivo de proteger o jornalismo independente e de qualidade.
Quando falamos do combate às fake news, a definição de regras é fundamental: hoje algumas empresas aplicam políticas de moderação de conteúdo de maneira seletiva, resultando em opiniões divergentes ou impopulares. Embora a moderação de conteúdo seja necessária para crimes tipificados, a aplicação arbitrária dessas políticas pode limitar a liberdade de expressão.
Para demonstrar os efeitos nocivos da falta de regulação, temos um exemplo recente: este ano o Brasil vem enfrentando uma onda de ataques violentos em escolas, que resultaram na morte de dezenas de pessoas, de crianças a professores. Os conteúdos que propagavam discursos de ódio ou os fóruns em que se combinavam esses crimes correram livremente em diferentes plataformas. Esse é um problema complexo, que exige esforços em várias esferas, mas a pergunta que fica é: não havia nada que essas plataformas pudessem ter feito para impedir que esses conteúdos criminosos continuassem circulando?
Por isso, neste momento, se discute no Brasil a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência, mais conhecida como PL das Fake News, que tem como inspiração a legislação da União Europeia. Entre outras coisas, o projeto trata da obrigação de transparência, com a garantia de direito de defesa do usuário e a abertura de um devido processo legal em caso de supressão de perfil. Anos de discussão sobre esse assunto deixam claro que o caminho não deve ser o de punição dos usuários nem tampouco de constituição de um agente externo com poder de decidir o que é falso ou verdadeiro. O que queremos é que as plataformas sejam mais responsáveis e transparentes em suas atuações.
Diferentemente do que aconteceu na Europa, no Brasil as big techs partiram para uma ofensiva contra o projeto. Para toda e qualquer discussão, espera-se que empresas façam lobby, isso é do jogo. A grande diferença desta vez é que as empresas que detêm o controle sobre os principais meios em que nos comunicamos, em diferentes momentos, escolheram a forma como os conteúdos sobre o projeto chegariam aos usuários. E isso se deu de forma nada neutra: no Google, notícias a favor do projeto foram ranqueadas para cima, enquanto notícias mais críticas foram ranqueadas para baixo. O Twitter deslogou pessoas que estavam fazendo críticas ao projeto – uma jornalista da CNN Brasil passou por isso ao vivo. A Meta impulsionou conteúdos contra o projeto. O Telegram enviou para toda a sua base uma mensagem com mentiras sobre o texto.
A diferença de atuação no Brasil e na União Europeia mostra até que ponto essas empresas estão dispostas a esticar a corda para seguirem atuando num ambiente sem regras. Em democracias menos consolidadas, essas companhias estão dispostas a tudo para fazer seu lobby?
As ondas de autoritarismo nos mostram que nenhuma democracia está a salvo e que precisamos seguir vigilantes. Se o que defendemos é um mundo com mais justiça, participação social, ética e desenvolvimento sustentável, precisamos estar unidos na defesa constante e irrestrita desses valores.
* Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 11/7/2023